Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0801/12
Data do Acordão:12/12/2012
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:VALENTE TORRÃO
Descritores:SISA
CONTRATO DE CONCESSÃO
REVERSÃO DE BENS PARA O PATRIMÓNIO MUNICIPAL
LOCAÇÃO
Sumário:I – Nos termos da cláusula 10ª, nº 4 do contrato de concessão assinado em 27.06.1996, entre o Estado Português e a Sociedade A…….., para além dos bens logo afectos à concessão e mencionados em anexo, permitia-se que os órgãos e imóveis de qualquer natureza, das redes de distribuição de água para consumo público pertencentes aos municípios utilizadores e em relação aos quais pudesse haver interesse em integrá-los em rede alta, poderiam, mediante acordo ser por estes cedidos à concessionária a título gratuito ou oneroso, na parte em que sejam indispensáveis por parte desta, permitindo-se ainda que tornando-se desnecessária a utilização pela concessionária dessas redes de distribuição de água para consumo público estas serão devolvidas aos municípios cedentes.
II – Celebrado entre o Município de Gaia e a referida Sociedade A…….. um contrato de locação de infraestruturas referidas na citada cláusula, este é válido, mas não produz quaisquer efeitos a cláusula que refere que no termo do contrato os bens ficarão propriedade da Sociedade, já que eles apenas se mantêm na sua propriedade durante a concessão, revertendo para o município no termo do mesmo contrato ou quando se tornar desnecessária a utilização pela concessionária (artº 7º do Decreto-Lei nº 379/93, de 5 de novembro e cláusula 10ª citada).
III – Deste modo, a transmissão dos bens objecto de concessão para a concessionária é meramente temporária e visa satisfazer a actividade da concessão, pelo que não há lugar a liquidação de sisa.
IV – De todo o modo, não tem aqui aplicação o disposto no artº 10º da LGT, não só porque os bens em causa são bens do domínio público que não entraram no comércio jurídico privado em virtude de qualquer desafectação e integração no domínio privado, como nem sequer houve por parte da referida adquirente aumento da sua capacidade contributiva, atendendo a que os bens nunca poderão entrar no seu património, pois no termo da concessão os mesmos bens – aqueles a que os autos se referem – reverterão para o respectivo município.
Nº Convencional:JSTA00067999
Nº do Documento:SA2201212120801
Data de Entrada:07/12/2012
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A..., SA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF PORTO
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - IMPUGN JUDICIAL
Legislação Nacional:DL 379/93 DE 05/11
LGT ART10
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC025469 DE 2001/04/04; AC STA PROC0267/11 DE 2011/09/08
Referência a Doutrina:DIOGO LEITE DE CAMPOS E OUTROS - LGT ANOTADA E COMENTADA 4ED
LIMA GUERREIRO - LGT ANOTADA - REI DOS LIVROS PAG79 E SEGS
NUNO SÁ GOMES - NOTAS SOBRE O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE E NATUREZA DAS ATIVIDADES ILÍCITAS E DOS IMPOSTOS PROIBITIVOS SANCIONATÓRIOS E CONFISCATÓRIOS IN CENTRO DE ESTUDOS FISCAIS COMEMORAÇÃO DO XX ANIVERSÁRIO VOLXI PAG513 E SEGS
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

I – A Fazenda Pública veio recorrer da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que julgou procedente a impugnação deduzida pela sociedade A……... S.A., com os demais sinais dos autos, contra a liquidação adicional do imposto municipal de sisa, no montante de 1.695.912,85 euros, acrescido € 681.431,72 a título de juros compensatórios, resultante da celebração de um contrato de locação de universalidade de bens realizado no ano 2000, apresentando para o efeito, alegações nas quais conclui:

A). A douta sentença recorrida dá por assente que a transferência da propriedade das infra - estruturas que integram o sistema multimunicipal de captação, tratamento e abastecimento de água para consumo público do sul do Grande Porto pelo dito “contrato de locação de universalidade de bens” entre o Município e a empresa municipal e a impugnante em 27.03.2000, estando os contraentes Município e empresa municipal impedidos de, unilateralmente, resolverem o contrato antes do seu termo, seja por que motivo for, determina a caracterização do contrato como operando a transmissão da propriedade desses bens a título oneroso.

B). Assim, a douta sentença recorrida parte da premissa de se estar perante contrato que teve por escopo a transferência de propriedade das infraestruturas afetas à concessão detida pela impugnante, para centrar-se na questão de aferir da admissibilidade da transmissão de tais infra - estruturas do Município para a impugnante e, previamente, de aferir da sua integração no domínio público ou no domínio privado do Município.

C). A douta sentença recorrida sufraga então o entendimento de que, atendendo ao tipo de necessidades cuja satisfação implica a utilização dessas infraestruturas, tais bens estariam integrados no domínio público, pelo que tratar-se-iam de bens inalienáveis, pela sua própria natureza e afetação à utilidade pública, concluindo não se poder falar aqui em sujeição a Imposto Municipal de Sisa com base nesta transmissão de bens.

D). Não obstante, o que é certo, como assinalado na própria sentença recorrida, é que as partes quiseram por via do dito “contrato de locação de universalidade de bens”, efetivamente um contrato de compra e venda, transmitir a propriedade de uma coisa ou outro direito, mediante um preço (artº. 874° do Código Civil), in casu, transferir o direito de propriedade sobre as infraestruturas em benefício de pessoa coletiva de direito privado - a impugnante, sendo certo que a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisas determinadas se dá por mero efeito do contrato, salvas as exceções previstas na lei (artº. 408°, nº 1, do Código Civil).

E). A este respeito o artº. 10º da Lei Geral Tributária preceitua que o caráter ilícito da obtenção de rendimentos ou da aquisição, titularidade ou transmissão dos bens não obsta à sua tributação quando esses atos preencham os pressupostos das normas de incidência aplicáveis.

F). Se bem que o ato ou facto ilícito seja “um facto em desacordo ou em contrariedade com a ordem jurídica”, passível de um juízo de desvalor ou reprovação relativamente ao ato, esse ato ou facto ilícito “é, em primeiro lugar e acima de tudo, um facto jurídico”, e que o ato ou facto ilícito tem natureza voluntária, na “medida que reflete uma manifestação de vontade.”

G). Como tal, embora o contrato possa estar afetado de ilicitude, designadamente no plano cível, a tributação, reportando-se unicamente às circunstâncias reveladoras de capacidade contributiva manifestadas no ato ou facto, é indiferente ao caráter lícito ou ilícito da obtenção ou disposição dos bens, sendo este um aspeto da natureza valorativamente neutra da tributação, doutrinalmente reiterada, e uma das vertentes da consideração económica dos factos ou atos com relevância jurídica tributária.

H). Cabe aqui traçar um paralelismo entre o direito fiscal, ao consagrar o critério da consideração económica dos factos ou atos com relevância jurídica tributária, e o direito civil no sentido que, apesar de juscivilisticamente cominar a nulidade dos negócios jurídicos de objeto físico ou legalmente impossível à ordem pública ou contrários aos bons costumes (cfr. artº. 280º do Código Civil), ignora esse vício quando é invocado pela pessoa que o praticou, por forma a impedir que essa pessoa seja beneficiada.

I). Também assim sucede no direito fiscal, em que quem atua de modo ilícito não pode tirar partido no âmbito fiscal da cominação de outro ramo de Direito, devendo sujeitar-se à tributação prevista na lei, razão pela qual desde que o Fisco tenha diante de si um ato ou contrato suscetível de, em abstrato, operar uma transmissão, não pode deixar de efetuar a liquidação do imposto correspondente.

J). A ilicitude do ato ou facto tributado e sua sanção deverá situar-se no domínio pré-tributário ou extratributário do Direito comum (civil, penal ou administrativo, p. ex.), subsistindo a tributação das atividades ilícitas em vista da capacidade contributiva detetada, em obediência, de resto, ao princípio geral do direito fiscal da igualdade tributária (horizontal e vertical).

K). Nem cabe arguir no caso que a tributação dos atos ou factos ilícitos exclui a tributação dos atos ou factos colocados fora do circuito económico, porque essa exclusão reporta-se à ilicitude absoluta, não da ilicitude relativa, derivada da falta de requisitos formais ou de autorização legal.

L). E, quanto à falta de autorização legal para a transmissão das infraestruturas aludidas, cabe salientar que esta não se revela impossibilidade tal que corresponda à mencionada ilicitude absoluta erigida pela doutrina como impeditiva da tributação de atos ou factos ilícitos, pois, como refere o STA, em acórdão de 08.09.2011 tirado no processo nº 0267/11, o facto das coisas públicas não poderem ser objeto de contratos de direito civil, nem reduzidas à propriedade privada ou ser objeto de posse civil, não significa que elas não possam ser subtraídas ao domínio público e integradas no domínio privado e que, na sequência desta alteração, não possam ser objeto de atos de comércio.

M). Assim, a autonomia do Direito Fiscal em relação a outros ramos de Direito, como o Direito privado, evidencia-se e encontra a sua razão de ser na natureza da relação jurídica fiscal, fundada no princípio da legalidade tributária por força do qual a relação jurídica se constitui, verificado o facto tributário previsto na lei.

N). Cumpre então objetar que a douta sentença recorrida aprecia a legalidade da liquidação impugnada não pela sua admissibilidade perante os normativos tributários, mas ajuizando da sua legalidade no plano cível ou administrativo, o que não deve ter lugar em processo judicial tributário impugnatório de ato de liquidação.

O). O facto tributável, enquanto facto típico, só existe como tal desde que na realidade se verifiquem todos os elementos de incidência previstos nas leis tributárias que, desta perspetiva, se convertem em elementos do facto tributário.

P). Diante da inexistência de um conceito de transmissão entre as normas respeitantes à sisa, esse conceito de transmissão é caracterizado de harmonia com os princípios que afloram dos art°s 1º, 2º, 8º e 152° do Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações (CIMSISD), “em face dos quais a transmissão compreende não só a transmissão civil como também a transmissão económica, ou de facto, mesmo que despida de formalidades legais ou ferida de nulidades ou anulabilidades não reconhecidas judicialmente, salientando-se a situação material resultante da simples mudança dos possuidores dos bens”.

Q). Dai que a eventual ilicitude juscivilística ou outra dos negócios jurídicos em virtude de os bens transmitidos supostamente integrarem o domínio público não os torna, por regra, irrelevantes em matéria fiscal, o que vale por dizer que não obsta à tributação do facto subsumível às normas de incidência de um dado tipo impositivo, como o Imposto Municipal de Sisa em causa.

R). Decidindo da forma como decidiu, e visto que a impugnante não conseguiu demonstrar, como lhe competia, a inexistência de facto tributário, não pode deixar de manter-se o ato impugnado em vigor na medida em que estão preenchidos os pressupostos de aplicação das normas de incidência em causa.

S). Entende assim a Fazenda Pública, sempre ressalvando o respeito tido pelo Douto Tribunal a quo, que é muito, que a douta sentença recorrida padece de erróneo julgamento de facto e de direito, vício que obsta à eficácia ou validade da dicção do direito e deve ter por consequência a sua revogação.

Nestes termos e nos mais de Direito aplicável, requer-se a V.as Ex.as se dignem conceder PROVIMENTO ao presente recurso e, por isso, determinar a revogação da sentença recorrida por padecer de erróneo julgamento de facto e de direito, vício que obsta à eficácia ou validade do ato jurisdicional que incorpora, com as legais consequências.

II. Em contra alegações, a entidade recorrida veio defender a improcedência do recurso, nos termos expostos no articulado a fls. 86 a 92, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

III. O Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer junto aos autos, no sentido da procedência do recurso “…quanto ao fundamento da falta de fundamentação dos juros compensatórios” e de que deveria apurar-se o valor do património imóvel efetivamente transmitido.

IV. Colhidos os vistos legais cabe agora decidir.

V. Com interesse para a decisão, foram dados como provados em 1ª instância os seguintes factos:

A) - Em 27.03.2000, a impugnante e o Município de Vila Nova de Gaia subscreveram um “Contrato de locação de universalidade de bens” com o seguinte teor - cfr. fls. 74 a 80:

“Considerando que:
1 — A Sociedade é a concessionária exclusiva da conceção, construção, exploração e gestão do sistema multimunicipal de captação, tratamento e abastecimento de água, para consumo público, do Sul do Grande Porto;
2— O Município integra o referido sistema;
(…)


(Afetação das infraestruturas)
1 - As infraestruturas pertencentes ao MUNICÍPIO e que, agora, estão na titularidade da EMPRESA, descritas no Anexo 1 a este contrato, ficam afetas à concessão a partir do próximo dia 1 de abril de 2000.
2 - Nessa data, a posse das referidas infraestruturas é conferida pelo MUNICÍPIO e pela EMPRESA à SOCIEDADE, a fim de esta iniciar a respetiva exploração.


(Início e duração do contrato)
O presente contrato tem o seu início em 1 de abril de 2000 e durará pelo período que durar a concessão, renunciando, expressamente, o MUNICÍPIO e a EMPRESA ao direito de resolverem, unilateralmente, seja por que motivo for, o presente contrato, antes do seu termo.


(Contrapartidas pela locação)
1 - Como contrapartida da concretização da afetação à concessão das aludidas infraestruturas, nos termos supra referidos, a SOCIEDADE obriga-se a pagar ao MUNICÍPIO:
a) uma importância a título de renda anual, correspondente a 3% do valor atual das infraestruturas, a encontrar pela Comissão de Avaliação que, ainda, se mantém em funções, renda essa actualizável nas condições indicadas no Anexo 5 ao contrato de concessão;
b) a compensação financeira prevista nas cláusulas 49ª do contrato de concessão, e 8ª, do contrato de fornecimento.
2 - Com base nas estimativas da avaliação das referidas infraestruturas fornecidas pela Comissão de Avaliação, acordam as Partes em que o valor global das rendas anuais vincendas até ao termo do contrato, bem como o valor da compensação financeira, umas e outra devidamente atualizadas, atingem o somatório de 3 400 000 000$00 (três mil e quatrocentos milhões de escudos) que a SOCIEDADE vai pagar ao valor esse engloba:
a) - por antecipação, a do contrato; e
b) - por antecipação, a totalidade das prestações devidas pela referida compensação financeira.

(Forma de pagamento)
1 - A importância global referida no número 2 artigo anterior será paga ao MUNICÍPIO do seguinte modo:
a) - 340 000 000$00 (trezentos e quarenta milhões de escudos), na data da assinatura do presente contrato e de que o MUNICÍPIO dá completa quitação; e
b) - o restante, no prazo de 90 (noventa) dias a contar da assinatura do presente contrato.
2 - O MUNICÍPIO e a EMPRESA, entre si decidirão da forma e modalidade de atribuição, ou distribuição, daquele valor.
3 - No termo do contrato as infraestruturas ora locadas, passarão para a propriedade da SOCIEDADE, a título gratuito.

(Restituição antecipada das infraestruturas)
1 - No caso de rescisão antecipada do contrato de concessão, operada pelo Concedente, o MUNICÍPIO e a EMPRESA obrigam-se, conjunta e solidariamente, face à SOCIEDADE, a restituir-lhe a importância equivalente às rendas adiantadas e não vencidas, importância essa calculada nos termos em que o foi para efeitos de antecipação das rendas.
2 - Na hipótese prevista no número anterior, a SOCIEDADE goza do direito de retenção sobre as infraestruturas até que lhe seja restituída a importância que lhe for devida.

(Conclusão de negociações pendentes)
1 - No prazo máximo de 90 dias, após a assinatura do presente contrato devem as Partes providenciar pela conclusão:
a) - dos trabalhos da Comissão de Avaliação que deverão lavrar auto de vistoria “Ad Perpetuam Rei Memoriam” nos termos previstos no artigo 50.° do contrato de concessão; e
b) - dos trabalhos que visam formalizar o processo e modalidades de integração dos funcionários e agentes dos ex-SMG na SOCIEDADE, nos termos previstos na cláusula 10º, do contrato de fornecimento.
2 - Concluídos os trabalhos a que se refere o número anterior será, de imediato, outorgado entre as Partes um contrato adicional ao presente onde se fixarão, de forma definitiva, as condições aqui deixadas em aberto, adaptando-se e aditando-se em conformidade com os resultados dos relatórios das comissões em exercício.

(Eficácia e entrada em vigor do contrato)
O disposto no artigo anterior não prejudica a eficácia do presente contrato, nem a sua entrada em vigor, no próximo dia 1 de abril de 2000.

(Disposição transitória)
1 - Desde o dia 1 de abril de 2000, data do início do presente contrato, e pelo período de 60 dias, o MUNICÍPIO e a EMPRESA manterão ao serviço da exploração os funcionários que vêm operando com as infraestruturas locadas, sob a orientação da SOCIEDADE, a fim de não se verificarem descontinuidades, ou perturbações, do normal desenvolvimento da exploração.
2 - A SOCIEDADE, nesse período, suporta todos os encargos com esse pessoal.
(…)

Infraestruturas de abastecimento de água a integrar no sistema adutor principal
Captação e estação elevatória (1ª Fase) de Lever;
Reforço da estação elevatória de Lever;
Reservatório e estação de tratamento de Seixo Alvo;
Estação elevatória de Seixo Alvo;
Reservatório do Alto Marquinho;
Conduta EE Lever-Seixo Alvo;
Conduta Seixo Alvo — Alto Marquinho;
Conduta Alto Marquinho — Nó 24 (Camalhões);
Conduta Nó 26-Nó 28 (Lourosa);
Conduta Seixo-Alvo - Nó 14
Conduta Nó 14— Nós 18/19 (Der Póvoa Alta/Baixa);
Conduta Nó 18/19 — Reservatório de Nogueira.”

B)- Com data de 15.02.2008, foi elaborado “Relatório de inspeção tributária”, por referência à impugnante com o seguinte teor - cfr fls. 11 a 29 do PA apenso aos presentes autos:
“(...) Ordem de Serviço n.º OI 2007 05342
(...)


II. OBJETIVOS, ÂMBITO E EXTENSÃO DA AÇÃO INSPETIVA

II.1 Credencial e período em que decorreu a ação

Ação efetuada a coberto da OI 2007 05342, de 20 07-11-19, iniciada em 2008-01-09 e concluída em 2008-01-22, com a assinatura da nota de diligência.
II.2 Motivo, âmbito e incidência temporal

A presente ação de inspeção foi desencadeada em resultado de uma ação inspetiva efetuada à empresa “Águas de Gaia, E. M.”, NIPC: 504 763 202.
Ano inspecionado: 2000.

II.3 — Outras situações

II.3.1 — Caracterização da empresa

Através do Decreto-Lei n.º 116/95, de 29 de maio, foi constituída a Sociedade A………, SA (art. 3°). A Sociedade A……….., SA, tem como objeto social a exploração e gestão do sistema multimunicipal de captação, tratamento e abastecimento de água à área Sul do Grande Porto. Incluem-se ainda no objeto social da sociedade, nomeadamente, a construção, extensão, reparação, renovação, manutenção e melhoria das obras e equipamentos necessários para o desenvolvimento da sua atividade. Para prossecução do seu objeto social foi atribuída, em 1996-07-26, à sociedade A…………, SA, uma concessão pelo Estado Português, em regime de exclusividade por um prazo de 30 anos, na qual são estabelecidas as regras para a conceção, construção e exploração do sistema multimunicipal de abastecimento de água. (...).
(…)
III DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORREÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS Á MATÉRIA TRIBUTÁVEL

III. 1 — Factos

III.1.1 - Entre o Município de Vila Nova de Gaia (doravante designado por Município), com o NIPC: 680.017.178 e a sociedade A…………, SA, com o NIPC: ……… foi celebrado, em 1996-07-26, um Contrato de Fornecimento de Água, por via do qual esta sociedade se obriga a fornecer água ao Município, com vista ao abastecimento público, de acordo com as condições estabelecidas no Contrato de Concessão que celebrou com o Estado, ficando, de acordo com aquele contrato de fornecimento (cláusula 7ª) afetas à concessão as Infraestruturas pertencentes ao Município, que constam do Anexo 1 ao presente relatório, a partir da data de inicio da exploração do sistema multimunicipal, mantendo-se o mesmo na propriedade do Município.

III.1.2 - De acordo com o Contrato de Concessão, celebrado entre o Estado Português e a sociedade A………….., SA, em 1996-07-26, esta empresa é concessionária exclusiva da conceção, construção, exploração e gestão do sistema multimunicipal de captação, tratamento e abastecimento de água, para consumo público, do Sul do Grande Porto, assegurando o Município a captação, tratamento e distribuição de água aos munícipes e a afetação à concessão das captações, condutas, reservatórios e estações elevatórias.

III.1.3 - Em 1999-04-12 é constituída a empresa Aguas de Gala, EM, NIPC 504 763 202, com o CAE: 41000 - Captação, tratamento e distribuição de água (...), para a qual são transferidas todas as infraestruturas pertencentes ao Município e que anteriormente se encontravam afetas aos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de Vila Nova de Gaia (SMAS).

III.1.4 - Em 2000-03-27 o Município de Vila Nova de Gaia e a empresa Águas de Gaia. EM, celebram com a sociedade A…………….., SA, um “contrato de locação de universalidade de bens”, sendo as infraestruturas pertencentes à empresa Águas de Gaia, afetas por tal contrato à concessão (sendo concessionária a empresa A……………., SA), a partir de 2000-04-01 (artº 1º do contrato), sendo nessa mesma data conferida a sua posse à empresa A……………., SA.
Tal contrato entra pois em vigor e produz efeitos a partir dessa mesma data (2000-04-01), tendo a duração correspondente ao período que durar a concessão, inicialmente contratada com o Município.
Como contrapartida pela afetação dessas infraestruturas à concessão, a sociedade A………………., SA pagou ao Município uma importância, a título de renda anual, actualizável, correspondente a 3% do valor atual das infraestruturas (1.800.000.000$00), bem como uma compensação financeira prevista nas cláusulas 49ª referido contrato de concessão (resultante do agravamento do custo da água adquirida), e 8ª do contrato de fornecimento (1.600.000.000$00), renunciando aquele Município e a empresa Águas de Gaia ao direito á resolução do referido contrato (artº 2º)
O valor global das rendas anuais vincendas até ao termo do contrato, bem como o valor da referida compensação financeira (devidamente atualizadas), acordado, atingiu o montante de € 16.959.126,50 (3.400.000.000$00), tendo sido pago, por antecipação (nos termos dos artº 3.° e 4.° do contrato de locação), da seguinte forma:
• € 1.695.912,85 (340.000.000$00), na data (2000-03-27) da assinatura do contrato de locação em causa;
• O restante, € 12.263.215,65 (3.060.000.000$00), em 2000-06-28.
De referir que conforme previsto no n.º 2 do artº 4 (Forma de Pagamento), do Contrato de Locação de Universalidade de bens, “O Município e a Empresa, entre si decidirão da forma e modalidade de atribuição, ou distribuição, daquele valor”
Ainda de acordo com esse mesmo contrato (ponto 3 do artº 4º), no termo da locação, as infraestruturas locadas passam para a propriedade da empresa A………………, SA, a título gratuito.

III.2 - Tratamento contabilístico efetuado
III.2.1 - Contabilização da Operação
III.2.1.1 - Na empresa Águas de Gaia, EM.

De acordo os registos contabilísticos, existem os seguintes lançamentos associados a esta operação:

Em 2000-12-31:
Lançamento N.° 2000130032 (Comp. p/concessão infraestruturas)
- Débito 26.641196: O. D. Credores Câmara V. N. Gaia Esc. 1.800.000.000$00 (€8.978. 36Z 15)
- crédito 27.49 - Outros Proveitos Diferidos Esc. 1.800.000.000$09 (€8.978. 362 15)
Lançamento N.° 2000130033 (Comp. financeira p/concessão).
- Débito 26.841196 - O. D. Credores Câmara V. N. Gaia Esc. 1.600.000.000$00 (€ 7.980.766,35)
- crédito 27.49 - Outros Proveitos Diferidos Esc. 1.600.000.000$00 (€ 7.980.766,35)
Lançamento N.° 2000130034 (Abate do imobilizado concessão)
- Débito 27.49 - Outros Proveitos Diferidos Esc. 1.291.704.000$00 (€6.442.992,39)
- Crédito 42221 - Estações captação/tratamento Esc. 109.754.000$00 (€547.450,64)
- Crédito 42222- Estações Eleva/Reservato. Esc. 391.857.000$00 (€1.954.574,48)
- Crédito 42223 - Condutas Adutoras/Elevat Esc. 790.093.000$00 (€3.940.967,27)
Lançamento N° 2000130035 (Abate do imobilizado concessão)
- Crédito 482221- Estações captação/tratamento Esc. 6.519.000$00 (€301.867,50)
- Crédito 482222- Estações Eleva./Reservato. Esc. 130.784.000$00 (€652.347,84)
- Crédito 482223- Condutas Adutoras/Elevat Esc. 197.909.000$00 (€987. 165.93)
- Débito 27.49 - Outros Proveitos Diferidos Esc. 389.212.000$00 (€1.941.381,27)
Conforme já referido, ficou previsto no n.º 2 do artº 4 (Forma de Pagamento), do Contrato de Locação de Universalidade de bens, que o Município e a Empresa, entre si, decidiriam da forma e modalidade de atribuição, ou distribuição, do valor da transmissão.

III.2.1.2 - Na sociedade A………….., SUMÁRIO

De acordo os registos contabilísticos, existem os seguintes lançamentos associados a esta operação:
• Em 2000-03-27 (celebração do contrato)
- Débito 42. Imobilizado Esc. 3.400.000.000$00
- Crédito 26110284- Câmara Municipal V. Nova de Gaia…..Esc. 3.400.000.000$00
• 2000-03-27 (1.° Pagamento)
- Débito 26l 10284- Câmara Municipal V. Nova de Gaia Esc. 340.000.000$00
- Crédito 12 - Depósitos à Ordem ……………...Esc. 340.000.000$00
• Em 2000-06-28 (Último Pagamento)
- Débito 261 10284 — Câmara Municipal V. Nova de Gaia Esc. 3.060.000.000$00
- Crédito 12- Depósitos à Ordem …………….Esc. 3.060.000.000$00

III.3 - Enquadramento do contrato em análise:

III.3.1 - A catalogação de um contrato como pertencendo a um determinado tipo contratual, é uma operação lógica subsequente á interpretação das declarações de vontade das partes e dela dependente, sem estar vinculado à denominação que os contraentes tenham empregado. Deve interpretar-se o acordado no sentido da enunciada vontade real das partes, segundo o critério imposto pelo artº 236°, n°2 do Código Civil, valorizando, para efeitos fiscais, a sua substância em relação à forma.
Há, pois, que proceder a uma interpretação da atividade negocial das partes, tendo por base o texto contratual e a relação negocial estabelecida, de modo a verificar se a nomenclatura utilizada pelos outorgantes e o tratamento que lhe foi dado serão ou não os corretos.

III.3.2 - Ora, pela análise do denominado contrato de locação, celebrado em 2000-03-27 entre o Município de Vila Nova de Gaia, a empresa Águas de Gaia e a sociedade A……………., constata-se, conforme referido no ponto 1, que o pagamento da retribuição e da compensação acordadas pela locação dos bens é efetuado, por antecipação, em duas fases: o primeiro pagamento, na data da assinatura do contrato; o segundo pagamento, nos 90 dias seguintes.
Ou seja, apesar do contrato em análise ter a duração que tiver a concessão, o pagamento das respetivas rendas foi pago, na sua totalidade, no início da vigência do contrato de locação.
Constata-se ainda que no ponto 3 do artº 4° do referido contrato se prevê que, no termo do contrato de locação, as infraestruturas focadas passam para a propriedade da A……………, SA, a título gratuito.
Pela leitura do referido contrato, bem como pelo que se encontra exposto supra, destacam-se elementos de vários tipos contratuais, a saber:
- Tendo em conta que a empresa Águas de Gaia, EM transfere para a sociedade A……………, SA por contrapartida de determinados pagamentos, o direito à utilização das infraestruturas (universalidade de bens), por um período de tempo acordado (30 anos a partir de 1996-07-26), preenche os requisitos necessários para o enquadrar juridicamente como um contrato de locação;
- No entanto, o facto de à data de início da operação existir acordo de transferência da propriedade no final do prazo da locação, constitui um dos elementos necessários à denominação de tal locação como financeira:
- Poderia também, enquadrar-se tal contrato na compra e venda a prestações com reserva de propriedade, uma vez que se prevê que a transferência da propriedade só ocorre no final do contrato.
No entanto, conclui-se que o contrato ora em análise consubstancia um contrato de locação - venda, previsto no n.º 2 do artº 936° do CC, tendo o recurso ao designado contrato de locação servido apenas como alternativa à compra e venda a prestações com reserva de propriedade, para assim se obterem efeitos práticos semelhantes aos propiciados por esta via.
Na locação financeira, o locatário financeiro não quer tornar-se proprietário, mas sim gozar da faculdade de utilizar o bem, diferindo para um momento posterior a decisão sobre a aquisição da propriedade, enquanto que no presente contrato se estabelece, logo de início, que no final do contrato os bens locados passam para a propriedade da A……………, SA.
No que diz respeito à venda em prestações com reserva de propriedade, este visa afastar o princípio de que a transferência da propriedade da coisa vendida se opera por mero efeito do contrato, transferindo-a para momento posterior e garantindo ao alienante o cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte.
Ora, no caso concreto, constata-se que todas as obrigações emergentes do contrato se concretizam logo no início da sua vigência (há a transmissão correspetiva de duas prestações):
O pagamento do preço e da compensação acordado é efetuado logo nos primeiros 90 dias de vigência; a posse das infraestruturas em causa no contrato é conferida à sociedade A……………, SA logo no início do contrato, renunciando a empresa Águas de Gaia ao direito à resolução do mesmo.

III.3.3 - Concluímos pois, que o que as partes realmente quiseram com o contrato celebrado, apesar de o qualificarem como locação, foi vender e comprar, respetivamente, abdicando o vendedor da reserva de propriedade dos bens até ao final do contrato, uma vez que o preço se encontra totalmente pago, consubstanciando assim tal contrato a designada locação - venda. Este contrato desempenha a mesma função económica da venda a prestações com reserva de propriedade, sendo sujeito pelo legislador ao mesmo regime, de acordo com o já referido n.º 2 do art.º 936º. do CC.
Consta-se assim que, apesar de formalmente apelidado de “locação de bens”, o contrato em questão alberga, na sua substância, um verdadeiro “contrato de compra e venda”, verificando-se efetivamente a transmissão do bem quando do pagamento integral do preço, tanto mais que não faz qualquer sentido aguardar pelo final do contrato para que essa transferência se verifique, tendo em conta que as principais obrigações (“pagamento e entrega da coisa”) já se realizaram, encontrando-se os bens na posse do adquirente desde o início do contrato.

III.4 - Apuramento do Imposto Municipal de SISA

Nos termos do artº 1.º e do artº 2º conjugado com o n.º 1 do art.º 8º todos do Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto Sobre Sucessões e Doações (CIMSISSD), são sujeitas a SISA “As transmissões por compra e venda, troca, renda perpétua, renda vitalícia, arrematação, adjudicação por acordo ou decisão judicial, constituição de usufruto, uso ou habitação, direito de superfície e servidão”, pelo que, seria devido o respetivo Imposto Municipal de Sisa, no prazo de 30 dias contados da data do contrato (2000-03-27), conforme dispõe o n.º 4 do artº 115° do mesmo diploma.
Face ao exposto, conclui-se que sobre o valor de € 16.959.128,50, deveria incidir SISA, conforme determina o § 2 do artº 19° do CIMSISSD
Considerando a taxa prevista no n.º 1 do artº 33º conjugado com o artº 5º do CIMSISSD (legislação em vigor à data dos factos), a SISA devida na transmissão dos bens (Anexo 1) corresponde a € 1.695.912,85, conforme se determina:

Valor do ContratoTaxaValor da Sisa
€ 16.959,128,5010%€ 1.659.912,85
-------
------
------

(…)

VIII - DIREITO DE AUDIÇÃO – FUNDAMENTAÇÃO

1. O sujeito passivo foi notificado, em 2008-01-25, para nos termos do artº 60º da Lei Geral Tributária e do artº 60º do RCPIT, exercer o direito de audição, direito que exerceu, por via de petição escrita, com entrada nestes serviços em 2008-02-07.
2. Contesta o conteúdo do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária, “na parte em que considera existir fundamento para a correção em matéria tributária em sede de SISA, bem como da qualificação jurídica do contrato celebrado com o Município de Vila Nova de Gaia.
Continuando “a entender que tal contrato tem a natureza jurídica de um contrato de locação, não sendo devida sisa por ocasião da sua celebração”
(…)
4. Considerando os argumentos invocados no direito de audição, temos a referir o seguinte:
Nos termos do n.º 7 do artº 60º da LGT, apenas são tidos obrigatoriamente em conta os factos novos suscitados pelo sujeito passivo no exercício do seu direito de audição;
Ora, pela análise ao requerimento onde o sujeito passivo profere os seus argumentos, no uso daquele direito, conclui-se que o mesmo não invoca quaisquer factos novos, nem junta quaisquer elementos ou meios de prova suscetíveis de serem objeto de apreciação. No entanto, na observância do dever de fundamentação imposto pelo artº 77° da LGT, cumpre-nos comentar o requerimento ora apresentado, pelo que se passará de seguida à análise dá factualidade controvertida:
Nas alegações o sujeito passivo não colhe a opinião de que estamos perante um contrato de locação - venda, entendendo antes tratar-se de um contrato de locação.
Ora, diz-nos o Código Civil (CC), nos seus art°s 1022º e 1023º, que o contrato de locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição, dizendo-se arrendamento quando versa sobre coisa imóvel e aluguer quando incide sobre coisa móvel. O contrato de locação caracteriza-se assim por se tratar de um acordo pelo qual o locador transfere para o locatário, por contrapartida de um pagamento ou série de pagamentos, o direito à utilização de um determinado bem, por um período de tempo acordado (cedência temporária).
Já na locação - venda a aquisição da propriedade opera-se automaticamente com o pagamento da última prestação (a automaticidade do efeito translativo próprio da compra e venda a prestações com reserva da propriedade), sendo a transferência dá um efeito forçoso e imediato do contrato; as partes declaram estipular uma locação, mas convencionam que a propriedade passara para o locatário automaticamente com o fim do pagamento de todas as rendas ou alugueres convencionados, o que implica que as prestações não correspondam a uma contrapartida do gozo temporário da coisa, mas ao pagamento da transmissão da propriedade sobre ela, apenas com a diferença de que o pagamento ocorre antes da transmissão.
Por via do contrato ora em análise foram transmitidos os bens constantes do anexo..., os quais consistem em estações elevatórias de captação de água, reservatórios e condutas, que se encontram distribuídos por várias freguesias, muito embora a captação da água de toda esta rede se encontra em Lever.
Tais infraestruturas são classificadas como prédios urbanos, senão vejamos:
Dispõe o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI) no seu art.º 2º, n.º 1 que “prédio é toda a fração de território, abrangendo as águas, plantações, edifícios e construções de qualquer natureza nela incorporados ou assentes, com caráter de permanência, desde que faça parte do património de uma pessoa singular ou coletiva e, em circunstâncias normais, tenha valor económico, bem como as águas, plantações, edifícios ou construções, nas circunstâncias anteriores, dotados de autonomia económica em relação ao terreno onde se encontrem implantados, embora situados numa fração de território que constitua parte integrante de um património diverso ou não tenha natureza patrimonial”.
Ainda nos termos do artº 4° do CIMI, prédios urbanos são todos aqueles que não devam ser classificados como rústicos nos termos do artº 3° do CIMI.
Conforme muito bem refere o sujeito passivo, no ponto 15 do seu direito de audição a empresa Águas de Gaia, EM tornou-se proprietária dos bens em resultado da aquisição ocorrida em 1999 (à data da sua constituição). Assim, aquando da celebração do contrato que designaram por “contrato de locação de universalidade de bens” ocorreu a transferência da propriedade plena dos prédios que constam do anexo 1 para a sociedade A………………, SA.
Por conseguinte, os bens transmitidos através do referido contrato foram-no a título definitivo contrariamente ao referido no direito de audição. Nos nº 1, 2 e 6 da Cláusula 9ª docontrato de concessão para conceção, construção, exploração e gestão do sistema” celebrado entre o Estado português e a A……………, S.A. refere que: “1. Enquanto durar a concessão e sem prejuízo do disposto na cláusula seguinte, a concessionária detém a propriedade dos bens afetos à concessão que não pertençam ao Estado e aos Municípios; 2. Com ressalva do disposto no n.º 6 da presente cláusula e na cláusula seguinte, no termo da concessão, os bens a que se refere o número anterior, reverterão, sem qualquer indemnização para o Estado, (...) isto no caso da concessão não ser prorrogada; 6. A concessionária terá direito, no termo da concessão, a uma indemnização relativa aos bens que resultarem de novos investimentos (…)”.
Com efeito, independentemente a renovação ou não o contrato de concessão de exploração à sociedade A……………., SA os bens não regressam à titularidade da empresa Águas de Gaia, EM, por reverterem no fim da concessão para o Estado (clausula 9ª do contrato de concessão para conceção, construção, exploração e gestão do sistema)
Face ao exposto, como já referido no ponto III.3.3 deste relatório, consta-se que, apesar de formalmente apelidado de “locação de bens”, o contrato em questão alberga, na sua substância um verdadeiro “contrato do compra e venda”, uma vez que se verifica efetivamente a transmissão do bem aquando do pagamento integral do preço, por já se encontrarem já realizadas as principais obrigações (pagamento e entrega da coisa) e os bens já se encontrarem na posse do adquirente desde o início do contrato.
Acresce que, nos termos do artº 19° do CIMSISD, a SISA incidirá sobre o valor porque os bens foram transmitidos. Ora, o valor dos bens será o preço convencionado pelos contratantes (§ 2º do artº 19° do CIMSISD).
(…)”

C) - Em 19.02.2008, foi assinado “aviso de receção” referente a “Notificação do relatório de inspeção tributária”, dirigida à impugnante — cfr. fls. 30 a 32 do PA apenso.

D) - Em 12.03.2008, foi assinado “aviso de receção” referente ao ofício n.º 3273, de 11.03.2008, emitido pelo Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 1, dirigido à impugnante com o seguinte teor “(...) Assunto; liquidação de imposto municipal de sisa (...) Fica V. Ex. a notificada para; no prazo de dez (10) dias, solicitar neste Serviço de Finanças de V N. de Gaia-1, guias para pagamento da importância de € 1.695.912,85 de Imposto Municipal de Sisa, acrescido do montante de € 581.431,72 relativo a juros compensatórios, contados de 02-05-2000 a 15-02-2008, data de conclusão do relatório de inspeção, referentes à celebração entre a destinatária e o Município de Vila Nova de Gaia, NIPC 680 017 173, em 27-03-2000, do “Contrato de Locação de Universalidade de bens”, através do qual as infraestruturas pertencentes à empresa ‘Águas de Gaia, E.M., (...), no valor de € 16.959.128,50, são afetas à concessão (sendo concessionária a destinatária) a partir de 01-04-2000, sendo, nessa mesma data, conferida a sua posse à empresa “A………….., S.A.”. A presente liquidação tem por base o relatório da Divisão de Inspeção Tributária III, da DF Porto, transmitido pelo ofício n.º 13089/0506, de 18-02-2008, elaborado em resultado do procedimento externo de inspeção realizado ao abrigo da ordem de serviço 01200705342, de 19-11-2007. (…)”- cfr. fls. 85 e 86 do PA apenso.

E) - Em 05.05.2008, deu entrada no Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 1 a petição de impugnação judicial que deu origem aos presentes autos - cfr. fls. 3.

VI. A questão a conhecer no presente recurso consiste em saber se o contrato celebrado em 27.03.2000 entre o Município de Vila Nova de Gaia e Águas de Gaia, EM, por um lado e a Sociedade A……………., SA, por outro, constitui um contrato de locação ou um contrato de compra e venda, neste caso havendo lugar a liquidação de sisa pela transmissão.

VI.1. A recorrente entende que, não obstante as partes terem qualificado o contrato de “locação de universalidade de bens”, este deve legalmente qualificar-se como locação - venda, sujeita ao regime do artº 936º, nº 2 do Código Civil, uma vez que efetuado o pagamento das prestações a propriedade dos bens se transferiu para a referida Sociedade A……………., SA.
E, ainda que no plano administrativo se possa colocar a questão da ilicitude da transmissão por estarem em causa bens integrados no domínio público que seriam inalienáveis, pela sua natureza e afetação à utilidade pública, esse facto não afeta a tributação.
Com efeito, à tributação importam as circunstâncias reveladoras da capacidade contributiva manifestadas no facto, sendo indiferente o caráter lícito ou ilícito da disposição dos bens.
Isso mesmo resulta dos princípios aflorados nos artºs 1º, 2º, 8º e 152º do CIMSISSD, segundo os quais a transmissão compreende não só a transmissão civil como a transmissão económica ou de facto, mesmo despida ou anulabilidades não reconhecidas judicialmente, salientando-se a situação material de simples mudança dos possuidores dos bens.

VI.2. Por sua vez, a recorrida entende que estamos perante um verdadeiro contrato de locação, pelo que não há lugar a liquidação de sisa.
Com efeito, o contrato tem por base as regras constantes do DL nº 379/93, de 05 de novembro, sendo certo que ali se determina que os bens integrados na concessão revertem para o Estado, terminada a concessão.
Por outro lado, tratando-se de bens do domínio público, estão os mesmos fora do comércio jurídico, não podendo ser sujeitos a tributação.
Assim, pelo contrato de locação, apenas houve transferência para a recorrida do direito de uso, inerente à afetação das infraestruturas à concessão, havendo uma afetação provisória de bens, não estando o contrato pelas suas características, sujeito ao pagamento de sisa.

VI.3. O MºPº emitiu parecer do qual resulta o seguinte: a especificidade resultante da transferência das ditas infraestruturas ocorrer a final, em que estão pagas todas as rendas e uma compensação que é devida, não é de molde a afastar a incidência de sisa.
Já quanto ao valor a considerar para efeitos de sisa deverá ser o valor das infraestruturas.
Da matéria de facto dada como provada não resultam apurados outros valores, nomeadamente quanto a móveis ou direitos a considerar autonomamente relativamente ao direito à exploração e ao material transmitido.
Deste modo deve ser conhecido o fundamento da “errónea quantificação de valores” previsto no artº 99º, alínea a) do CPPT, o qual, embora invocado na impugnação não foi conhecido dada a prejudicialidade em face do decidido.
Relativamente aos juros compensatórios existe falta de fundamentação, uma vez que não consta expressamente indicada a taxa de juros.

VI.4. A decisão recorrida, por sua vez, entendeu que as infraestruturas em causa no contrato - estações elevatórias, estações de tratamento, reservatórios e condutas – não estão na disponibilidade dos particulares.
Com efeito, está em causa um serviço público essencial cuja permanência vai muito além do prazo de concessão, sendo impensável que tais bens passem para a propriedade dos particulares, quando a prestação daquele serviço se impõe sem reservas. Além do mais, findo o prazo de concessão, é imperioso que se mantenha a captação, o tratamento e o abastecimento de água, serviço esse que ficaria, inevitavelmente, afetado caso as infraestruturas em causa – necessárias à prestação de tais serviços – tivessem passado para a propriedade do particular anteriormente concessionário.
Estamos assim, perante bens inalienáveis pela sua própria natureza e afetação à utilidade pública, pelo que não se pode aqui falar em transmissão de bens sujeitos a sisa, independentemente de resultar do contrato a transferência de propriedade das referidas infraestruturas.

Vejamos então qual a tese que, em nosso entendimento, colhe o apoio legal.

VII. De acordo com as cláusulas 1ª e 2ª do contrato a que se refere o probatório supra, as infraestruturas pertencentes ao Município ficam afetas à concessão atribuída à Sociedade A…………….., SA, entrando esta na posse das mesmas na data da assinatura do contrato. E, o referido contrato durará pelo período que durar a concessão.

De acordo com a cláusula 3ª, como contrapartida da concretização da afetação à concessão das aludidas infraestruturas, a referida Sociedade pagaria ao Município uma renda anual e uma compensação financeira, resultando da cláusula 4ª, todavia que o valor total das rendas seria antecipado, sendo pago um valor na data da assinatura do contrato e o restante decorridos 90 dias sobre a data da assinatura daquele.

Portanto, até aqui nenhuma dúvida se coloca de que estamos perante um contrato de locação, já que, mediante o pagamento de uma renda, a Sociedade passou a utilizar bens do Município para prestar um serviço público essencial, sendo que para o caso é irrelevante que o preço global tivesse sido pago antecipadamente. Aliás, a cláusula 5ª, previa que, no caso de rescisão antecipada do contrato de concessão, as rendas adiantadamente pagas e não vencidas seriam restituídas.

A questão que levou a Fazenda Pública à tributação em sisa, resulta do nº 3 da cláusula 4ª, segundo a qual “No termo do contrato as infraestruturas ora locadas, passarão para a propriedade da Sociedade, a título gratuito”.

Ora, a ser válida esta cláusula, parece que estaríamos, efetivamente, em face de um contrato locação - venda, já que a Sociedade veria serem para si transmitidas as infraestruturas locadas.

VII.1. Porém, e conforme refere a recorrida, o contrato em causa nos autos tem por base as regras constantes do Decreto-Lei nº 379/93, de 5 de novembro.

Ora, os artºs 1º, nº 1, 3º, nº 1, 4º e 7º do referido diploma, estabelecem, respetivamente, o seguinte:
“O presente diploma tem por objeto o regime de exploração e gestão dos sistemas multimunicipais e municipais de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de recolha e tratamento de resíduos sólidos”.

“A exploração e gestão dos sistemas multimunicipais pode ser diretamente efetuada pelo Estado ou atribuída, em regime de concessão, a entidade pública de natureza empresarial ou a empresa que resulte da associação de entidades públicas, em posição obrigatoriamente maioritária do capital social, com entidades privadas”.

Enquanto durar a concessão, a propriedade dos bens integrados nos sistemas multimunicipais e a ela afetos pertence à concessionária, revertendo para o Estado no termo da concessão.

Enquanto durar a concessão, a propriedade dos bens integrados nos sistemas municipais e a ela afetos pertence à concessionária, revertendo para os respetivos municípios no termo da concessão”.

Por outro lado, o próprio contrato de concessão, celebrado em 27.06.1996 entre o Estado Português e a Sociedade A…………….., SA, e que as partes demonstram conhecer pelas referências que lhe fazem nos autos, contém cláusulas relevantes sobre esta matéria e que de imediato passaremos a referir.

VII.2. Assim, de acordo com a cláusula 8ª do referido contrato de concessão, “Consideram-se afetos à concessão, além dos bens que integram o seu estabelecimento todos os imóveis adquiridos por via do direito privado ou mediante expropriação utilizados pela concessionária na sua actividade, bem como as servidões”.

A cláusula 9ª, por sua vez, estabelece no seu nº 1 que “Enquanto durar a concessão, e sem prejuízo do disposto na cláusula seguinte, a concessionária detém a propriedade dos bens afetos à concessão que não pertençam ao Estado e aos municípios”.
Porém, mesmo esses bens reverterão para o Estado, sem qualquer indemnização (excepção feita ao que dispõe o nº 6 e a cláusula 10ª) livres de ónus ou encargos, no termo da concessão - nº 2 da mesma cláusula.

Releva ainda para o caso dos autos a cláusula 10ª, relativa a “Reservatórios de água, estações elevatórias e redes de distribuição pertencentes aos municípios”, do seguinte teor:

“1.São afectos à concessão, pelos municípios utilizadores as captações, as condutas, os reservatórios e as estações elevatórias constantes do anexo 4 ao presente contrato.
2. As infra-estruturas referidas no anexo 4 são cedidas à concessionária pelos Municípios nos termos previstos no presente contrato e mantêm-se na sua titularidade, sendo desafectadas da concessão no termo deste, ou por comum acordo com o Município, no caso de a concessionária reconhecer a desnecessidade da sua utilização.
3.Os órgãos e imóveis de qualquer natureza, das redes de distribuição de água para consumo público pertencentes aos municípios utilizadores e que em relação aos quais pode haver interesse em integrá-los em rede alta, poderão, mediante acordo ser por estes cedidos à concessionária a título gratuito ou oneroso, na parte em que sejam indispensáveis por parte desta.
4. Em qualquer caso, tornando-se desnecessária a utilização pela concessionária das redes de distribuição de água para consumo público referidas no número anterior estas serão devolvidas aos municípios cedentes.
5. No caso de existir património afecto ao presente sistema multimunicipal que seja património municipal a ceder onerosamente à concessionária nos termos do nº 3, o correspondente valor será determinado, salvo acordo diverso entre a concessionária e o município em causa através da comissão de avaliação…”

VII.3. No caso dos autos as partes celebraram em 27.03.2000 o contrato a que se refere a alínea A) do probatório supra.
Tal contrato tem de integrar-se no nº 3 da transcrita cláusula 10ª, pois que visa integrar na concessão bens que o não foram logo na data de assinatura do contrato de concessão – 27.06.1996.
E, assim, nada impedia a cessão a título oneroso dos bens objecto do contrato por parte do município, uma vez que se tratava de bens seus.
Por outro lado, o preço dessa cessão foi determinado pela Comissão de avaliação referida no nº 5 da cláusula 10ª.

Daqui poderemos então concluir que o contrato em causa na alínea A) do probatório obedece às regras previstas no contrato de concessão celebrado entre o Estado Português e a Sociedade A………….., SA, e que é também legal o valor pago pela concessionária ao município pela cedência das infra-estruturas de sua propriedade.

Em face do contrato de concessão e das normas legais acima transcritas, essas infra-estruturas, no termo do contrato de concessão (ou até no decurso deste – nº 4 da cláusula 10ª transcrita) reverterão para o município.

Ora, assim sendo, não existe legalmente a possibilidade de transmissão da propriedade para a concessionária, pelo que não se pode entender o contrato em causa nos autos como contrato de compra e venda.

Aliás, não se compreenderia um contrato de compra e venda com uma cláusula como a 5ª, segundo a qual “No caso de rescisão antecipada do contrato de concessão, operada pelo Concedente, o MUNICÍPIO e a EMPRESA obrigam-se, conjunta e solidariamente, face à SOCIEDADE, a restituir-lhe a importância equivalente às rendas adiantadas e não vencidas, importância essa calculada nos termos em que o foi para efeitos de antecipação das rendas”.

Se de contrato de compra e venda sujeito a sisa se tratasse, a concessionária, pago o preço, ficaria sempre com a propriedade dos bens.
Essa cláusula só se compreende interpretando-a com recurso ao contrato e às normas legais acima transcritas, isto é, a concessionária mantém-se proprietária dos bens enquanto durar a concessão; terminada a concessão, os bens reverterão para o município; uma vez que o contrato celebrado pelo município se prolonga até ao termo da concessão, terminando ela antes do prazo acordado, e tendo a concessionária pago o valor acordado até ao termo da concessão, à mesma seria devolvido o valor das restantes prestações.

VII.4. Como se referiu, porém, a recorrente Fazenda Pública entende que estamos perante um verdadeiro contrato de compra e venda e que o artº. 10º da Lei Geral Tributária preceitua que o caráter ilícito da obtenção de rendimentos ou da aquisição, titularidade ou transmissão dos bens não obsta à sua tributação quando esses atos preencham os pressupostos das normas de incidência aplicáveis.

Assim, ainda que estejamos perante acto ilícito - que seria a transmissão do direito de propriedade de bens do domínio público - a tributação, reportando-se unicamente às circunstâncias reveladoras de capacidade contributiva manifestadas no ato ou facto, é indiferente ao caráter lícito ou ilícito da obtenção ou disposição dos bens, sendo este um aspeto da natureza valorativamente neutra da tributação, doutrinalmente reiterada, e uma das vertentes da consideração económica dos factos ou atos com relevância jurídica tributária.

No direito fiscal, quem atua de modo ilícito não pode tirar partido no âmbito fiscal da cominação de outro ramo de Direito, devendo sujeitar-se à tributação prevista na lei, razão pela qual desde que o Fisco tenha diante de si um ato ou contrato suscetível de, em abstrato, operar uma transmissão, não pode deixar de efetuar a liquidação do imposto correspondente.

No caso concreto e quanto à falta de autorização legal para a transmissão das infraestruturas aludidas, cabe salientar que esta não se revela impossibilidade tal que corresponda à mencionada ilicitude absoluta erigida pela doutrina como impeditiva da tributação de atos ou factos ilícitos, pois, como refere o STA, em acórdão de 08.09.2011 tirado no processo nº 0267/11, o facto das coisas públicas não poderem ser objeto de contratos de direito civil, nem reduzidas à propriedade privada ou ser objeto de posse civil, não significa que elas não possam ser subtraídas ao domínio público e integradas no domínio privado e que, na sequência desta alteração, não possam ser objeto de atos de comércio.

Alega ainda a recorrente que o negócio em causa nos autos preenche o conceito de transmissão caracterizado de harmonia com os princípios que afloram dos art°s 1º, 2º, 8º e 152° do Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações (CIMSISD), “em face dos quais a transmissão compreende não só a transmissão civil como também a transmissão económica, ou de facto, mesmo que despida de formalidades legais ou ferida de nulidades ou anulabilidades não reconhecidas judicialmente, salientando-se a situação material resultante da simples mudança dos possuidores dos bens”, pelo que a operação tem de ser tributada.

Será assim?

VII.4.1. Relativamente à invocação do artº 10º da LGT, cabe referir que não basta a celebração de um negócio ilícito, do qual aparentemente possa resultar proveito económico para haver tributação.

Com efeito, como referem Diogo Leite de Campos e outros - LGT Anotada e Comentada, 4ª edição, em anotação ao artº 10º citado, este artigo “Concretiza uma das vertentes da consideração económica dos factos ou actos com relevância jurídica tributária: a tributação é valorativamente neutra, reportando-se unicamente às circunstâncias (reveladoras de capacidade contributiva) do facto ou do acto.
É necessário, porém, que a obtenção ou disposição dos bens, enquanto tal, seja subsumível num quadro legal, independentemente, repete-se, do seu carácter ilícito. Não se trata de uma "sanção" para a ilicitude o tributar os actos ilícitos só pelo resultado económico. Há só que tributá-los, "normalmente”, sem atenção à sua ilicitude”.

Sobre esta mesma norma, Lima Guerreiro – LGT Anotada, Rei dos Livros, págs. 79 e segs., escreveu também o seguinte:

“…No entanto, o princípio da tributação das actividades ilícitas previsto no presente artigo não é absoluto. Só se aplica se estas preencherem os pressupostos das normas de incidência tributária. Sem o preenchimento do objecto de previsão legal, não tem lugar a tributação. Como afirma Nuno Sá Gomes no citado artigo, pág. 530, as normas de incidência não impõem nem vedam condutas, limitando-se a prever factos que, uma vez verificados, dão origem à obrigação tributária. Os seus efeitos jurídicos são automáticos, pelo que, verificada a conduta prevista e a correspondente manifestação de riqueza, tem lugar a obrigação do imposto. Quando a previsão integra uma actividade ilícita, esta não é avaliada em termos de ilicitude, mas como mero facto jurídico. A ilicitude a que a presente norma se refere não é, apenas a criminal, compreendendo igualmente a civil e administrativa.
5 - A dependência da tributação dos actos ou negócios ilícitos da condição do preenchimento dos pressupostos das normas de incidência aplicáveis exclui obviamente a tributação dos actos ou negócios colocados fora do circuito económico, que não podem ser senão absolutamente nulos.
9 – A tributação das actividades ilícitas pressupõe a capacidade contributiva.
Se, com a sanção ou por meio da sanção, for retirado ao agente todo o benefício económico que obteve com a prática do crime ou contra-ordenação, não se revela, a nosso ver, a capacidade contributiva que justifica a tributação do rendimento”.

Sobre esta matéria, a nível doutrinário, v. ainda Nuno Sá Gomes - "Notas sobre o problema da legitimidade e natureza da tributação das actividades ilícitas e dos impostos proibitivos, sancionatórios e confiscatórios", in "Centro de Estudos Fiscais, Comemoração do XX Aniversário", Vol. 11, págs . 513 e segs.

Também no acórdão deste STA de 04.04.2001 – Processo nº 025469, se escreveu que ao direito fiscal não é indiferente a tributação dos efeitos económicos pretendidos pelas partes, que, na realidade, se tenham produzido: é o que se tem denominado por ”realismo” o mesmo direito: a consideração económica dos factos ou actos com relevância jurídica tributária.

Regressando ao caso dos autos, temos que a Sociedade A…………………, SA não adquiriu por força do contrato, a propriedade definitiva dos bens (nem a poderá vir a adquirir no futuro, pelas razões acima referidas – reversão obrigatória dos bens para o município no termo da concessão). É certo que enquanto durar a concessão e de acordo com o artº 7º do Decerto-Lei nº 379/93, de 5 de novembro, a propriedade das infraestruturas lhe pertence, o que inculcaria uma transferência provisória de propriedade.
Porém, assim não acontece, uma vez que, tal como hoje refere o artº 415º, alínea c) do Código dos Contratos Públicos, constitui direito do concessionário utilizar, nos termos da lei e do contrato, os bens do domínio público necessários ao desenvolvimento das actividades concedidas.
“Grosso modo” poderemos então dizer que o concessionário é um proprietário precário dos bens do domínio público necessários ao desenvolvimento das actividades concedidas, não estando, por isso sujeito a sisa pelas infraestruturas adquiridas dos municípios e essenciais ao exercício da actividade concessionada.
Concluímos então nesta parte que o contrato em causa não demonstra em relação à citada concessionária a aquisição de capacidade contributiva que determine tributação.

VII.4.2. O que ficou dito seria já suficiente para se decidir o recurso. No entanto, porque a recorrente invoca em defesa da sua tese o acórdão deste STA de 08.09.2011 proferido no Processo nº 0267/11 (1ª Subsecção do Contencioso Administrativo), não deixaremos de tecer algumas considerações para demonstrar que, em nosso entender, também a recorrente não tem razão neste seu argumento.

Vejamos então.

Refere a recorrente que o facto das coisas públicas não poderem ser objeto de contratos de direito civil, nem reduzidas à propriedade privada ou ser objeto de posse civil, não significa que elas não possam ser subtraídas ao domínio público e integradas no domínio privado e que, na sequência desta alteração, não possam ser objeto de atos de comércio.

Sobre esta questão, escreveu-se no mencionado aresto, o seguinte:

“M. Caetano ensina que “as coisas públicas estão fora do comércio jurídico privado, o que significa serem insusceptíveis de redução à propriedade particular, inalienáveis, imprescritíveis, impenhoráveis e não oneráveis pelos modos do direito privado, enquanto coisas públicas. ..... Mas considerando a situação das coisas públicas à luz das normas de direito público vemos que podem ser objecto de direito de propriedade por parte das pessoas colectivas administrativas (propriedade pública) e transferidas entre elas (transferências de domínio ou mutações dominiais) e admitem a criação de direitos reais administrativos e de direitos administrativos de natureza obrigacional em benefício de particulares (concessões) transmissíveis de uns a outros na forma da lei. As coisas artificiais podem mesmo ser objecto de desafectação do domínio público, acto que as reduz à condição patrimonial submetendo-as ao direito privado.” (Vd. Manual do Direito Administrativo, 10.ª ed., vol. II. Págs. 891 e 892).
E ensina também que a atribuição do carácter público dominial a um bem resulta não da forma ou das circunstâncias da sua aquisição mas da verificação de um dos seguintes requisitos: (1) da existência de norma legal que o inclua numa classe de coisas na categoria do domínio público, (2) de acto que declare que certa e determinada coisa pertence a esta classe e (3) da afectação dessa coisa à utilidade pública, sendo que esta afectação tanto pode resultar de um acto administrativo formal (decreto ou ordem que determine a abertura, utilização ou inauguração), como de um mero facto (a inauguração) ou de uma prática consentida pela Administração em termos de manifestar a intenção de consagração ao uso público Idem, pg.s 880 a 889 e 920 a 930.”

E mais adiante:

“Todavia, o facto das coisas públicas não poderem ser objecto de contratos de direito civil, nem reduzidas à propriedade privada ou ser objecto de posse civil não significa que elas não possam ser subtraídas ao domínio público e integradas no domínio privado e que, na sequência desta alteração, não possam ser objecto de actos de comércio. Ou seja, a lei não impede a alteração do regime de dominialidade das coisas públicas, alteração que se fará através da desafectação do bem integrado no domínio público e da sua integração no domínio privado, mas neste caso essa alteração tem de obedecer às normas legais que a consentem, designadamente as que respeitam à competência do órgão para a fazer”.

No caso dos autos, dúvidas não restam de que as infraestruturas transferidas para a Sociedade A……………, SA, integravam o domínio público municipal. E nessa qualidade passaram a fazer parte da concessão de que aquela é titular.
Sendo assim, não existiu qualquer desafectação de bens integrados no domínio público e sua integração no domínio privado, pelo que a argumentação da recorrente também não procede, uma vez que os bens não podiam entrar no comércio jurídico privado.

VIII. Portanto, e em conclusão, não podendo legalmente ser transmitida para a Sociedade A…………….., SA, no termo da concessão, a propriedade das infraestruturas constantes do contrato acima transcrito, não pode haver sujeição a sisa, não tendo aqui aplicação a doutrina defendida pela Fazenda Pública de tributação, mesmo no caso de o negócio ser nulo.

Se, à partida, é legalmente impossível o negócio de transmissão da propriedade que originaria a tributação, esta não pode ter lugar.

Pelo que ficou dito o recurso improcede.

IX. Nestes termos e pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 12 de Dezembro de 2012. – Valente Torrão (relator) – Ascensão Lopes – Pedro Delgado.