Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0484/17
Data do Acordão:11/16/2017
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ANA PAULA PORTELA
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
CULPA DO LESADO
NEXO DE CAUSALIDADE
VALOR
DANO
MORTE
Sumário: I - Tendo todo o comportamento anterior da vítima sido causa adequada da necessidade de um agente da GNR ter a arma de fogo preparada para disparar, caso fosse necessário, não obstante o manuseamento incorrecto e culposo que este veio a fazer da arma, podemos dizer que a vítima contribui em termos de causalidade adequada em 20%, para a ocorrência do dano.
II - E tal ocorre, independentemente de atentas as funções e preparações a que necessariamente o soldado da GNR foi sujeito, lhe ser mais exigível uma actuação cuidada no sentido de evitar o dano.
III - Mas, tal há-de relevar não em sede de causalidade adequada mas antes na fixação das percentagens de culpa do lesado e de culpa do autor do dano.
Nº Convencional:JSTA000P22541
Nº do Documento:SA1201711160484
Data de Entrada:04/24/2017
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:A....... E B.......
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo
I-RELATÓRIO

1. O MINISTÉRIO PÚBLICO, em representação do ESTADO PORTUGUÊS, interpõe recurso jurisdicional para o STA, ao abrigo do art. 150º do CPTA, do acórdão do TCAS, de 15 de Dezembro de 2016, que revogou parcialmente a sentença do TAF de Almada _ que julgara parcialmente procedente a acção administrativa comum interposta por A……….. e B……… _, condenando o R. Estado Português a pagar ao 1º Autor a quantia de € 325,00, acrescida da quantia a apurar em incidente de liquidação de sentença relativa às despesas de funeral, e juros de mora, à taxa legal, desde a citação, e ao 2º Autor a quantia de € 100.000,00, sendo € 70.000,00 pelo dano morte, € 10.000,00 pelo sofrimento da vítima até ao momento da morte e € 20.000,00 pelo sofrimento do filho da vítima, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação.

2. Para tanto o MP conclui as suas alegações da seguinte forma:

“1º. Impõe-se a intervenção do Supremo Tribunal Administrativo, face ao erro de julgamento evidente do Venerando Tribunal recorrido na aplicação do direito e deste aos factos, com o prejuízo daí decorrente para interesses públicos relevantes, podendo haver alarme social na condenação do Estado Português, dadas as circunstâncias que antecederam o evento danoso, para dissipar dúvidas sobre a matéria de direito em apreço e sobre o quadro legal que a regula, havendo utilidade prática na apreciação das questões suscitadas, tendo em vista uma boa administração da justiça, e por ser necessária a intervenção desse Tribunal para correção da situação, nos termos do art. 150º do CPTA.

2º No caso em apreço não se mostram preenchidos os requisitos da responsabilidade civil do Estado, dado que não ficou demonstrada a existência de ilicitude, da culpa, ou sequer a existência de nexo de causalidade entre o facto e o dano, considerados no douto Acórdão recorrido (cfr. jurisprudência atrás citada).

3º Não era previsível para o agente que a atuação descrita viesse a provocar a morte da vítima que só ocorreu por circunstâncias excecionais ou extraordinárias, pois que, de acordo com a doutrina atrás exposta, o facto gerador do dano só pode deixar de ser considerado causa adequada se se mostrar inidóneo para o provocar ou se apenas o tiver provocado por intercessão de circunstâncias anormais, anómalas ou imprevisíveis. E foi o caso!

4º Os factos em apreço verificaram-se durante o ano de 2006, pelo que não se aplica in casu o regime da responsabilidade civil prevista na Lei n.º 67/2007, de 31/12 (art. 12º nº 1, do C. Civil), tendo sido invocados como fundamento da condenação do Réu/Estado, os art. 494º, 495º, 496º e 566º, todos do C. Civil.

5º A vítima e o seu acompanhante eram suspeitos de furto de motociclo que estava na posse dos mesmos, a GNR procurava investigar a sua proveniência, os agentes foram previamente provocados, com insultos, ameaças e agressão, perseguiam os supostos criminosos imediatamente antes do disparo, o falecido era considerado um indivíduo perigoso por ser suspeito e estar a ser investigado em diversos inquéritos por crimes de uso de arma proibida, tinha na sua posse um x-ato, empreendeu a fuga, assim como o seu acompanhante, sem prestar os devidos esclarecimentos aos referidos agentes sobre a proveniência do veículo,

6º Na altura era de noite, cerca da meia-noite, e o local, onde os suspeitos de crime de furto se refugiaram e onde se verificou o disparo, era uma mata sem visibilidade, tinha o piso irregular e em declive ascendente, o agente que disparou estava receoso de agressão à sua integridade física, desconhecia o local e nem se apercebeu de que havia atingido o visado, nem queria fazê-lo, tratando-se de um disparo acidental e com total ausência de dolo, tendo ocorrido quando o agente corria em perseguição do falecido e só aconteceu porque a arma disparou inesperadamente quando a municiava,

7º O Autor B……….. tinha apenas 5 meses de idade, não tendo, sequer, demonstrado que vivia com o pai e a cargo deste e, apenas, provou que sofreu com a morte do mesmo e que tem dificuldade em a compreender,

8º O falecido, não obstante o seu percurso de estudante e as suas perspetivas futuras já era suspeito e investigado por ilícitos criminais relacionados com a posse de arma proibida, e era tido como pessoa que habitualmente andava armado, inclusive com armas de fogo, factos e circunstâncias que resultam provados pelas alíneas e) a o), m), n) a q), s) a w), u) a y), aa), dd), jj), hhh), nnn) e rrrr) a wwww), do probatório.

9º A atuação e a fuga dos suspeitos para um local de reduzida visibilidade manifestamente contribuiu para o sucedido, não sendo avisado pôr em causa a atuação legítima das autoridades, agindo como exposto, tendo o recurso a arma de fogo por parte do agente sido absolutamente necessária para eventualmente forçar os suspeitos a parar, evitar a fuga destes, para defesa e repelir eventual agressão previsível da parte dos mesmos, tendo respeitado os princípios da proporcionalidade e da necessidade (cf. Decreto-Lei n° 457/99, de 5 de Novembro).

10º Assim, apesar da conduta do militar da GNR, deveria o Tribunal Central Administrativo Sul ter excluído o pagamento de qualquer indemnização, devido à contribuição decisiva do lesado e sua conduta censurável, para o evento que lhe produziu a morte, sendo certo se pôs em fuga, quando devia ter esclarecido as autoridades sobre a posse do veículo e ter-se sujeitado à investigação por parte dos agentes de autoridade, como devia, e assim atua, qualquer cidadão bem comportado - art. 563º, a contrario, e 570º n.º 1, ambos do C. Civil.

11º Atendendo ao circunstancialismo exposto, não se mostram reunidos os pressupostos do direito de indemnização que conduziram à condenação do Estado Português, nem podia manifestamente proceder o pedido, devendo a ação ter sido julgada improcedente e não provada e este Réu ter sido absolvido do pedido, na sua totalidade, constituindo causa de exclusão da indemnização a conduta da própria vítima - art. 483º, 487º, 494º, 496º, 563º, 566º, e 570º, n. 1, todos do C. Civil.

12º Sem nada conceder, atendendo a que os valores atribuídos discriminadamente a título de danos não patrimoniais são de considerar indevidos, desmesurados, injustos e excessivos, face às circunstâncias e factualidade provada, à conduta e percurso da vítima, sendo de considerar, face à matéria provada, no mínimo, que o falecido concorreu substancialmente para a produção do evento morte, sendo as circunstâncias descritas causa concorrencial do evento danoso, o que deve relevar para a acentuada diminuição dos valores atribuídos.

13º Igualmente, tendo em conta a prática jurisprudencial sobre a matéria e com vista a uma aplicação em termos de igualdade e de justiça, relativamente a outros casos semelhantes, não devendo ser atribuídos valores muito próximos do limite máximo normalmente aplicado na atualidade pelos nossos Tribunais, uma vez que o caso em apreço não respeita a factos atuais, devem ser substancialmente reduzidos os valores parcelares atribuídos por danos não patrimoniais (cf. jurisprudência atrás transcrita e citada).

14º Deste modo, não ocorrendo a absolvição total do pedido por parte do, ora, Recorrente, ao menos, tendo em conta as circunstâncias do caso e os valores normalmente atribuídos nestas situações, devem ser fixados valores indemnizatórios muito inferiores aos atribuídos, sendo razoável concluir por uma repartição igualitária de culpas entre o agente e a vítima — art. 570º, n.º 1, do C. Civil (cf. jurisprudência citada num caso muito semelhante).

15º Sem nada conceder, mesmo que assim não se entenda, no caso em apreço, deve, pelo menos, considerar-se que a culpa, ou seja, o grau de censura dirigida ao autor do facto, se encontra muito mitigada, o que deve conduzir igualmente à já pedida redução dos valores indemnizatórios.

16º Nas quantias fixadas, ainda que com recurso à equidade, deve-se atender aos danos, ao grau de culpa do agente, à situação económica do lesado e do responsável civil e demais circunstâncias do caso — art. 494º, aplicável por força do art. 496º n.º 4, do C. Civil.

17º Pelo que, sem nada conceder no que concerne ao entendimento de que o Estado Português devia ter sido absolvido da totalidade dos pedidos, atendendo a que é ao Autor que incumbe a prova dos factos em que fundamenta o pedido (art. 342º do C. C) e que, apenas se provaram, no que concerne às consequências relativas ao evento danoso, os factos a que aludem as alíneas ss) e tt), para além dos factos já atrás indicados,

18º face ao nível de vida do nosso país e a que o Estado se encontra em situação de crise e falência, como bem reconheceu o douto Acórdão recorrido, e à situação económica do lesado, o valor global indemnizatório atribuído, deve ser reduzido a valor global não superior ao indicado, isto a 65.000,00€, assim discriminado: 50.000,00€ pelo dano morte; 5.000,00€ pelo sofrimento da vítima; e 10.000,00€ pelo sofrimento do filho da vítima.

19º O douto Acórdão de que se recorre enferma de erro de direito ou de julgamento, assim como da sua subsunção do direito aos factos provados, nomeadamente com ofensa e erro de interpretação e aplicabilidade do art. 2º do DL 48051, de 21/11/67, e dos art. 483º, 487º, 494º, 496º, 563.º a contrario, 566º, 570.º, n.º 1, e 572º, todos do C. Civil, devendo ser revogado e substituído por outro que decida em conformidade com o exposto.

Assim decidindo farão Vossas Excelências a costumada, JUSTIÇA!”

3. A……….. e B……….. concluem as suas contra-alegações da seguinte forma:

A. O recurso jurisdicional de revista tem uma natureza marcadamente excepcional e, portanto, a sua admissibilidade está circunscrita a elenco limitado e muito concreto de casos (cfr. o art. 150°, n.° 1 do CPTA).

B. O presente caso não se enquadra em nenhum desses casos,

C. No essencial, o Recorrente não se conforma com o sentido decisório do acórdão recorrido, mas, como é sabido, tal não o legitima a interpor o presente recurso.

D. Não é minimamente crível sustentar que a confirmação do acórdão recorrido, ao julgar procedente um pedido indemnizatório fundado nos danos decorrentes da prática de um crime de homicídio, é passível de provocar alarme social e/ censura da população em geral.

E. A conclusão diametralmente oposta seria, de resto, muito mais verosímil.

F. Não se descortina (e o Recorrente, em rigor, não as identifica) que questões de resposta complexa é que estão envolvidas no presente recurso.

G. Do mesmo modo, o Recorrente não fundamenta, nem de perto, nem de longe, a suposta existência de um erro flagrante de direito.

H. Em suma, não se encontra preenchido qualquer dos requisitos expressamente previstos no art. 150°, n.° 1 do CPTA.

I. Consequentemente, e à semelhança de muitas outras decisões tomadas no âmbito de recursos de revista que têm por objecto acções de responsabilidade civil, deve o presente Tribunal rejeitar liminarmente o presente recurso jurisdicional.

J. O Recorrente suscita questões novas em matéria de (in)verificação dos pressupostos da responsabilidade civil — mais concretamente, da ilicitude, culpa e nexo de causalidade (cfr. a 2ª a 8ª conclusões das alegações de recurso) —, que, não tendo sido discutidas pelo TCAS, não podem ser agora conhecidas pelo STA.

K. Em todo o caso, ainda que assim não se entenda, sempre dirá que a sentença do TAF de Almada é irrepreensível nesta matéria (cfr., em particular, as p. 42 a 57 da antedita sentença).

L. Como decorre, de modo muito claro, não somente do acórdão sindicado, mas também da sentença do TAF de Almada, no caso concreto não é aplicável o instituto da culpa do lesado.

M. Com efeito, é contraditório afirmar que o disparo do Réu C………… foi acidental — cfr. o facto provado indicado no ponto 31 do acórdão recorrido — e, do mesmo passo, sustentar que a conduta de D…………. foi relevante para a sua morte.

N. Na verdade, nem a conduta de D……….. na noite do crime, nem qualquer conduta dos suspeitos em momento anterior, relevaram na produção do dano em apreciação, sendo, por isso, insusceptíveis de legitimar a convocação e aplicação da culpa do lesado.

O. O montante indemnizatório arbitrado pelo TCAS (e pelo TAF de Almada) pelos danos não patrimoniais não é excessivo ou desproporcionado.

P. Desde logo, e contrariamente ao que refere o Recorrente, não é possível convocar aqui a aplicação da culpa do lesado.

Q. Acresce, que a indemnização devida, a título do dano morte, foi fixada, tendo designadamente em conta a prática jurisprudencial nesta matéria.

R. Não faz o menor sentido defender que não deveriam ser tidos em conta os acórdãos mais recentes, quando os factos que nos ocupam remontam a 2006, porque tais acórdãos também têm por base processos que se iniciaram vários anos antes.

S. No mais, não é minimamente coerente sustentar que a decisão deve atender à (actual) situação financeira do Estado, factor que certamente tem sido contemplado pela jurisprudência mais recente, e, simultaneamente, defender que não pode ser considerada essa mesma jurisprudência (mais actual).

T. O grau de culpa do Réu C………… foi sopesado na determinação da indemnização, sendo, algo surpreendente, que, após ter pugnado pela negligência grosseira do mesmo, o MP venha agora colocar a “tónica” da sua argumentação, quanto a este ponto, na culpa leve daquele.

U. Uma última palavra é devida, no que se refere especificamente à indemnização relacionada com o sofrimento do filho de D……….., que, a par da indemnização relativa ao sofrimento de D........ até ao momento da morte, não foi expressamente questionada no anterior recurso.

V. O indicado sofrimento (do filho de D………) não depende, necessariamente, da demonstração de que este vivia (com 5 meses de idade) efectivamente com o Pai.

W. Em síntese, não há nenhum motivo plausível que permita questionar a indemnização confirmada, a título de danos patrimoniais, pelo TCAS.

Termos em que, com o doutro suprimento de V. Exas.,

Deve o presente recurso jurisdicional ser liminarmente rejeitado, ou, se assim não se entender, deve ser-lhe negado provimento, mantendo-se definitivamente inalterada a decisão recorrida.”

4. A revista foi admitida por acórdão de 11.5.2017, da formação deste STA a que alude o nº5 do artº 150º do CPTA, donde se extrai o seguinte:

“ (...) 3.2. Na 1ª e 2ª instância o Estado Português foi condenado a pagar uma indeminização pela morte do pai do segundo autor, na sequência de um disparo efectuado, em serviço, por C……………, militar da GNR.

No recurso para o TCA Sul o MP colocou três questões: (i) considerou haver negligência grosseira do militar da GNR; (ii) considerou exagerados os montantes indemnizatórios; (iii) considerou ter havido culpa do lesado.

O TCA Sul apreciou as referidas questões.

Considerou não ter havido negligência grosseira, contextualizando a ocorrência, numa perseguição, nocturna, lícita, a um delinquente, potencialmente perigoso, provavelmente armado, isto é, numa situação de stress evidente, disparo acidental e involuntário, com a arma sem estar apontada a alguém, sem que o militar se tenha apercebido de ter atingido alguém.

Relativamente ao exagero das indemnizações atribuídas pelo dano morte (70.000,00 euros) e perda de alimentos do filho da vítima (50.000,00 euros), o TCA considerou que a quantia a título de ressarcimento do dano morte era adequada, dentro dos parâmetros seguidos pela jurisprudência. Julgou, ainda, procedente o recurso quanto ao dano pela perda de alimentos do filho da vítima. Daí que tenha modificado a sentença recorrida quanto ao montante das indemnizações fixadas na 1ª instância.

Quanto à culpa do lesado o TCA Sul afastou a argumentação do MP por não se ter provado qualquer causalidade entre a conduta do falecido (que fugia das autoridades policiais) e o disparo ilícito e negligente da arma de fogo pelo militar da GNR, nem lógica e consequentemente se provou qualquer actuação censurável do lesado, relacionada com o dano morte por ele sofrido.

3.3. No presente recurso de revista o MP coloca, para além de algumas questões que não colocou no TCA Sul (a existência de ilicitude, culpa, ou do nexo de causalidade) a questão do montante da indemnização devida pelo dano morte e a culpa do lesado.

O problema da culpa do lesado é, neste caso, um problema de grande relevância jurídica, sendo certo que da sua resolução depende também a quantificação do dano (art. 570º do CC).

Com efeito, no presente caso, a morte da vítima ocorreu num contexto de fuga às autoridades policiais. Em situações deste tipo há que ponderar em que medida a fuga da vítima aumenta o risco de ocorrência de danos – que podem ser muito graves – em termos relevantes para se poder falar em culpa do lesado. Com efeito, se a vítima não tivesse fugido, perante a intervenção da GNR, o facto lesivo de que resultou a sua morte não teria ocorrido – nos termos em que ocorreu.

Por outro lado, a gravidade das consequências no presente caso (morte), nas condições em que ocorreu, ou seja, perante uma fuga e perseguição policial, torna a questão de importância social de grande relevância.

Justifica-se, assim, admitir o recurso de revista, sendo que a resposta à questão da culpa do lesado se projectará necessariamente sobre a quantificação do dano indemnizável....”

5. As partes foram notificadas deste acórdão.

6. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II- MATÉRIA DE FACTO FIXADA NOS AUTOS

1. No âmbito do Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Comarca do Barreiro, o réu C…………. foi condenado a uma pena de prisão de um ano e três meses, suspensa na sua execução, pela prática como autor material de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º1, do Código Penal [documento de fls. 80 a 134 dos autos].

2. A referida sentença transitou em julgado no dia 05/09/2011 [documento de fls. 135 dos autos].

3. O réu C…………… é militar da Guarda Nacional Republicana, com a patente de soldado, quadro de infantaria, tendo-lhe sido atribuído o n.º 12/2010150, desde 2001 [acordo].

4. No ano de 2006, o réu C………….. encontrava-se na situação de ativo e em comissão normal de serviço no Posto Territorial de Santo António da Charneca, exercendo, atualmente, funções no Grupo Territorial de Almada [acordo].

5. No dia 05/02/2006, o réu C………..e o seu colega E..………. encontravam-se escalados para o serviço de patrulha às ocorrências, na área territorial do Posto da GNR de Santo António da Charneca [acordo].

6. Pelas 23h40, o réu C………….. e o seu colega E……….. avistaram um motociclo de marca Yamaha estacionado perto da porta do café denominado “…………”, existente na Rua ………….. [acordo e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

7. À data, o comandante da patrulha era o soldado E……….., sendo o réu C……….. o imediato da patrulha [acordo e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

8. Constataram que a chapa da matrícula se encontrava dobrada, não sendo visível, e que o canhão de ignição apresentava sinais de ter sido forçado, pelo que, suspeitando que tal motociclo teria sido furtado, aproximaram-se do mesmo [acordo e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

9. De seguida, desenvolveram diligências, junto da central rádio da GNR, no sentido de apurar se o motociclo constava do ficheiro de viaturas furtadas, bem como a identidade do seu proprietário [acordo e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro]

10. O mencionado motociclo tinha sido conduzido até ao mencionado local por D……….., o qual se encontrava no interior do aludido café, “……..”, juntamente com o seu amigo F……….. [acordo e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

11. Perto da meia-noite, os mencionados D………. e F………. abandonaram aquele café, tendo descortinado os militares da GNR junto ao motociclo [acordo, depoimento testemunhal e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

12. Perante isto, após acompanharem uma rapariga a casa e darem umas voltas, a fim de darem tempo aos militares para se irem embora, dirigiram-se para a rua onde o motociclo se encontrava estacionado [acordo e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

13. A proprietária do café, G……….., a quem o réu C……….. previamente perguntara se sabia de quem era o motociclo, trocou umas palavras com este, avisando-o que o D………e o F………. eram perigosos e costumam andar armados [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

14. O réu C………. já conhecia, por via da sua atividade profissional, o D…………, referenciando-o como pessoa que detinha habitualmente armas de fogo, informação que, à data, não transmitiu ao colega, E…………[sentença proferida no Processo n.º 48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

15. D………. e F………..foram abordados pelos militares da GNR, tendo o E……….. procurado saber quem era o proprietário do motociclo, ao que o F………. retorquiu, em tom provocatório, que “mesmo que soubesse, não diria” [acordo e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

16. Surpreendido com a forma como este respondeu, gerou-se entre ambos uma discussão, apelidando F………. ao militar da GNR, E………, de “cabrões e filhos da puta” e, dirigindo-se na direção do E……….., empurrou-o [acordo e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

17. E………, a dado momento, desferiu uma bofetada em F……….. [acordo e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

18. D......... procurava, por seu turno, apaziguar os ânimos, de forma verbal [acordo e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

19. Aproximando-se o réu C………… do colega, D……..e F…….. fugiram pela Rua ………….. e, previamente, junto a um café aí existente numa esquina, o Café ……….., F………. e D……… continuavam a apelidá-los de “filhos da puta”, dizendo-lhes “que viessem para ali, que lhes fariam a folha”, “que os iriam apanhar”, “que os iriam matar” [acordo e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

20. Previamente, junto ao posto da EDP, sito na Rua ……….., D…….. e F……… agacharam-se e, estando afastados e escondidos dos elementos da GNR, continuaram a proferir as expressões: “cabrões, filhos da puta” [acordo e sentença proferida no Processo n.º48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

21. Após, embrenharam-se numa pequena mata existente no local [acordo e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

22. O réu C……….e E……….entraram no carro patrulha e foram no encalço de D……… e de F………, igualmente se embrenhando mata dentro [acordo e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

23. Ao chegarem à entrada da mata, ambos se separaram, o réu C………… tendo penetrado na mata pelo lado direito e E……… pelo lado esquerdo, considerando a posição do réu C………… [acordo e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

24. O local em apreço consubstancia uma mata, com alguma densidade, mas escura, com um terreno algo acidentado e algum declive em sentido ascendente, na direção tomada pelo falecido D………. [acordo e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

25. Na mencionada noite, não existia luar, o local em apreço não estava dotado de iluminação elétrica, que se situa ao longo das artérias da mencionada localidade e cujos postes da EDP se encontram direcionados para a via pública [acordo e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

26. A praticamente inexistente luminosidade do local inviabilizava que o réu C………… se apercebesse do local onde se encontrava o colega, E………., só sabendo que estava à sua esquerda, ou o local ou direção para onde o falecido D………. e F………. se dirigiram [acordo e sentença proferida no Processo n.º48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

27. O desconhecimento do local, a praticamente inexistente luminosidade do mesmo, o desconhecimento do réu C…………. quanto à efetiva detenção ou não, naquele momento, por parte de D………… e de F………. de armas de fogo, a decisão de ambos os militares se separarem, a sua inexperiência de situações reais tal como aquela, o aviso da mencionada G……….. e o facto de saber que a falecida vítima habitualmente detinha armas de fogo, provocou no réu C…………. o receio de sofrer uma agressão por parte dos mencionados indivíduos, razão pela qual e por uma questão de proteção pessoal, retirou do coldre e empunhou a arma de serviço que trazia consigo, atribuída a um colega [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

28. A mencionada arma de fogo é uma pistola semiautomática, de calibre 9mm, Parabellum, marca Walther e modelo P38 [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

29. A arma de fogo em causa encontrava-se em boas condições de funcionamento, sem qualquer deficiência assinalável, quer ao nível do sistema de percussão, quer ao nível dos seus sistemas de segurança [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

30. Igualmente, por tais supra aludidas razões, o réu C…………. pretendeu deixar tal arma de fogo pronta a disparar, caso fosse necessário, e, para o efeito, destravou-a e puxou a corrediça atrás, por forma a introduzir na câmara uma munição [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

31. Concomitantemente com a realização de tal gesto, o réu C…………. tinha o dedo indicador, de forma instintiva, no gatilho [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

32. Ao puxar a corrediça atrás, encontrando-se o réu C…………. em passo de corrida, acionou, de forma acidental, o gatilho e, de forma não intencional e inesperadamente, foi produzido um disparo [sentença proferida no Processo n.º48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

33. Mal ouviu o disparo, F………. disse a D……… para fugirem daquele local e, de imediato, começou a correr sem olhar para trás, no pressuposto de que D……… ainda o acompanhava mais atrás [acordo e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

34. Devido à praticamente inexistente luminosidade e estado emocional em que se encontrava, assustado, F………… não se apercebeu que D……….não o acompanhou na fuga [acordo e sentença proferida no Processo n.º48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

35. Efetivamente, D……….. foi atingido pelo projétil disparado da arma de fogo que o réu C……….., à data, empunhava, o qual entrou no seu corpo, na sua parte frontal, sensivelmente a meio da linha entre o ângulo costal direito e o umbigo, provocando um orifício de entrada no hipocôndrio direito, com forma ovalada, com o diâmetro maior de mais ou menos 4 cms e 2 cms no eixo menor, projétil que saiu pelas costas [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

36. O réu C……….. não se apercebeu que tinha baleado D…….. e, juntamente com o seu colega, continuou a avançar para o interior da mata [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

37. Passados alguns minutos, encontraram D………. deitado no solo, na posição de decúbito dorsal, junto às traseiras de umas vivendas [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

38. Ordenaram-lhe por diversas vezes que se levantasse, tendo o mesmo respondido que não conseguia pôr-se de pé [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

39. Perante tal resposta e estranhando a mesma, o réu C……….. e o colega E……….. julgaram que D……… estivesse alcoolizado [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

40. Seguidamente, no aludido convencimento, cada um deles segurou os braços do D…….. e arrastaram-no durante mais de 30 metros até à orla da mata, onde seria mais fácil a ambulância circular, depondo-o no solo [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

41. Durante este processo, D………. foi despojado do seu vestuário, tendo as calças e roupa interior do mesmo descido ao nível dos joelhos [sentença proferida no Processo n.º48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

42. Um pouco antes das 00h46m, sensivelmente, o réu C……….. dirigiu-se ao carro patrulha e solicitou à central da GNR que diligenciassem pela deslocação de uma ambulância para prestar auxílio a D………, sendo transmitido à central e inerentemente à Corporação de Bombeiros Voluntários que se tratava de “uma pessoa caída na via pública” [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

43. Já após a chamada da ambulância, que ocorreu, entre corporações de bombeiros, pelas 00h46m, o réu C……….. e o colega E………. aperceberam-se que D………. sangrava e, por isso, o réu C……….. voltou a telefonar para a central, a hora não determinada, insistindo pela chegada da ambulância e advertindo que se tratava de um ferido com tiro [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

44. Só em tal momento, apercebendo-se que D…….. sangrava, o réu C……….. colocou e admitiu a hipótese de ter sido ele quem o atingira por via do disparo acidental que previamente produzira [sentença proferida no Processo n.º48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

45. Enquanto aguardava pela ambulância, D……… queixou-se e pediu socorro [depoimento testemunhal].

46. Quando chegou a ambulância, o corpo de D………. estava ensanguentado e este, que estava consciente, gemia e perguntava pelo filho [depoimento testemunhal].

47. Pelas 00h55m, a ambulância dos Bombeiros Voluntários Sul e Sueste do Barreiro chegou ao local – Vilas da Serra – Penalva –, tendo prestado ao falecido D……… os primeiros socorros e transportado ao Hospital Nossa Senhora do Rosário, no Barreiro, onde o mesmo veio a falecer, já no dia 6 de Fevereiro de 2006, pelas 10h41m, tendo aí sido previamente submetido a intervenção cirúrgica [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

48. Em resultado do aludido disparo produzido pela arma de fogo, que o réu C……….. empunhava, D……… sofreu isquémica orgânica generalizada, craniana, torácica e abdominal; ferida penetrante dos músculos para-vertebrais direitos num trajeto descendente e para a esquerda; perfuração do cólon direito ângulo hepático com esfacelo do mesmo; várias feridas perfurantes ileais e, ferida transfixiva da veia cava inferior com peritonite fecal, hemoperitoneu e hematoma retro peritoneal extenso, tendo sido a veia cava inferior suturada ao nível de L3-L4, na face anterior e posterior, com hematoma retroperitoneal, o que provocou choque hipovelêmico [sentença proferida no Processo n.º48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

49. Tais lesões foram a causa direta e necessária da morte de D…….., beneficiário da Segurança Social n.º ……….. [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

50. A posição do dedo indicador no gatilho, enquanto se municia uma arma de fogo, constitui a violação de uma das mais elementares normas de segurança no manuseamento de armas de fogo [sentença proferida no Processo n.º48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

51. Igualmente, o direcionamento do cano da arma de fogo para local suscetível de atingir terceiros, que não para o chão ou para o ar, enquanto se municia uma arma de fogo, constitui a violação de outra norma elementar de segurança no manuseamento de armas de fogo [sentença proferida no Processo n.º48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

52. O réu C……….. não desconhecia tais normas, sabendo que as deveria adotar ao recorrer à utilização de arma de fogo [sentença proferida no Processo n.º 48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

53. O réu C……….. nunca teve qualquer experiência com armas de fogo prévia ao seu alistamento na GNR [sentença proferida no Processo n.º48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

54. Na instrução, o réu C……….. teve formação ao nível de tiro, tendo-lhe sido atribuída a nota, a esse título, de 7,78 valores – de 0-20 valores –, tendo disparado, pelo menos, vinte vezes – cinco tiros de preparação e quinze tiros para atribuição da nota –, em três dias diversos, num período de 8 meses total de instrução, em período diário que não excedeu 1 hora [sentença proferida no Processo n.º48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

55. O réu C……….. não teve qualquer outra ação de formação de tiro subsequente à ministrada na instrução, durante o período de 2001 a 2006 e até aos factos [sentença proferida no Processo n.º48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

56. A formação ministrada ao réu C……….., inicial e subsequente, ao nível de tiro, manuseamento de armas de fogo, técnicas de intervenção policial e táticas das forças de segurança era, à data dos presentes factos, manifestamente insuficiente, não lhe permitindo a adoção instintiva dos mais elementares cuidados ao nível do manuseamento de armas de fogo, em concreto, o correto direcionamento do cano da arma, aquando da sua municiação e correto posicionamento do dedo indicador, que prime o gatilho, o que era igualmente do conhecimento do réu C……….. [sentença proferida no Processo n.º48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

57. Igualmente, o réu C……….. não desconhecia que o recurso a arma de fogo, no exercício das suas funções, só lhe era permitido em caso de absoluta necessidade, devendo constituir o último recurso, só adotado quando outras formas de dissuasão e intervenção se revelassem ineficazes e quando estivesse em causa a prevenção de crime grave contra as pessoas, a defesa contra agressão atual e ilícita do próprio ou de terceiros, em caso de perigo de morte ou ofensa grave ou a detenção de suspeito, em fuga ou que oferecesse resistência [sentença proferida no Processo nº48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

58. O réu C……….., na qualidade de militar da GNR, podia e devia ter mantido maior controlo da situação, o que não sucedeu [sentença proferida no Processo n.º48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

59. O réu C……….., ao retirar do coldre a sua arma de serviço, ao empunhá-la e municiá-la, sopesou de forma errada os pressupostos e necessidade do recurso a essa arma, não adotando a prudência e ponderação que são exigíveis no recurso a essa arma de fogo e inerente e prévia ponderação da sua necessidade e adequação, que lhe eram exigíveis enquanto militar da GNR e de que era capaz [sentença proferida no Processo n.º48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

60. O réu C……….. agiu de forma livre e consciente, não prevendo, sequer, como resultado possível da sua conduta a morte de D........ [sentença proferida no Processo n.º48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

61. O réu C……….. não ignorava que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal [sentença proferida no Processo n.º48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

62. A ambulância que transportou a falecida vítima, D………., foi chamada a deslocar-se a Vilas da Serra – Penalva, pelas 00h46, tendo sido a mencionada chamada realizada pelos BVB-CSP, chegando ao local pelas 00h55, percorrendo 29 km [acordo e sentença proferida no Processo n.º48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

63. Ao D……….. não foi encontrada qualquer arma de fogo, aquando da revista que lhe foi feita pelos militares da GNR, estando desarmado [sentença proferida no Processo n.º 48../06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

64. Nem D………., nem F……….., dispararam qualquer projétil na mencionada noite dos factos [sentença proferida no Processo n.º48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

65. D………. detinha um x-ato [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

66. Tendo o disparo supra referenciado ocorrido de forma inesperada e acidental, o réu C……….. não se assegurou se D……..ou F……… estavam armados ou se estes se preparavam para disparar sobre si ou sobre o seu colega [sentença proferida no Processo n.º48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

67. D……… tinha 19 anos de idade quando morreu [documento de fls. 209 e 210 dos autos].

68. D……….. era filho do autor A…………. [documento de fls. 209 e 210 dos autos].

69. D……….era pai do autor B……….. [documento de fls. 211 e 212 dos autos].

70. D………. era um jovem saudável, não padecia de qualquer patologia, sendo que, até à noite de 05/02/2006, nunca tinha tido quaisquer outros problemas de saúde que não fossem as doenças próprias da idade, como a varicela ou vulgares gripes e viroses [depoimento testemunhal].

71. D……… era um rapaz afável, muito sociável e bem-disposto, muito estimado por quantos consigo privavam [declarações de parte e depoimento testemunhal].

72. D………. beneficiava de um bom ambiente e acompanhamento familiar, tendo sempre vivido feliz com os seus irmãos e com o seu pai, que lhe proporcionaram um crescimento saudável e harmonioso e lhe transmitiram valores como a gentileza, solidariedade e o trabalho [declarações de parte e depoimento testemunhal].

73. D………. não era, nem nunca foi casado [declarações de parte e depoimento testemunhal].

74. D……….. encontrava-se a frequentar o 2.º ano, nível III, do curso de Técnico Comercial no Centro de Formação Profissional de Setúbal, que teve início em 2004, em regime de aprendizagem [documento de fls. 219 dos autos].

75. O referido curso terminava em 2007, o que conferiria, em caso de aproveitamento, o grau de equivalência ao 12.º ano de escolaridade [documento de fls. 219 dos autos].

76. D……….. estagiou na sociedade ………….., Lda. em 2004 e 2005 [documento de fls. 219 e 220, declarações de parte e depoimento testemunhal].

77. D……… era estimado pelos professores e colegas do curso que frequentava no Centro de Formação Profissional de Setúbal [declarações de parte e depoimento testemunhal].

78. No dia do funeral de D…………, muitos foram os seus colegas que se deslocaram ao cemitério, tendo-se deslocado numa camioneta junto com professores e pessoal da direção [declarações de parte e depoimento testemunhal].

79. Na data em que terminaram o curso, os colegas de D………. reuniram-se na sua campa e colocaram a sua fita de final de curso [declarações de parte e depoimento testemunhal].

80. D………. foi um aluno razoável no curso de Técnico Comercial que frequentava [documento de fls. 219 e 220 dos autos e depoimento testemunhal].

81. Dada a experiência de ter estagiado nos anos de 2004 e de 2005 na direção comercial da empresa do seu pai, D………. almejava terminar o curso e integrar aquela equipa, pretensão inteiramente exequível e instigada pelo seu pai [declarações de parte e depoimento testemunhal].

82. D………. pretendia seguir os passos do seu pai na sua empresa [depoimento testemunhal].

83. À data da sua morte, D………. era pai de um rapaz de 5 meses de idade, o 2.º autor, com …………. [documento de fls. 211 e 212 dos autos].

84. B…………, ora 2.º autor, frequentou o infantário desde os 6 meses até aos dois anos de idade [declarações de parte e depoimento testemunhal].

85. Desde 01/09/2007 até 31/08/2010, o 2.º autor frequentou a “………..” – ……….. Lda. [documento de fls. 214 dos autos, declarações de parte e depoimento testemunhal].

86. À data de entrada da presente ação, o 2.º autor tinha 7 anos de idade e frequentava a Escola Básica …………, desde 2011 [documento de fls. 215, declarações de parte e depoimento testemunhal].

87. O 2.º autor sofre com a ausência do pai [declarações de parte e depoimento testemunhal].

88. O 2.º autor tem dificuldade em compreender a morte do seu pai [depoimento testemunhal].

89. D………. nunca viveu com a mãe do seu filho [declarações de parte e depoimento testemunhal].

90. A mãe do 2.º autor tinha, à data de entrada da presente ação, 28 anos [documento de fls. 188 e depoimento testemunhal].

91. Quando morreu, D………. não tinha qualquer bem próprio ou quantia em dinheiro que pudesse fazer face à futura educação e sustento do seu filho [declarações de parte e depoimento testemunhal].

92. A mãe do 2.º autor esteve desempregada até ao ano de 2013 [depoimento testemunhal].

93. Devido à situação de desemprego da mãe do 2.º autor e do facto de esta não possuir quaisquer bens ou recursos que pudessem fazer face às despesas com o sustento e educação do seu filho, o 1.º autor suportou as despesas com a educação do seu neto, bem como as despesas com a sua alimentação, saúde e vestuário, no valor de cerca de €250.00 mensais [declarações de parte e depoimento testemunhal].

94. As despesas com o funeral de Paulo foram suportadas pelo 1.º autor [declarações de parte e depoimento testemunhal].

95. O 1.º autor despendeu a quantia de €325.00 com as despesas do cemitério [documento de fls. 218, declarações de parte e depoimento testemunhal].

96. Encontravam-se pendentes contra D............. os autos de inquérito n.º89./05.6GABRR, que correram termos nos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal de Família e Menores de Comarca do Barreiro, tendo-se apurado indícios de prática de crime de detenção de arma proibida [documento de fls. 297 a 299 dos autos e sentença proferida no Processo n.º48./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

97. Na acusação proferida nos autos referidos em 96), consta que D………. “dirigiu-se ao veículo de matrícula ………………., de onde trouxe uma espingarda semiautomática de caça, de calibre 12 mm, de coronha e canos serrados, marca Benelli, com o número rasurado, carregada com um cartucho do mesmo calibre. Ele havia-a emprestado alguns dias antes ao arguido …………, que desde então a passar a usar e a transportar no guarda bagagens do referido veículo.” [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

98. Nos autos referidos em 96), foram apreendidos a D……….: uma pistola de marca FT, modelo GT 28 cal. 6mm Salve, adaptada para calibre 6.35 mm; um carregador; seis munições calibre 6,35mm; uma pistola a gás, de marca GAMO, P-23 com o número 04-4C-146066-04; duas cargas de gás; uma caixa de chumbos cal. 4,5 vazia; um par de matracas em plástico; um corta vidros; uma espingarda caçadeira de marca Bennelli Armi, com o nº 121 SL 80, com canos serrados e coronha cortada; um cartucho de marca Fiocchi de calibre 12mm. [documento de fls. 297 a 299 dos autos].

99. D………. teve, ainda, pendentes contra si, os autos de inquérito n.º89./05.0TABRF, na qualidade de arguido, e os autos de inquérito n.º48./06.1GABRR, na qualidade de suspeito [documento de fls. e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

100. D………. era considerado pelas forças de segurança como uma pessoa perigosa, que, habitualmente, andava armado, incluindo com armas de fogo.

101. Na Fundamentação da sentença proferida no processo-crime, consta, designadamente, o seguinte: (…).” [documento de fls. 80 a 134 dos autos].

*

O DIREITO

1.Questão Prévia

Alegam os recorridos que o recorrente vem suscitar questões novas quer em matéria de (in)verificação dos pressupostos da responsabilidade civil — mais concretamente, da ilicitude, culpa e nexo de causalidade (cfr. a 2ª a 8ª conclusões das alegações de recurso) quer quanto às indemnizações relacionadas com o sofrimento do filho de D………. e deste até ao momento da morte.

E que, tais questões, porque não foram expressamente questionadas no anterior recurso para o TCAS e por isso não foram aí discutidas, não podem ser agora conhecidas pelo STA.

Na verdade, o MP alega no decorrer do seu articulado e que consta do nº 2º das suas conclusões, que “não se mostram preenchidos os requisitos da responsabilidade civil do Estado, dado que não ficou demonstrada a existência de ilicitude, da culpa, ou sequer a existência de nexo de causalidade entre o facto e o dano, considerados no douto Acórdão recorrido (cfr. jurisprudência atrás citada) e ainda no art. 18º ”face ao nível de vida do nosso país e a que o Estado se encontra em situação de crise e falência, como bem reconheceu o douto Acórdão recorrido, e à situação económica do lesado, o valor global indemnizatório atribuído, deve ser reduzido a valor global não superior ao indicado, isto a 65.000,00€, assim discriminado: 50.000,00€ pelo dano morte; 5.000,00€ pelo sofrimento da vítima; e 10.000,00€ pelo sofrimento do filho da vítima.”

Ora, as questões referidas na conclusão 18ª que se referem ao dano pelo sofrimento da vítima e ao dano pelo sofrimento do filho da vítima não podem ser aqui reavaliadas por não terem sido objecto de recurso para a 2ª instância e terem, por isso, transitado em julgado.

Já quanto à conclusão 2.ª e face àquilo que depois vem a seguir alegado/concluído pelo R. a alusão ali feita aos pressupostos da responsabilidade civil terá de ser lida, no contexto da impugnação do juízo de infração quanto ao art. 570 CC e contribuição do lesado para produção do evento danoso, cientes de que, todavia, no recurso perante o TCA o R. pôs em causa o pressuposto da culpa na vertente de que o soldado da GNR deveria ser responsabilizado por negligência grosseira aspecto que foi apreciado pelo tribunal e que aqui não veio a ser sindicado, assim transitando.

Pelo que, de tal tomaremos conhecimento.

2.Violação dos arts. 563º, a contrario, e 570º n.º 1, ambos do C. Civil

Invoca o MP que, apesar da conduta do militar da GNR, deveria o TCAS ter excluído o pagamento de qualquer indemnização, devido à contribuição decisiva do lesado para o evento que lhe produziu a morte.

Na verdade, ao pôr-se em fuga quando devia ter esclarecido as autoridades sobre a posse do veículo e ter-se sujeitado à investigação por parte dos agentes de autoridade, contribuiu de forma decisiva para os acontecimentos, devendo nos termos dos art. 563º, a contrario, e 570º n.º 1, ambos do C. Civil, ser o Estado isentado de qualquer pagamento.

Defendem, por sua vez, os recorridos que, como bem entenderam ambas as instâncias, no caso concreto não é aplicável o instituto da culpa do lesado.

Na verdade, é contraditório afirmar que o disparo do réu C………… foi acidental e ao mesmo tempo sustentar que a conduta de D………. foi relevante para a sua morte.

Concluem que a conduta de D………. na noite do crime, assim como a conduta dos suspeitos em momento anterior, são insusceptíveis de legitimar a convocação e aplicação da culpa do lesado.

Então vejamos.

Segundo este art. 570º nº1 do CC se um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida ou mesmo excluída.

Através da concorrência de culpas, atribui-se ao tribunal a faculdade de conceder totalmente a indemnização, reduzi-la ou mesmo excluí-la.

A este propósito diz-se na decisão recorrida:

“...A exclusão ou redução de indemnização por existência de culpa do lesado depende da existência de um nexo de causalidade adequada entre a sua atuação e o dano, a apreciar nos mesmos termos em que é feita a apreciação desse nexo entre a atuação do lesante e do dano e essa culpa tanto pode reportar-se ao facto ilícito causador dos danos, como diretamente aos danos provenientes desse facto (Acórdão do STA de 27-10-2004, Processo nº 01214/02).

Ora, (i) não se provou nenhuma causalidade entre a conduta do falecido (que fugia das autoridades policiais) e o disparo ilícito e negligente da arma de fogo pelo militar da GNR, (ii) nem, lógica e consequentemente, se provou qualquer atuação censurável do lesado relacionada com o dano morte por ele sofrido (este 2º requisito é, a nosso ver, o essencial - cfr. LUÍS MENEZES LEITÃO, D. das Obrig., I, 9ª ed., pág. 342).

Pelo que nenhuma conduta do lesado contribuiu (culposamente) para o dano sofrido.”

Tem vindo a ser entendido na doutrina e na jurisprudência que o art. 563.º do CC, norma que estabelece o regime do nexo de causalidade em matéria de obrigações de indemnização, consagra a teoria da causalidade adequada, na formulação negativa correspondente aos ensinamentos de ENNECERUS-LEHMANN, segundo a qual uma condição do dano deixará de ser causa deste, sempre que, «segundo a sua natureza geral, era de todo indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele, em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, sendo portanto inadequada para este dano».

Nessa medida, para que um facto seja causa de um dano é necessário, antes de mais, que no plano naturalístico, ele seja condição sem a qual o dano não se teria verificado. Depois há que ver se aquele facto era, em abstracto, ou em geral, segundo as regras da vida, causa adequada ou apropriada, para a produção do dano.

Como diz Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, vol. I, 4.ª edição revista e actualizada, págs. 578/579):

“… a doutrina mais generalizada entre os autores - a doutrina da causalidade adequada - que Galvão Telles formulou nos seguintes termos: «Determinada acção ou omissão será causa de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar». … A fórmula usada no artigo 563.º deve, assim, interpretar-se no sentido de que não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, como quem diz adequada desse efeito …”

E Vaz Serra em Obrigação de indemnização, in BMJ n.º 84, pág. 29 refere que não pode “… considerar-se como causa em sentido jurídico toda e qualquer condição, há que restringir a causa àquela ou àquelas condições que se encontrem para com o resultado numa relação mais estreita, isto é, numa relação tal que seja razoável impor ao agente responsabilidade por esse mesmo resultado. … Ora, sendo assim, parece razoável que o agente só responda pelos resultados, para cuja produção a sua conduta era adequada, e não para aqueles que tal conduta, de acordo com a sua natureza geral e o curso normal das coisas, não era apta para produzir e que só a produziram em virtude de uma circunstância extraordinária …”

Em suma há que aferir se:

_ no plano naturalístico o facto seja condição sem a qual o dano não se teria verificado;

_ se aquele facto era, em abstrato, ou em geral, segundo as regras da vida, causa adequada ou apropriada para a produção do dano.

Mas, daqui não resulta que não ocorra o referido nexo de causalidade quando o facto praticado pelo lesado não produz ele mesmo o dano, mas é causa adequada de outro facto que o produz, na medida em que este facto posterior tiver sido especialmente favorecido por aquele primeiro facto ou seja provável segundo o curso normal dos acontecimentos, não sendo necessária a previsibilidade do mesmo para o autor do facto desde que caiba na aptidão geral ou abstracta do facto para produzir o dano.

Atenhamo-nos aos factos relevantes a considerar no caso sub judice para atribuição do nexo de causalidade entre a actuação do lesado e o dano, a aferir nos termos gerais da responsabilidade civil, isto é, segundo a teoria da causalidade adequada prevista no art. 563º do CC.

_A proprietária do café, G…………., a quem o réu C………… previamente perguntara se sabia de quem era o motociclo, trocou umas palavras com este, avisando-o que o D………. e o F………. eram perigosos e costumavam andar armados.

_O réu C……….. já conhecia, por via da sua actividade profissional, o D………., referenciando-o como pessoa que detinha habitualmente armas de fogo, o que aliás resulta do ponto 96 da matéria de facto.

_ O D………. era considerado pelas forças de segurança como uma pessoa perigosa, que, habitualmente, andava armado, incluindo com armas de fogo.

_ A vítima e F……….foram abordados pelos militares da GNR procurando saber quem era o proprietário do motociclo que os mesmos detinham, gerando-se uma contenda entre ambos com insultos por parte dos 1ºs, empurrão pelo F………. ao E……….., que respondeu com uma bofetada;

_ Com aproximação do C……….. do colega, D………. e F……….. fugiram pela Rua ……….e, previamente, junto a um café aí existente numa esquina, o Café ……….., F……… e D………. continuavam a apelidá-los de “filhos da puta”, dizendo-lhes “que viessem para ali, que lhes fariam a folha”, “que os iriam apanhar”, “que os iriam matar” .

_Previamente, junto ao posto da EDP, sito na Rua …………, D………. e F………. agacharam-se e, estando afastados e escondidos dos elementos da GNR, continuaram a proferir as expressões: “cabrões, filhos da puta” .

_ Após, embrenharam-se numa pequena mata existente no local.

_ O C……….. e E……….. entraram no carro patrulha e foram no encalço de D………. e de F………, igualmente se embrenhando mata dentro.

_Ao chegarem à entrada da mata, ambos se separaram, o réu C……… tendo penetrado na mata pelo lado direito e E……….pelo lado esquerdo, considerando a posição do réu C………….

_ O desconhecimento do local, a praticamente inexistente luminosidade do mesmo, o desconhecimento do réu C……….. quanto à efectiva detenção ou não, naquele momento, por parte de D………. e de F………. de armas de fogo, a decisão de ambos os militares se separarem, a sua inexperiência de situações reais tal como aquela, o aviso da mencionada G........... e o facto de saber que a falecida vítima habitualmente detinha armas de fogo, provocou no réu C………. o receio de sofrer uma agressão por parte dos mencionados indivíduos, razão pela qual e por uma questão de protecção pessoal, retirou do coldre e empunhou a arma de serviço que trazia consigo, atribuída a um colega;

_ O réu C…………… pretendeu deixar tal arma de fogo pronta a disparar, caso fosse necessário, e, para o efeito, destravou-a e puxou a corrediça atrás, por forma a introduzir na câmara uma munição e com a realização de tal gesto premiu de forma instintiva, e, de forma não intencional e inesperadamente, foi produzido um disparo que veio a atingir mortalmente a vítima D………..

Como resulta do supra referido, não existe causalidade directa entre a actuação da vítima e os danos que sofreu.

Se o C……… disparou a arma de forma acidental tal significa que não foi a conduta do D………. que deu directamente origem à sua morte.

Mas, a realidade é que o D………. estava referenciado como usando armas de fogo quer pelo agente C........., quer pela dona do café que também o considerava perigoso, e o transmitiu a este, tinha ameaçado de morte o agente C………. e tinha fugido para uma pequena mata existente no local depois de ser abordado pelos militares da GNR, no sentido de saber quem era o proprietário do motociclo, que tinha a matrícula dobrada.

E, atendendo ao desconhecimento do local, à praticamente inexistente luminosidade do mesmo, ao receio de que o D………. e de F………. detivessem armas de fogo por tal ser previsível face aos elementos de que dispunha, o agente C……… ficou legitimamente com receio de sofrer uma agressão por parte dos mencionados indivíduos, e por uma questão de protecção pessoal, quis deixar a arma de fogo pronta a disparar, caso fosse necessário.

Assim, todo o comportamento anterior da vítima foi causa adequada da necessidade do agente C……….., no referido enquadramento, ter a arma de fogo preparada para disparar caso fosse necessário.

Claro que, depois, o manuseamento que fez da mesma, culposo, é que foi a causa directa do dano.

Mas, a necessidade de recurso a ter a arma preparada resultou, de forma adequada, de todo um conjunto de circunstâncias relacionadas com a postura anterior da vítima D………..

E, o manuseamento de uma arma é suscetível, pela sua própria natureza, de provocar acidentes e causar vítimas até mortais.

Manusear uma arma, segundo as regras da vida, contém riscos próprios e aptidões em abstracto de ocorrências de acidentes que podem causar a morte.

Pelo que, o recurso ao carregamento de uma arma pronta para disparar, contém em si uma aptidão geral ou abstracta de atingir alguém por acidente, ou seja, o facto pode produzir o dano, ainda que não previsível pelo autor do mesmo.

E tal ocorre, independentemente de atentas as funções e preparações a que necessariamente o soldado da GNR foi sujeito, lhe ser mais exigível uma actuação conhecedora e cuidada no sentido de evitar o dano.

Mas, tal há-de relevar não em sede de causalidade adequada mas antes na fixação das percentagens de culpa do lesado e de culpa do autor do dano.

Pelo que, a nosso ver, apesar de o D………. não ter contribuído de forma directa para a referida acidentalidade, já que nada fez de concreto para que ocorresse tal disparo, a sua conduta anterior, a anterior actividade criminosa e, nomeadamente, a fuga para uma mata, com alguma densidade, escura, em dia sem luar, com um terreno algo acidentado, depois de ter dito que ia matar os agentes, assim como o facto de estar referenciando como pessoa que detinha habitualmente armas de fogo favoreceu, isto é, não foi de todo indiferente, ao facto de o réu ter sentido a necessidade de ter a arma de fogo pronta a ser utilizada caso fosse necessário, no sentido preventivo e, dessa forma, potenciou o dano que veio a ocorrer.

E, esse favorecimento significa que, em termos de causalidade adequada possamos dizer que a vítima contribuiu para a ocorrência do dano.

Mas, como vimos, o agente C………. recorreu ao usou da arma de fogo sem as medidas de segurança devidas, quando não havia indícios de perigo eminente, e tal lhe era mais exigível, e daí ter negligentemente ocorrido o disparo de forma acidental.

Pelo que, devemos concluir que estamos na situação a que alude o art. 570º do CC, com 20% de contribuição do lesado para os danos.

3. Erro na fixação da indemnização pelo Dano Morte

Alega o recorrente que, dado que o grau de censura dirigida ao autor do facto se encontrar muito mitigado, atendendo à equidade, deveriam os valores indemnizatórios ser reduzidos.

E ainda que, nos termos do art. 342º do C. C. apenas se provaram os factos a que aludem as alíneas ss) e tt), para além dos factos já atrás indicados, concluindo que face ao nível de vida do nosso País e ao facto de o Estado se encontrar em situação de crise e falência, e à situação económica do lesado, o valor global indemnizatório atribuído, deve ser reduzido a 65.000,00€, assim discriminado: 50.000,00€ pelo dano morte; 5.000,00€ pelo sofrimento da vítima; e 10.000,00€ pelo sofrimento do filho da vítima.

Quid juris?

É certo que, nos termos do disposto no art.494º “Quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem”.

Ou seja, nos termos deste e dos arts 496º (3 e 4) e 566º/3 do Código Civil deve atender-se na fixação da indemnização aos danos, ao grau de culpa do agente, à situação económica do lesado e do responsável civil e demais circunstâncias do caso.

Comecemos por aferir da bondade da fixação pelo dano morte.

A decisão recorrida entendeu, em sintonia com a 1ª instância, que:

“(...) O que importa, quando o direito à vida é ofendido, é encontrar a solução que se configure como mais justa, por recurso a juízos de equidade e ponderação das demais circunstâncias em que a vida que se finou desenvolvia seu existir, como a idade da vítima, a sua condição física e psíquica, a integração na família e na sociedade, desempenho de atividade profissional, de lazer ou de carácter altruísta, a vontade e alegria de viver e até a estima e consideração alheias.

E sempre necessário será ter no horizonte que a perda do supremo bem de que o homem pode usufruir na vida, não podendo ser devidamente ressarcida por qualquer valor, terá, no entanto, de ser compensada por um montante indemnizatório digno e comedido em face de todos os fatores de ponderação que no caso se ofereçam.

(...) Ora, no caso presente, ponderando todos os fatores referidos (incluindo nós a notória má situação financeira do nosso Estado, como responsável a título de mera culpa), julgamos que aquele valor de 70.000,00 euros, fixado no Tribunal Administrativo de Círculo, não é demasiado elevado.

Por isso, tendo presente os elementos referidos e a jurisprudência mais recente cit., consideramos aceitável o valor de 70.000,00 euros, fixado pelo tribunal recorrido para o dano de perda da vida humana.”

Então vejamos.

No sentido de aferir o valor do dano morte a fixar na situação dos autos chamamos aqui à colacção o Ac. deste STA 01932/13 de 25-03-2015 donde se extrai:

“...no Ac. do STJ 395/03 de 23/2/011 diz-se: “...Demais circunstâncias do caso é uma expressão genérica que se pretende referir a todos os elementos concretos caracterizadores da gravidade do dano, incluindo a desvalorização da moeda.

Equidade não é sinónimo de arbitrariedade, mas sim, um critério para a correcção do direito, em ordem a que se tenham em consideração, fundamentalmente, as circunstâncias do caso concreto.

Na verdade, a lei não dá qualquer conceito de equidade, mas, tem-se aceite a mesma como a consideração prudente e acomodatícia do caso, e, em particular, a ponderação das prestações, vantagens e inconvenientes que concorram naquele (v. Ac. do S.T.J. de 19-4-91 in A.J. 18º, 6).

A fixação da indemnização em termos de equidade deve levar em conta as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida; nessa perspectiva, tem-se feito jurisprudência no sentido de que tal como escapam à admissibilidade de recurso «as decisões dependentes da livre resolução do tribunal» (arts. 400., n.1, al. b), do CPP e 679. do CPC), em caso de julgamento segundo a equidade, devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, aquelas regras – cf., entre outros, Acs. de 29-11-01, Proc. n. 3434/0º1; de 08-05-03, Proc. n. 4520/02; de 17-06-04, Proc. n. 2364/04 e de 24-11-05, Proc. n. 2831/05, todos da 5.ª Secção. Ac. do STJ de 07.12. 2006, Processo n. 3053/06 - 5.ª Secção), (...)

Sobre a valoração do dano morte

Como se disse no Acórdão deste Supremo de 18 de Dezembro de 2007, in www.dgsi.pt, a gravidade do dano deve medir-se por um padrão objectivo, e não de acordo com factores subjectivos, ligados a uma sensibilidade particularmente aguçada ou especialmente fria e embotada do lesado, e deve ser apreciada em função da tutela do direito: o dano deve ter gravidade bastante para justificar a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.

A indemnização, porque visa oferecer ao lesado uma compensação que contrabalance o mal sofrido, deve ser significativa, e não meramente simbólica, devendo o juiz, ao fixá-la segundo critérios de equidade, procurar um justo grau de “compensação”.

O dano da morte é o prejuízo supremo, é a lesão de um bem superior a todos os outros.

Na determinação do quantum compensatório pela perda do direito à vida importa ter em conta a própria vida em si, como bem supremo e base de todos os demais, e, no que respeita à vítima, a sua vontade e alegria de viver, a sua idade, a saúde, o estado civil, os projectos de vida e as concretizações do preenchimento da existência no dia-a-dia, incluindo a sua situação profissional e sócio-económica

Como referia o Acórdão deste Supremo de 27-09-2007, in www.dgsi.pt, sabe-se que a vida é o bem mais precioso da pessoa que ele não tem preço, porque é a medida de todos os preços, e que a sua perda arrasta consigo a eliminação de todos os outros bens de personalidade.

À míngua de outro critério legal, na determinação do concernente quantum compensatório importa ter em linha de conta, por um lado, a própria vida em si, como bem supremo e base de todos os demais.

E, por outro, conforme os casos, a vontade e a alegria de viver da vítima, a sua idade, a saúde, o estado civil, os projectos de vida e as concretizações do preenchimento da existência no dia a dia, designadamente a sua situação profissional e sócio-económica.

O dano morte, não se confundindo com os danos não patrimoniais de terceiros com direito a indemnização, tem de ser individualizado enquanto fundamento do pedido indemnizatório.

Essa individualização, para além de exigir a sua alegação expressa, não dispensa a indicação discriminada de circunstâncias que permitam a fixação dos valores específicos a atribuir em cada caso, designadamente, idade da vítima, estado de saúde, expectativas de vida, integração e relacionamento familiar e social. cf. Ac. do STJ de 17-06-04, Proc. n. 2364/04 e, Ac. de 25.05.2005, Processo n.º 462/05, 5ª Secção

Ora tendo em conta que:

...conclui-se in casu, por uma indemnização de 80.000,00 € referente ao dano morte.”

(...) extrai-se também do Ac. do STJ 201/10 de 03/05/2013:

“O facto de que resulta a morte de uma pessoa atinge-a em toda a sua concreta dimensão. A lesão do bem vida é, portanto, o dano máximo e inexcedível: a morte não se limita a lesar bens de personalidade; a morte suprime, por inteiro, a personalidade mesmo. A reparação desse dano não opera, pois, por definição, na esfera jurídica da pessoa que sofreu a morte – mas de terceiros. A reversão da compensação, não a favor do titular atingido mas de terceiros – seja iure proprio, seja iure hereditatis – não pode, naturalmente, deixar de ser ponderada, em sentido limitativo, no cômputo da reparação[39].

Um bosquejo ainda que breve pela jurisprudência do Supremo – com o qual se procura dar expressão à preocupação da normalização ou padronização quantitativa da compensação devida pelo dano morte, e, por essa via, ao princípios da igualdade e da unidade do direito e ao valor eminente da previsibilidade da decisão judicial – mostra que o equivalente monetário do dano morte é, actualmente, fixado, nos seus limites inferior e superior em € 50.000,00 e € 80.000,00, respectivamente[40]...”

Do acórdão do STJ proc. 1/12.6TBTMR.C1.S1 de 09/12/2013 resulta que:

“... A natureza da indemnização pelo dano morte tem sido objecto de polémica doutrinal, defendendo uns que tem carácter sucessório do original direito, de que era titular a vítima, enquanto para outros é uma especial reparação que o legislador quis atribuir a determinadas pessoas, por causa dessa morte. Sobre esta questão tomou posição o Ac. deste STJ de 29.01.08 – www.stj.pt 0TB4397 –, relatado pelo relator nestes autos, aí se optando pela segunda interpretação. E assim sendo e distinguindo-se dos danos não patrimoniais que as mesmas pessoas possam ter sofrido, configura-se como uma espécie de “derrama pelo luto” a atribuir independentemente do dano moral causado pelo decesso do familiar. Tem por isso, tendência a se transformar numa prestação até certo ponto fixa, uma vez que o valor vida será igual para todos, independentemente das circunstâncias em que ocorreu a lesão. O papel da equidade será aqui o de fazer uma interpretação adequada do que, em cada momento, significa em termos patrimoniais o mesmo valor vida.

Assim, já foi jurisprudência deste Tribunal a de que a indemnização deveria ser de montante à volta dos € 50.000,00. Posteriormente, esse montante estabilizou em cerca de € 60.000,00. Cf., entre outros, o Ac. deste STJ de 09.02.12 (Cons. Abrantes Geraldes e subscrito por dois dos subscritores do presente acórdão) – www.stj.pt1082/01-E1.S1 .

Reconhece-se uma tendência jurisprudencial para o acréscimo do valor em questão. No entanto, a subida não poderá ser tão abrupta que ponha em causa a equidade, com grandes diferenças de julgados em questões semelhantes.”

Atendendo, pois, à jurisprudência actual relativamente ao montante de indemnização a atribuir concluímos que o valor da indemnização a atribuir pelo dano morte há-de ser encontrado entre os 60.000 e os 80.000 euros.

Tenhamos em consideração os seguintes factos:

_ O D………. tinha 19 anos de idade quando morreu;

_O D………. era um jovem saudável, afável, muito sociável e bem-disposto, muito estimado por quantos consigo privavam;

_ O D………. beneficiava de um bom ambiente e acompanhamento familiar, tendo sempre vivido feliz com os seus irmãos e com o seu pai, que lhe proporcionaram um crescimento saudável e harmonioso e lhe transmitiram valores como a gentileza, solidariedade e o trabalho;

Em suma, estamos perante a morte de uma pessoa muito jovem, com apenas 19 anos, com uma esperança de vida ainda longa à sua frente, pelo que se concorda com o valor de 70.000 euros fixado pela decisão recorrida pelo dano da perda da vida.

Contudo, a este valor devemos deduzir 20 % relativo à concorrência de culpa do lesado, pelo que o valor deve ser deduzido para 56.000 euros.

Procede, pois, o recurso nesta parte.

4. Erro na fixação das outras indemnizações

Entende o recorrente que a fixação de 10.000,00 pelo sofrimento da vítima até ao momento da morte e de 20.000,00 pelo sofrimento do filho da vítima, acrescida de juros de mora, à taxa legal, calculados desde a data da prolacção da presente sentença até efectivo e integral pagamento são exagerados.

Para tanto refere que os valores de 5.000,00€ pelo sofrimento da vítima e de 10.000,00€ pelo sofrimento do filho da vítima são os adequados atendendo aos referidos critérios do art. 494º do CC.

Como vimos, não podem estes valores ser aqui sindicados já que não foram postos em causa aquando do recurso interposto da decisão de 1ª instância.

Contudo, devem estes valores reflectir os 20% de concorrência de culpa com que o lesado contribuiu para os danos que veio a sofrer, pelo que o sofrimento da vítima até ao momento da morte deve fixar-se em 8.000 euros e o sofrimento do seu filho em 16.000 euros.

Em consequência, a verba de 325 euros em que as instâncias condenaram o Estado Português a pagar a A……….. deverá ser reduzida em 20% ficando, por isso, nos 260 euros, assim como a quantia a apurar em sede de incidente de liquidação de sentença.

*

Em face de todo o exposto acordam os juízes deste STA em conceder provimento ao recurso e em consequência revogar parcialmente a decisão recorrida nos seguintes termos:

a) condenar o réu Estado Português a pagar ao autor A……….. a quantia de 260 euros [duzentos e sessenta euros] e em 80% da quantia que se vier a apurar em sede de incidente de liquidação de sentença relativa às despesas de funeral, acrescidas de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento;

b) condenar o réu Estado Português a pagar ao autor B………. a quantia de €80,000 [oitenta mil euros: 56.000,00 pelo dano morte + 8.000 pelo sofrimento da vítima até ao momento da morte + 16.000,00 pelo sofrimento do filho da vítima], acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da prolacção da sentença em 1ª instância e até integral pagamento.

Custas a cargo do Estado e dos autores, na proporção dos respectivos decaimentos e vencimentos.

Notifique.

Lisboa, 16 de Novembro de 2017. – Ana Paula Soares Leite Martins Portela (relatora) – Jorge Artur Madeira dos Santos – Carlos Luís Medeiros de Carvalho (vencido conforme voto que se junta).

Vencido, não acompanhando o entendimento que logrou obter vencimento [ponto 2) e consequências advenientes para os pontos 3) e 4) expendidos na fundamentação de «Direito»] quanto ao assacado erro de julgamento atribuído ao acórdão recorrido no juízo de improcedência nele feito em sede de conculpabilidade, de responsabilidade do lesado e consequente repartição de culpa por contribuição causal de lesante e lesado [arts. 563.º e 570.º, ambos do CC], porquanto negaria provimento ao recurso jurisdicional do A., pelas razões que são, no essencial, as seguintes:

I. A realidade fáctica que se mostra apurada não autoriza ou não permite que se extraia, no meu entendimento, a conclusão da existência de uma situação de concausalidade, de uma concorrência efetiva de causas conducente à conculpabilidade.

II. Da fuga da vítima nas condições e circunstâncias que resultam apuradas nos autos não ressalta ou se pode inferir, necessariamente, uma conduta ilícita e culposa e que a mesma fosse suscetível de trazer ou aportar àquela, como sua consequência provável, típica e adequada, uma situação de risco para a sua integridade física ou mesmo para a sua vida, decorrente do perigo de poder vir a ser alvejado por um disparo acidental feito por elemento integrante da patrulha da força policial [GNR], envolvida na perseguição.

III. Na ausência de um dever legal [genérico ou específico] que obrigue uma pessoa a evitar danos a si própria, não se descortina, no caso, que possamos concluir pela autorresponsabilidade do lesado e decorrente repartição do cálculo indemnizatório relativamente ao dano sofrido quando nos confrontamos com uma lesão que é produzida no lesado por circunstância imprevisível e meramente acidental.

IV. Da conduta de fuga empreendida pela vítima no contexto circunstancial ocorrido e quando também, à luz da realidade provada, em momento algum foi dada pela patrulha qualquer ordem de detenção ou de imobilização, ou que após início daquela fuga a vítima haja desenvolvido confronto físico com a patrulha ou o tenha procurado, não se vislumbra como aceitável exigir ou imputar à vítima, objetiva e subjetivamente, com base num juízo de desvalor e de censura àquela atitude de fuga, a consciência de que daquela sua conduta adviria, como resultado previsível, adequado e necessário, a criação de uma situação de perigo adveniente dum disparo acidental de arma por parte de elemento da patrulha perseguidor e decorrente risco para a sua integridade física e para a sua vida.

V. É que além da conduta de fuga desenvolvida pela vítima, empreendida para lugar sem iluminação já que, dificultando a ação da patrulha perseguidora, tal lhe permitiria uma melhor concretização daquilo que era a sua intenção e propósito, não se apurou mais nenhum outro comportamento ou ato passível de censura ou que lhe pudesse ser culposamente atribuído, na certeza de que a infeliz circunstância de, por mero acaso do destino ou coincidência e num contexto de disparo acidental, se encontrar na trajetória da bala disparada isso não permite fundar qualquer imputação ao lesado de conduta imprudente ou de descuido ilícito e culposo.

VI. O instituto ou figura da "culpa do lesado" [cfr. art. 570.º do CC] não se basta, nem se traduz da parte daquele numa situação de pura ação causal, numa sujeição a mera coincidência do destino, num mero "pôr-se em risco" ou no "pôr-se a jeito".

VII. Presente o quadro factual apurado e o quadro normativo convocado [arts. 563.º e 570.°, ambos do CC] consideraria, assim, que inexistiria uma situação de culpa do lesado, na certeza de que o lesante não poderá justificar ou ver justificada a sua conduta ilícita e culposa com o facto da vítima poder ser "perigoso", haver fugido e de o ter feito para local sem iluminação, expondo-se, assim, culposamente ao risco de, muito provavelmente, poder vir a ser atingido por um eventual disparo de arma efetuado por elemento da patrulha policial envolvida, como veio a ocorrer, e para mais quando tal disparo é feito "no escuro", num contexto de perseguição, de modo puramente acidental e fortuito, e sem que ao mesmo disparo possa ser atribuído qualquer fim ou função que, aliás, não teve, nomeadamente, para a defesa pessoal da patrulha policial ou da integridade do concreto elemento da mesma envolvido.

VIII. Inexistindo neste âmbito uma incorreta interpretação e aplicação do quadro normativo em crise, improcederia o recurso jurisdicional e manteria, assim, também nesse segmento o que havia sido o juízo firmado pelas instâncias, mormente no acórdão recorrido.

Carlos Luís Medeiros de Carvalho