Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0570/18
Data do Acordão:06/20/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P23446
Nº do Documento:SA1201806200570
Data de Entrada:06/08/2018
Recorrente:A..., SA
Recorrido 1:ESTADO PORTUGUÊS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA FORMAÇÃO PRELIMINAR DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:

I. RELATÓRIO

A……………………, S.A intentou, no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (doravante TAF), contra o Estado Português, acção administrativa comum onde formulou os seguintes pedidos:
a) declarar-se que o Ministério da Saúde não cumpriu os compromissos decorrentes do Protocolo celebrado, em 2003.04.28, com a Demandante, em termos tais que ofendem o princípio da boa fé na formação dos contratos;
b) condenar-se o Réu a pagar à Autora, a título de indemnização:
1) pelos danos identificados sob os arts. 128 a 131 supra, o montante de € 53.935.000,00, acrescido do IRC (€ 18.632.986,00) e do IVA (€ 15.239.277,00) devidos, num total de € 87.807.263,00 (oitenta e sete milhões, oitocentos e sete mil duzentos e sessenta e três euros), acrescido dos juros moratórios, à taxa legal;
2) pelos danos enunciados sob o art. 132 deste libelo, o montante que vier a ser liquidado em execução de sentença, igualmente com juros moratórios, à taxa legal.”

O TAF julgou a acção totalmente improcedente, e em consequência, absolveu o Réu dos pedidos.

E o TCA Norte, para onde o Autor apelou, negou provimento ao recurso.

É desse Acórdão que o Autor vem recorrer (artigo 150.º/1 do CPTA).

II. MATÉRIA DE FACTO
Os factos dados como provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III. O DIREITO
1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o STA «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto como «válvula de segurança do sistema» para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos, pois, se tais requisitos se verificam in casu socorrendo-nos da matéria de facto seleccionada no Acórdão recorrido.

2. A Autora (ora Recorrente) intentou contra o Estado a presente acção administrativa comum alegando ter celebrado, em 28/04/2003, com o Ministério da Saúde, um Protocolo destinado a facultar ao conjunto dos médicos que exerciam actividade no SNS o produto que concebeu e desenvolveu destinado, além do mais, a melhorar a produtividade e a qualidade dos serviços de saúde e a facilitar o seu acesso e humanização. Tal Protocolo tinha natureza contratual, criando entre os seus outorgantes uma sólida relação jurídica donde resultava para cada um deles um conjunto de poderes e deveres.
Em consequência dessa celebração a Autora ficou legitimamente convencida de que o correspondente contrato iria ser celebrado pelo que fez os investimentos necessários ao correcto funcionamento do serviço que havia criado.
Todavia, o Ministério da Saúde não cumpriu o estabelecido no mencionado Protocolo o que lhe causou os prejuízos peticionados.

O TAF julgou a acção improcedente pelas razões que se reproduzem:

Com efeito, em torno do expendido no Protocolo ….. formou o Tribunal a firme convicção … de que o que mesmo congregava em si, era um acordo de vontades, de intenções sérias, de obrigações mútuas e recíprocas.
Vejamos então, se o mesmo é um contrato, e se dele decorre a assumção de pagamento de serviços/produtos que a Autora ia realizar e se o Ministro da Saúde, …………….., assumiu que, por força desses serviços, estava vinculado por uma contraprestação, e que era a de pagar aqueles serviços/produtos que a Autora entendeu prosseguir.
….
Efetivamente, o que decorre do Protocolo, em termos de assunção de obrigação por parte do Ministro da Saúde, é apenas a de apoiar a apresentação das candidaturas pelas ARS, o que logrou assim provado, sendo que, não era da competência nem do Ministério da Saúde, nem das ARS, aprovar quaisquer candidaturas e a partir daí gerar proventos para pagamentos de encargos [da A……….; que já os tivesse suportado], antes porém, do Programa Saúde XXI, sendo que, nos termos em que as candidaturas foram apresentadas, e como a então Gestora […………….] referiu, destinando-se as mesmas a “custear um telemóvel para os médicos entrarem em contacto com os doentes e estes com aqueles”, que as mesmas [candidaturas] não seriam elegíveis, por não o ser o seu objecto.
Assim é que, como resultou provado, o compromisso de colaboração por parte do Ministério da Saúde … foi plenamente assegurado [porque as candidaturas foram apresentadas], e como também resultou provado, não podia o Ministro da Saúde impor que as mesmas [candidaturas] fossem aprovadas, pois pese embora ter tutela sobre as ARS, já não o tinha sobre a Gestora do Saúde XXI, e como amplamente foi divulgado, e também assim resultou provado, os benefícios que adviessem para o Ministério da Saúde, para o Estado, seriam sempre a “custo zero” ….
….
Atenta a causa de pedir, e os pedidos deduzidos a final da petição inicial, e em face do que resultou provado e não provado, em resultado da instrução dos autos, julgamos que o Estado Português não está constituído, seja por via contratual, seja a título de responsabilidade pré-contratual, no dever de indemnizar a Autora pelos danos patrimoniais já por si liquidados, assim como outros ainda não liquidados [que a Autora tinha relegado para liquidação em execução de sentença].”

A Autora apelou para o TCA Norte, imputando erros ao julgamento de facto e de direito mas sem sucesso já que este negou provimento ao recurso. Fê-lo pelas razões que se transcrevem:
“…
O êxito impugnatório exige que os meios de prova imponham de forma clara outra solução, e não quando possam apenas sugerir ou possibilitar decisão diversa da matéria de facto.
A livre convicção do julgador não significa uma apreciação contra a prova.
Mas há que não esquecer que, estando em causa o pedido de alteração de uma decisão anterior, que foi fundada na livre convicção de quem a proferiu … uma tal alteração só deverá ocorrer se houver elementos objectivos que a imponham sem hesitação.
….
Ora, observar-se-á que o M.mo Juiz “a quo” não considerou que, pura e simplesmente, não tivesse sido feita prova, mas antes se referiu à falta de uma “prova cabal” no sentido alegado pela autora.
Quanto à determinação de valores, é inegável que a prova é indiscutivelmente frágil, opinando pela conclusão de uma cifra mas sem consubstanciar narrativa mais desenvolta, que com segurança desse uma aproximação concretizada e justificada à razão de ser dos valores lançados a terreiro, ficando por precisar dispêndio.

Neste contexto, não se nos depara prova firme, indiscutível ou irrefutável, que necessariamente abale a convicção que o tribunal de 1.ª instância retirou da prova produzida, de falta de uma “prova cabal”.
…..
Sobre o direito.
A recorrente emprega esforço em ver no caso uma responsabilidade pré-contratual.
Percebe-se.
Mas, com o maior respeito por sustento contrário, divergimos.
….
O protocolo não comporta um processo de formação de celebração de contrato de aquisição da “solução” pelo Ministério.
Não constitui base e projecção a tal fito.
É antes um contrato de colaboração.
Nele se divisa que em prol de um acesso e utilização do produto pelos médicos, com certificado reconhecimento por banda do Ministério da Saúde, e na perspectiva … de obtenção de vantagens a refluir para o Ministério e para o cidadão … comprometeu-se o réu a apoiar a candidatura das Administrações Regionais de Saúde ao programa comunitário "Saúde XXI", por aí se assegurando fonte de financiamento.
Esse o compromisso, dotado de vinculação jurídica.
Essa vinculatividade é desde logo assegurada pelo encontro de vontades negociais expressas no protocolo celebrado, pelo sentido juridicamente relevante captável ….
Corresponde a um autêntico dever jurídico em que o Ministério ficou constituído.
Que a autora/recorrente poderia encarar a benefício da sua esfera jurídica.
….
Será que o compromisso foi incumprido?
Notoriamente, é o caso.
Há uma clara inflexão a partir de 2005, quando há notícia de que “foi solicitado aos organismos competentes do Ministério da Saúde que avaliassem a oportunidade e adequação dos Protocolos celebrados, face à necessidade de respeitar as normas nacionais e comunitárias que regem a concessão dos fornecimentos, e se pronunciassem sobre a prioridade dos projectos (4), considerando os recursos financeiros disponíveis a nível nacional e comunitário”, e quando as “ARS’s emitiram pareceres, manifestando “o seu desinteresse pelo projecto de colaboração/contratação aventado no Protocolo”, com legítima inferição de causalidade.
Julga-se que se poderá afirmar o incumprimento como definitivo, e, concludentemente, significante de uma atitude de desvinculação por banda do réu.
Ainda assim, não se tem que sob o ponto de vista de uma responsabilidade ela decorra de facto ilícito.
Recorrendo a termos exarados em Ac. do STA, de 17-04-2008, proc. nº 0548/07, que se julga também caberem ao caso, é «isento de dúvidas que este contrato de colaboração, como, aliás, qualquer contrato administrativo, se diferencia do contrato juscivilista, traduzindo-se essa autonomia, em última análise, no facto de, sobre o acordo estrito das partes, o pacta sunt servanta, poder prevalecer, em certos termos, o interesse público ali prosseguido, com eventual sacrifício do princípio da estabilidade dos contratos, interesse público que “penetra no seu interior, modela as prestações, actualiza-as «pari passu» de acordo com as suas variações...» (Barbosa de Melo e Alves Correia, Contrato Administrativo, CEFA, 1984, pág. 8).
Ou seja, ao contratar administrativamente, a Administração contrata sempre sob reserva de compatibilidade do contrato com o interesse público nele prosseguido, ainda que … a existência e eventual prevalência da reserva do interesse público possa ter determinado preço, por exemplo, o da indemnização ou da reposição do equilíbrio financeiro eventualmente posto em causa.».
Portanto, admitir-se-ia que, face à ruptura, que o réu, constituído no dever de indemnizar, pudesse ser condenado de forma a reparar danos causados.
Todavia, a falência de demonstração dos alegados danos cerceia tal passo.
Pelo que, ainda que sob diferente fundamentação, é de manter a improcedência da acção estatuída na decisão recorrida.”

3. Julgamento que a Recorrente não aceita pelas razões resumidas nas conclusões seguintes:
1ª - Com efeito, tendo o Ac. recorrido reconhecido a declaração não só a existência de um contrato celebrado entre as partes, bem como o seu incumprimento definitivo por parte do Estado Português para, depois, julgar totalmente improcedente o recurso apresentado pela Recorrente, quando o primeiro pedido formulado na petição inicial consiste precisamente em ver declarado esse incumprimento por parte do Réu ao referido contrato, tal decisão configura um claro erro de julgamento na aplicação do direito.
2.ª – A sindicância de erro ostensivo na aplicação do direito, é fundamento para o recurso de revista a que alude o art.º 150.º do CPTA, porquanto o recurso se mostra absolutamente necessário para a sua reparação e para a melhor aplicação do direito.
3.ª – A questão concreta de saber se ao tribunal se impõe a obrigação de condenar o réu quando o autor demonstra a existência de danos sem contudo demonstrar a sua quantificação ou liquidação, mesmo quando deduz pedido concreto e determinado, é uma questão processual de importância fundamental, legitimando, por isso, a interposição de recurso de revista do Acórdão do TACN que julgue em 2.ª instância, o qual se justifica até para uma melhor aplicação do direito.
4.ª – Pelo que o recurso de revista no presente caso é plenamente justificado e admissível, atendendo à importância jurídica fundamental de questão e à clara necessidade de melhor aplicação do direito a esse propósito face à aparente inconsistência sobre um aspecto nuclear da controvérsia jurisprudencial existente.”

4. Como resulta do anterior relato, muito embora as instâncias tivessem julgado a acção improcedente, certo é que o seu julgamento repousou em razões contraditórias. Com efeito, enquanto o TAF considerou que se provara que o Ministério da Saúde foi fiel ao compromisso assumido no citado Protocolo e que, portanto, não havia fundamento para o condenar no pedido, o TCA concluiu ter havido um incumprimento “e, concludentemente, significante de uma atitude de desvinculação por banda do réu” e que, por isso, se podia admitir, “face à ruptura, que o réu, constituído no dever de indemnizar, pudesse ser condenado de forma a reparar danos causados. Todavia, a falência de demonstração dos alegados danos cerceia tal passo.”
Essa essencial divergência, atenta a sua repercussão nos julgamentos das instâncias, é, por si só, suficiente para justificar a admissão da revista.
Acresce que o Acórdão recorrido, apesar de considerar que a acção procederia se a Autora tivesse provado os danos peticionados, não se apercebeu da totalidade do pedido que a Autora havia formulado. Com efeito, ao contrário do suposto naquele Aresto, dele constam três diferentes pretensões: 1.ª) a declaração de que o Ministério da Saúde violou os compromissos assumidos no Protocolo; 2.ª) a sua condenação no pagamento de uma indemnização que ressarcisse a Autora dos danos já contabilizados e 3.ª) dos danos que se viessem a liquidar em execução de sentença.
Ora, perante o juízo firmado pelo Acórdão no tocante ao incumprimento do Protocolo por parte do Réu tudo indicava que os pedidos formulados nas 1.ª e 3.ª alíneas deveriam proceder. Não se percebe, assim, o julgamento de total improcedência da acção.
O que significa que a admissão do recurso é necessária para uma melhor aplicação do direito.
Por outro lado, o recurso não só suscita questões que evidenciam complexidade ao nível das operações lógico-jurídicas a fazer, que carecem de clarificação jurisdicional, como as mesmas são juridicamente relevantes e apresentam-se como susceptíveis de ressurgir em casos futuros.
Finalmente, os valores monetários envolvidos nesta acção são muito elevados o que, também, aconselha a admissão da revista.

DECISÃO
Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em admitir a revista.

Sem custas.

Lisboa, 20 de Junho de 2018. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – São Pedro.