Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02576/15.9BEBRG
Data do Acordão:01/25/2023
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:CONDENAÇÃO EM QUANTIA SUPERIOR AO PEDIDO
CONDENAÇÃO EM OBJECTO DIVERSO DO PEDIDO
PEDIDO DE REVISÃO
MATÉRIA COLECTÁVEL
Sumário:I – Se não obstante a forma menos rigorosa como o pedido foi formulado, resulta ostensivamente dos autos que, por um lado, quer as partes quer o Tribunal sempre o interpretaram como pedido de anulação das liquidações impugnadas na parte em que não foram relevadas as deduções à colecta e, por outro, que o Tribunal anulou as liquidações na totalidade - excluindo expressamente do objecto da decisão o pedido de reconhecimento da “totalidade dos benefícios fiscais emergentes do atestado de incapacidade junto aos autos”, que considerou impróprio do processo impugnatório - por entender que apenas essa anulação permitiria a reposição da legalidade, não se pode concluir que a sentença é nula nos termos do artigo 615.º, al. e) do CPC, por não ter condenado nem em objecto diverso nem em quantidade superior ao que implicitamente foi aceite como constituindo o pedido formulado.
II – Se as liquidações emitidas pela Autoridade Tributária (no caso, relativas aos anos de 2009 a 2012) não observaram o preceituado nos n.ºs 1 e 2 do artigo 87.º do CIRS - que regula os valores de dedução à colecta por cada sujeito passivo com deficiência ou seu ascendente ou dependente com deficiência - é admissível que o contribuinte/deficiente, solicite, ao abrigo do n.º 4 do artigo 78.º da LGT, a revisão do acto tributário.
III – Tendo no procedimento de revisão a Autoridade Tributária e Aduaneira reconhecido a tempestividade de apresentação do pedido e a verificação de uma situação de injustiça grave e notória não imputável ao contribuinte, tem que emitir as liquidações em conformidade com todas as deduções à colecta previstas no regime referido em I.
IV – São ilegais as liquidações de IRS emitidas posteriormente ao reconhecimento referido em II, que não relevaram as mencionadas deduções à colecta com fundamento em que o legislador, no n.º 4 do artigo 78.º da LGT, apenas previu a revisão da matéria tributável e não da matéria colectável.
V – O n.º 4 do artigo 78.º da LGT atendendo ao objectivo visado com a consagração do instituto de revisão e aos cânones interpretativos da lei consagrados no artigo 9.º do Código Civil, deve ser interpretado no sentido de que nele estão abrangidas todas as situações de injustiça grave e notória, incluindo as emergentes da não atribuição oportuna de relevo fiscal das deduções à colecta previstas no artigo 87.º do CIRS que deviam ter sido atendidas.
Nº Convencional:JSTA00071647
Nº do Documento:SA22023012502576/15
Data de Entrada:09/13/2021
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:AA
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Legislação Nacional:CPC ART615 AL.C)
CIRS ART87 N1 N2
LGT ART78 N4
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO

1. RELATÓRIO

1.1. A Autoridade Tributária e Aduaneira, inconformada com a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga - que, julgando procedente a impugnação deduzida por AA contra o acto de indeferimento tácito do recurso hierárquico por si apresentado e os actos de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) relativos aos anos de 2009 a 2012, no valor global de EUR 7.053,76, anulou as liquidações impugnadas e, condenou a Fazenda Pública à restituição do imposto indevidamente pago e ao pagamento de juros indemnizatórios contados desde a data do pagamento indevido até à data do termo do prazo de execução espontânea ou até à data da emissão da nota de crédito se esta for anterior aquela – recorre para este Supremo Tribunal

1.2. Nas alegações de recurso jurisdicional conclui a Recorrente nos seguintes termos:

I - O presente recurso tem por objeto a douta sentença recorrida, proferida no processo supra referenciado, que julgou totalmente procedente a presente impugnação judicial, “anulando-se as liquidações de IRS impugnadas e, bem assim, condenando-se a Fazenda Pública à restituição do imposto indevidamente pago e ao pagamento de juros indemnizatórios contados desde a data do pagamento indevido até à data do termo do prazo de execução espontânea ou até à data da emissão da nota de crédito se esta for anterior aquela.”.

II - Douta sentença essa que, a nosso ver, e salvaguardado o devido respeito que a mesma nos merece, bem como salvaguardado o devido respeito por melhor entendimento, não se pode manter na ordem jurídica na medida em que:

c) Enferma da nulidade prevista no artigo 615º, nº 1, alínea e) do CPC, aplicável ex vi da alínea e) do artigo 2º do CPPT, e,

d) Incorre em erro de julgamento em matéria de direito, em suma, por ter decidido que “a expressão “matéria tributável”, utilizada no nº 4 do art.º 78º da LGT, não deverá ser entendida em sentido estrito, mas sim em sentido amplo por forma a abranger todas as situações em que a tributação levada a cabo redunde na prática de uma “injustiça grave ou notória”, pelo que mal andou a Administração Tributária quando considerou que “as deduções à colecta, mormente as que se relacionam com pessoas com deficiência fiscalmente relevante, não se enquadram no conceito de revisão de matéria tributável constante do art.º 78.º, n.º 4 da LGT.”, e, em sequência, ter decidido que “Em consequência, resulta inválido o despacho de indeferimento em crise nos autos e, bem assim as liquidações de IRS impugnadas.”. Vejamos:

III - Tal como flui da sentença aqui posta em crise, no que tange ao pedido da alínea B) do pedido formulado, a final, na petição inicial, a M.ma Juíza, ao invés de condenar a AT “a restituir o IRS a mais liquidado e pago por não ter sido levado em consideração o atestado de incapacidade acima mencionado, acrescido dos juros indemnizatórios previstos no art.º 43.º da LGT”, tal como peticionado pelo impugnante, condenou a AT a, pura e simplesmente, anular na sua totalidade “as liquidações de IRS impugnadas e, bem assim, condenando-se a Fazenda Pública à restituição do imposto indevidamente pago e ao pagamento de juros indemnizatórios contados desde a data do pagamento indevido até à data do termo do termo do prazo de execução espontânea ou até à data da emissão da nota de crédito se esta for anterior aquela.”.

IV – A nosso ver, a M.ma Juíza do Tribunal “a quo”, ao decidir anular, tout court, “as liquidações de IRS impugnadas” condenou a AT “em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido”, dado que tal pedido de anulação das liquidações impugnadas nunca foi, de forma expressa ou tácita, formulado pelo impugnante na petição inicial.

V – A nosso ver, a existir condenação da AT (o que, só por mera hipótese se admite), a anulação das liquidações aqui em causa deverá ser meramente parcial (cfr. artigo 100º da LGT), devendo a mesma cingir-se à parte em que as liquidações de IRS aqui em causa se mostram influenciadas pela não consideração das deduções à coleta previstas no artigo 87º do CIRS – o que não sucedeu.

VI – Assim, salvo melhor entendimento, deve a sentença aqui em análise ser declarada nula, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea e) do CPC, aplicável ex vi da alínea e) do artigo 2º do CPPT, com todas as legais consequências – o que se requer.

SEM PRESCINDIR:

VII – A questão (de direito) que se coloca nos presentes autos é a de saber se no conceito de revisão da matéria tributável constante do nº 4, do artigo 78.º da LGT, se encontram ou não abrangidas as deduções à coleta, nomeadamente as que se relacionam com pessoas com deficiência fiscalmente relevante, previstas no artigo 87º do CIRS.

VIII – Como é sabido, o artigo 78º da LGT comporta quatro situações distintas, duas de “revisão ordinária” e duas de “revisão extraordinária”, a saber (nesse sentido, Casalta Nabais, José, Direito Fiscal, 5ª Edição, Almedina, 2010, p. 335):

a) Revisão por iniciativa do sujeito passivo, a efetuar dentro do prazo de reclamação, com fundamento em qualquer ilegalidade – artigo 78.º, nº 1, da LGT – Revisão ordinária;

b) Revisão por iniciativa da administração tributária, a ser realizada no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços – artigo 78.º, n.º 1, in fine, da LGT – Revisão ordinária;

c) Revisão do ato tributário por motivo de duplicação de coleta, a efetuar no prazo de quatro anos, seja qual for o fundamento – artigo 78º, nº 6, da LGT – Revisão extraordinária, e,

d) Revisão excecional da matéria tributável, mediante autorização do dirigente máximo do serviço, a efetuar nos três anos posteriores ao do ato tributário, com fundamento em injustiça grave ou notória – artigo 78.º, nºs 4 e 5 – Revisão extraordinária.

IX – Destarte, é evidente não só o caráter excecional do mecanismo constante do artigo 78.º, nº 4 da LGT – patente no uso do advérbio “excecionalmente” – face ao disposto no nº 1 do mesmo artigo, como a dissensão do objeto do pedido previsto nesses mesmos dois normativos.

X - Com efeito, enquanto no nº 1, do artigo 78.º da LGT, o objeto pedido é a “revisão dos atos tributários”, no nº 4 do mesmo artigo o objeto do pedido é “a revisão da matéria tributável.”.

XI - Se, tal como dispõe o artigo 9º, nº 3 do Código Civil, o intérprete na fixação do sentido e alcance da lei deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, então não pode o objeto do pedido constante do nº 1 do artigo 78º da LGT coincidir com aquele gizado no seu nº 4 (aqui em causa).

XII - A determinação da matéria tributável comporta, em sede de IRS, os seguintes momentos:

e) A declaração do rendimento bruto de cada uma das categorias;

f) A dedução ao rendimento bruto, de cada uma das categorias, das respetivas deduções específicas – assim se obtendo o rendimento líquido por categoria;

g) A soma do rendimento líquido por cada categoria – obtendo-se dessa forma o rendimento líquido total; e, até 2008,

h) A dedução a esse rendimento líquido total dos abatimentos previstos no CIRS. Realizada tal dedução obtemos, por fim, o rendimento coletável.

XIII - Já no que concerne aos atos tributários, os mesmos têm vindo a ser entendidos pela doutrina como os atos de liquidação administrativa de imposto “os quais em sentido amplo englobam o conjunto de operações destinadas, por um lado, à identificação do contribuinte ou do devedor do imposto (caso não coincidam, como é cada vez mais frequente) e, por outro lado, à determinação do imposto, uma actividade que, por seu turno, ainda se desdobra na determinação da matéria tributável, na liquidação em sentido estrito, concretizada na aplicação da taxa ou alíquota à matéria tributável (ou colectável) assim se obtendo a colecta, e nas deduções à colecta (caso as haja como acontece abundantemente no IRS e em menor medida no IRC)” - Casalta Nabais, José, Direito Fiscal, 5ª Edição, Almedina, 2010, p. 391.

XIV - As deduções à coleta são, assim, como a própria denominação denuncia, efetuadas não no quadro da determinação da matéria tributável, mas sim no âmbito da liquidação do IRS.

XV - Aliás, disso mesmo nos dá conta o legislador, com a sua organização sistemática do CIRS, ao inserir as normas respeitantes às deduções à coleta no Capítulo IV – “Liquidação” e não no capítulo II – “Determinação do Rendimento Colectável”.

XVI - Face ao ideário argumentativo desenvolvido, consideramos que o artigo 78º, nº 4 da LGT não habilita a AT à revisão da “liquidação de imposto” com fundamento na sua injustiça, podendo sim, quando se verificarem os demais pressupostos, justificar uma revisão da “matéria tributável”, conforme o conceito supra delimitado. – Neste sentido veja-se, entre outros, Marta Rebelo, Má formação/manifestação da vontade da Administração Tributária, in Fisco, nº 119/21 (Setembro de 2005), Ano XVI, pág. 99 e seguintes, e, Carlos Paiva, Da tributação à revisão dos actos tributários, Almedina, 2005, p. 274.

XVII - Atendendo ao exposto, conclui-se que a douta sentença aqui posta em crise errou ao decidir como decidiu, além do mais, por ter atendido e dado primazia absoluta à pretensa “ratio legis” do artigo 78º, nº 4 da LGT (elemento racional ou teleológico da interpretação).

XVIII - A nosso ver, a interpretação a dar ao artigo 78º, nº 4 da LGT - atendendo à letra da lei (elemento literal ou gramatical, a qual é “simultaneamente ponto de partida e limite da interpretação”), atendendo aos elementos lógicos (em particular, atendendo ao elemento histórico e ao elemento sistemático), e atendendo ao disposto no artigo 9º, nº 3 do Código Civil – só pode ser a de que as deduções à coleta, mormente as que se relacionam com pessoas com deficiências fiscalmente relevante previstas no artigo 87.º da LGT, não se enquadram no conceito de “revisão da matéria tributável” constante do artigo 78.º, n.º 4 da LGT.

XIX - Em suma, ao decidir como decidiu, a M.ma Juíza do Tribunal “a quo” incorreu, a nosso ver e salvaguardado o devido respeito por melhor entendimento, em erro de julgamento, em matéria de direito, violando, nomeadamente, o disposto no artigo 78.º, nº 4 da LGT e o disposto no artigo 9.º do Código Civil.

XX - Devendo, em consequência, a douta sentença aqui posta em crise ser revogada, e substituída por douto acórdão que julgue a presente impugnação judicial totalmente improcedente, por não provada, com todas as legais consequências – o que se requer a V. Exas.”

1.3. AA, doravante Recorrido, notificado da interposição do recurso e da sua admissão, apresentou contra-alegações, aí formulando as seguintes conclusões:

«A - Interposto que foi, em devido tempo, recurso contra a douta sentença de fls….., por parte da Representação da Fazenda Pública e apresentadas que foram as respectivas alegações, é hora de o recorrido apresentar as suas contra-alegações, o que fará de seguida.

B - A douta sentença posta em crise pela Representação da Fazenda Pública julgou procedente a impugnação judicial à margem identificada, deduzida pelo ora Recorrido, com fundamento na interpretação em sentido amplo da expressão matéria tributável aplicada no caso sub judicio.

C - O Recorrido entende que a douta sentença posta em crise no recurso não merece qualquer censura, porquanto nela se faz uma correcta interpretação e aplicação da lei.

D -Com efeito, bem andou o Tribunal que perante a prova documental produzida nos autos conjugada com a habitual justiça dos Tribunais superiores e na fundamentação invocada, decidiu da única forma possível de alcançar a realização da justiça material.

E - Sempre se diga que o Tribunal, mormente o julgador, dispõe de prerrogativas legal e constitucionalmente consagradas na decisão do caso decidendo, bem assim, na livre apreciação das provas produzidas no processo.

F - No caso vertido, socorrendo-se dos documentos juntos com a p.i. e bem assim, sabendo que, à luz do artigo 9º do Código Civil, conjugado com o artigo 5º, nº 3 do Código de Processo Civil, o Tribunal não está vinculado ao alegado pelas partes.

G - Assim sendo, e porque a administração tributária também está vinculada, enquanto Administração, ao que rege o CPTA, que nos seus artigos 2º, o princípio da tutela jurisdicional efetiva dos particulares perante a Administração, o próprio CPTA estabelece, no seu artigo 3.°, n.º 1, que “no respeito pelo princípio da separação e interdependência dos poderes, os tribunais [...] julgam do cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua atuação”.

H - Isto posto, entende o Recorrido o alcance da decisão proferida e não se sentindo o mesmo desatendido no que foi peticionado, uma vez que, de facto, já tendo sido a liquidação revista e não sendo considerado o estatuto de deficiente do Impugnante;

I - Somente com a anulação da liquidação corrigida e voltando à primeira forma, o estatuto de deficiente poderia ser integralmente cumprido, quer como peticionado nos autos, quer como deliberado e decidido pela AT, cujo parecer do respectivo organismo e que está junto à decisão de deferimento encerra.

J - E neste sentido de raciocínio, bem andou o tribunal, e não como a AT entende que está a ser efectuada condenação em montante superior ao peticionado, sabendo que, apenas em sede de execução da sentença e após nova liquidação com a respectiva demonstração se verificará que o Impugnante foi economicamente lesado e tendo este pago já as quantias já liquidadas, ainda que indevidamente, deverá o mesmo ser ressarcido na proporção apurada e com os respectivos juros indemnizatórios, como é de LEI.

K - Tanto que, o resultado da douta decisão proferida, só por si, encerra já o conhecimento do julgador em sede da parte informática que os serviços fiscais deverão levar a efeito, o que demonstra um conhecimento directo e conclusivo do resultado e alcance da decisão tomada.

L - Ora, analisando a douta sentença, a sua fundamentação, o raciocínio lógico-dedutivo e sustentado em jurisprudência de tribunais superiores, bem comprova a articulação dos vários ramos de direito ao caso concreto e bem assim assenta nas regras previstas no artigo 8º, nº 3 do Código Civil.

M - Para mais, o despacho decisório – facto dado como provado e que a AT deveria ter executado inteiramente não faz qualquer destrinça entre rendimentos e deduções, resultando, tão só, do respectivo texto que o pedido de revisão foi deferido, remetendo para os termos e fundamentos expostos.

N - E, se atentarmos na “conclusão” do PARECER prévio ao despacho decisório, verificamos que também aí se não faz a destrinça que a Fazenda Pública pretende invocar.

O - Na realidade, quando no PARECER se diz […] sendo de consignar nas declarações de rendimentos […] a qualidade de deficiente […] na parte relativa aos rendimentos. (sublinhado nosso)

P - O que resulta para um destinatário normal colocado na posição do Impugnante, é que a consignação da deficiência nas declarações de rendimentos se faz através da simples menção do grau de deficiência, no acto do preenchimento da declaração, e essa menção tem a virtualidade de reconhecer automaticamente ao contribuinte todos os benefícios que lhe cabem em face da sua condição de cidadão deficiente.

Q – Prosseguindo... os atos administrativos carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos - CRP artigo 268.°, n° 3.

R – Pelo que, o que se pretende com a fundamentação é levar ao conhecimento do destinatário o percurso cognoscitivo e valorativo que o autor do ato percorreu para decidir de modo a permitir que um destinatário normal, colocado na posição do real destinatário do ato, possa compreender por que razão o autor do ato decidiu assim. O critério é o da compreensibilidade por um destinatário normal do ato colocado na posição do destinatário real.

S - Assim, o dever de fundamentação expressa dos atos administrativos tem uma tripla justificação racional: habilitar o interessado a optar conscientemente entre conformar-se com o ato ou impugná-lo; assegurar a devida ponderação das decisões administrativas e permitir um eficaz controlo da atuação administrativa pelos tribunais.

T - Ou seja, se a AT consignar/averbar a incapacidade do Impugnante nas suas declarações de rendimentos em causa – que foi o que foi decidido – o que acontecerá é que o sistema informático, simplesmente, atribuirá ao Impugnante a totalidade dos benefícios fiscais previstos na lei tributária – tal como decidido pelo Tribunal.

U - E, foi essa a leitura que o Impugnante fez da decisão de deferimento do pedido de revisão – o reconhecimento do direito à totalidade dos benefícios fiscais que a lei concede aos contribuintes deficientes, no estrito cumprimento do direito constitucionalmente consagrado à igualdade.

V - Deste modo, a AT ficou vinculada à execução plena da decisão de deferimento, em toda a sua abrangência e sem leituras restritivas por parte do exequente, sob pena de, não o fazendo, incorrer na violação do princípio da boa-fé, pondo em causa o princípio da protecção da confiança que a Administração deve inspirar nos administrados.

W - Na realidade, o princípio da boa-fé da Administração encontra assento legal no artº 266º, nº 2 da Lei Fundamental, concretizado expressamente no artº 10º do CPA, aplicável subsidiariamente no procedimento tributário ex vi do artº 2º da LGT e artº 2º do CPPT.

X - E, a sua violação implica a ilegalidade dos actos praticados pela Administração, o que resultou plasmado na douta sentença, através da invalidade do despacho reclamado e anulação das liquidações dele decorrentes.

Z - Relativamente ao ponto invocada pela Fazenda Pública, quanto ao facto que o Impugnante não fez qualquer menção às deduções à colecta no seu pedido de revisão, o mesmo nem tinha de o fazer. Nos termos da lei cabia-lhe, apenas, fazer o pedido de revisão do acto tributário, demonstrando a verificação dos respectivos pressupostos legais.

AA – Ou seja, entendeu o Director-Geral que deveria ser reconhecido ao Impugnante o estatuto de deficiente.

BB – A AT, nos serviços regionais, apenas teria que dar cumprimento à ordem e decisão superiores e reconhecer o benefício ao contribuinte, o que não fez!

CC – Escuda-se agora em discussões acerca da interpretação normativa, mas de facto, existe uma decisão administrativa, que consubstancia o reconhecimento de um direito legalmente protegido e cuja execução deveria ter sido levada a efeito de forma plena.

DD – Pelo que, bem andou o tribunal ao decidir que o Impugnante, pessoa com deficiência fiscalmente relevante, deveria ver reconhecidos todos os benefícios, para além dos já reconhecidos, em sede de indeferimento de reclamação graciosa.

EE – E não se diga que após resultar uma nova liquidação e o correspondente acerto de contas, se verifique alguma vantagem monetária do contribuinte perante a AT, como a Recorrente quer fazer crer, alegando que a decisão foi excessiva e para além do peticionado pelo Impugnante.

FF Nestes termos, não vislumbra razão à Recorrente AT, porquanto a decisão sindicada foi tomada de harmonia com as regras regentes do ordenamento fiscal, não merecendo portanto qualquer censura, e ainda, dando cumprimento ao peticionado pelo Impugnante,

GG – Que apenas pretende que a Administração Fiscal de uma vez por todas lhe reconheça o seu estatuto de deficiente, o qual nunca pôs em causa e proceda em conformidade, respeitando a lei e tratando de dar cumprimento ao princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado, razão pela qual DEVE SER MANTIDA na ordem jurídica a douta sentença recorrida.

1.4 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso com a consequente confirmação da sentença recorrida na ordem jurídica.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1 Como é sabido, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva oficiosamente conhecer, o âmbito de intervenção do tribunal de recurso é determinado pelo teor das conclusões com que a Recorrente finaliza as suas alegações [artigo 635.º do Código de Processo Civil (CPC)].

Essa delimitação do objecto do recurso jurisdicional, numa vertente negativa, permite concluir se o recurso abrange tudo o que na sentença foi desfavorável ao Recorrente ou se este, expressa ou tacitamente, se conformou com parte da decisão de mérito proferida quanto a questões por si suscitadas, desta forma impedindo que essas questões voltem a ser reapreciadas pelo Tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 3 e 4 do CPC). Numa vertente positiva, a delimitação do objecto do recurso, especialmente nas situações de recurso directo para o Supremo Tribunal Administrativo, como é o caso, constitui ainda o suporte necessário à fixação da sua própria competência, nos termos em que esta surge definida nos artigos 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 280.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

2.2. No caso concreto, tendo por referência o que ficou dito, são duas as questões a decidir.

A primeira prende-se com a validade intrínseca da própria sentença, que a Recorrente questiona ao imputar-lhe a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1 alínea e) do CPC, isto é, ao defender que é nula por o juiz ter condenado em quantidade superior ou em objecto diverso do que lhe foi pedido pelo Impugnante, no caso, por ter anulado totalmente as liquidações, pedido que nunca lhe foi expressamente formulado.

A segunda com o mérito do julgado, concretamente, com o erro de julgamento decorrente de a sentença recorrida ter decidido que a Administração Tributária errou nos pressupostos de facto e de direito ao ter emitido as liquidações impugnadas desconsiderando as deduções à colecta, no caso relacionadas com deficiências fiscalmente relevantes, por entender que estas se não incluem na previsão normativa consagrada no artigo 78.º, n.º 4 da Lei Geral Tributária (LGT).

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Fundamentação de facto

A sentença efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

Com interesse para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

A) Em 19/12/2013, o Impugnante apresentou pedido de revisão das liquidações de IRS dos anos de 2009 a 2012, ao abrigo do número 4 do artigo 78.º da LGT – Cfr. fls. 2/8v do processo administrativo apenso, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido;

B) Em 03/04/2014, foi proferido despacho, em subdelegação de competências, pelo Chefe de Divisão da Direção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares a conceder provimento ao pedido referido em A) – Cfr. fls. 8/9v do processo administrativo apenso, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido;

C) Em 14/02/2014, como fundamento do despacho referido em B), foi elaborada pela Direção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, a Informação n.º 1094/14, da qual consta, entre o mais, o seguinte: “(…)

B.1. O requerente tem legitimidade, o pedido de revisão tem enquadramento nos termos do n° 4 do art 78° da LGT, sendo que sobre as liquidações objeto dos autos, não foi interposta reclamação graciosa ou impugnação judicial.

B.2. Em sede de IRS, considera-se pessoa com deficiência quem apresente um grau de incapacidade permanente igual ou superior a 60%, devidamente comprovado mediante atestado médico de incapacidade multiuso emitido nos termos da legislação aplicável (cf. n° 4 do art. 87º do CIRS), daqui decorrendo a exigência de prova documental nos termos do DL n º 202/96, de 23/10, republicado e alterado pelo DL n.º 291/2009, de 12/10, associado à Tabela Nacional de Incapacidades conforme o DL n.º 352/07, de 23/10, com entrada em vigor em 2008-01-21.

B.3. Resulta dos autos que:

(i) O requerente faz prova documental de deter atestado médico de incapacidade multiuso que consigna as alterações realizadas pelo DL. n.º 291/2009, de 12 de outubro, designadamente as previstas nos n°s 7, 8 e 9 do art. 4° deste diploma,

(ii) É portador de deficiência, que de acordo com os documentos arquivados no Serviço emitente do atestado, já lhe conferiam em 1996-11-13, o grau de incapacidade de 60%.

(...)

B. 5. Prevendo o n° 4 do art. 78° da LGT, a revisão da matéria tributável, em conformidade é de aplicar a isenção de tributação em IRS aos rendimentos da categoria A, B e H, somente considerados em apenas 90%, sendo que a parte excluída não pode exceder o valor de € 2.500.00.

C. CONCLUSÃO

Nestes termos e tendo como base os fundamentos que antecedem, deve o presente Pedido de Revisão ser deferido, sendo de consignar nas declarações de rendimentos de IRS, dos anos de 2009, 2010, 2011, e 2012, a qualidade de deficiente detentor de incapacidade permanente global, na parte relativa aos rendimentos.

(…) – Cfr. fls. 8/9v do processo administrativo apenso, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido;

D) Na sequência do determinado em B), foram emitidas pela Autoridade Tributária as liquidações de IRS n.º 2014 4002318933, de 17/05/2014 (IRS 2009), n.º 2014 4005148018, de 18/07/2014 (IRS 2009), n.º 2014 5002318971, de 17/05/2014 (IRS 2010), n.º 2014 5002319055, de 17/05/2014 (IRS 2011) e n.º 2014 5002319181, de 17/05/2014 (IRS 2012) as quais foram notificadas ao Impugnante (…) – Cfr. fls. 33/48 do processo administrativo apenso, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido;

E) Em 28/11/2014, o Impugnante apresentou reclamação graciosa junto da Direção de Finanças de Viana do Castelo das liquidações referidas em D) – Cfr. fls. 21/47 do processo administrativo apenso, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido;

F) Em 29/12/2014, a reclamação graciosa referida em E), foi indeferida por despacho proferido pelo Chefe de Divisão de Tributação e Cobrança da Direção de Finanças de Viana do Castelo, após pronúncia do Impugnante nos termos do art.º 60.º da LGT – Cfr. fls. 68 do processo administrativo apenso, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido;

G) Em 10/12/2014, como fundamento do despacho referido em F), foi elaborada pela Direção de Finanças de Viana do Castelo, Informação da qual consta, entre o mais, o seguinte: “(…)

IV DO DIREITO

14. Nos termos do que dispunha o n.º 1, do artigo 87.º do CIRS, são dedutíveis à colecta por cada sujeito passivo com deficiência uma importância correspondente a quatro vezes a retribuição mínima mensal. (…)

V DA APRECIAÇÃO DO PEDIDO

16. O cerne da questão nos presentes autos centra-se na interpretação do conceito de matéria tributável para efeitos do artigo 78.º, n.º 4 da LGT.

17. Tem sido entendimento da administração fiscal que a revisão do ato tributário, ao abrigo do referido preceito legal, para efeitos de IRS, só pode encontrar o seu fundamento num erro ocorrido num dos seguintes momentos:

i) Na declaração do rendimento bruto de cada uma das categorias;

ii) Nas deduções especificas ao rendimento bruto, de cada uma das categorias;

iii) Na soma dos rendimentos líquidos por categoria – obtendo-se dessa forma o rendimento liquido total; e, até 2008,

iv) Nos abatimentos a esse rendimento liquido total.

Ou seja, por outras palavras, as deduções à coleta, mormente as que se relacionam com pessoas com deficiência fiscalmente relevante, não se enquadram no conceito de revisão de matéria tributável constante do artigo 78.º, n.º 4 da LGT. (…)” – Cfr. fls. 57/59 do processo administrativo apenso, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido;

H) Em 29/01/2015, foi remetido pelo Impugnante, via postal, recurso hierárquico do despacho referido em F) o qual, após elaboração de informação pela Direção de Finanças de Viana do Castelo, datada de 09/02/2015, foi indeferido tacitamente – Cfr. fls. 75/86 do processo administrativo apenso, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido;

3.2. Fundamentação de direito

3.2.1. O presente recurso vem interposto da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que julgando procedente a presente Impugnação anulou as liquidações impugnadas, sentença que a Recorrente defende ser nula e padecer de erro de julgamento.

3.2.2. São, pois, como, aliás, já havíamos deixado definido no ponto 2. deste acórdão, as questões que temos de conhecer, o que iremos realizar pela precisa ordem porque ficaram enunciadas atenta a primazia, face aos seus efeitos no julgado, que o conhecimento das nulidades previstas no artigo 615.º do CPC tem sobre as demais questões que possam ser suscitadas nos recursos jurisdicionais.

3.2.3. Da nulidade da sentença recorrida “por ter condenado a AT em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido

Nos termos do artigo 615.º do CPC, aplicável ao processo judicial tributário ex vi artigo 2.º do CPPT, é nula a sentença quando o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.

Como se vê das alegações de recurso e das conclusões, a Recorrente não retira desta norma que é distinta a condenação em quantidade superior ou em objecto diverso, fazendo uma invocação simultânea de ambos, como se de um só comportamento ou actividade jurisdicional se tratasse.

Acontece, porém, desde já se diga, que é distinta a condenação em quantidade superior ao pedido e a condenação em objecto diverso., inserindo-se a primeira nos chamados limites quantitativos e a segunda no denominado limite qualitativo. Ou seja, com a primeira pretende-se que o juiz respeite a quantificação feita pela parte. Com a segunda, que respeite a sua opção pela meio ou tipo de pretensão que a parte entendeu mais adequada à salvaguarda do seu direito. Em síntese, com esta disciplina, impôs o legislador ao juiz que, mantendo-se na causa de pedir e respeitando o pedido nem condene em mais do que lhe foi pedido nem em objecto diverso do que lhe foi pedido.

Todavia, se assim é em termos gerais, não podemos esquecer que em matéria de processo judicial tributário são diferentes as condições e limites impostos ao julgador na apreciação e decisão das pretensões colocadas em juízo, desde logo por este ser ainda um contencioso marcadamente de anulação, particularmente quando nos movemos no âmbito dos processos impugnatórios, como é o caso.

Ora, não há dúvida alguma que o objecto desta impugnação é, como a Recorrente reconhece na sua contestação e alegações de recurso, imediatamente, a anulação da decisão de indeferimento tácito do pedido formulado no recurso hierárquico. E, mediatamente, os actos de liquidação impugnados.

É verdade que o pedido que no final da petição inicial desta Impugnação Judicial foi formulado – “Deve a presente impugnação ser admitida e, a final, julgada procedente por provada e, em consequência, determinar-se a Administração a proceder à revisão das liquidações impugnadas, reconhecendo-se ao Impugnante a totalidade dos benefícios fiscais emergentes do atestado médico (…) e “a restituir o IRS a mais liquidado e pago por não ter sido considerado o atestado de incapacidade acima mencionado, acrescido de juros indemnizatórios previstos no artigo 43.º da LGT” – não é a formulação mais feliz (longe disso) do pedido de anulação do acto de indeferimento e de anulação das liquidações.

Porém, não só, como resulta da leitura atenta da petição inicial, foi com esse objectivo que aquele pedido foi formulado, como resulta da contestação (em que a Administração Tributária pugna pela manutenção da decisão de indeferimento e das liquidações na ordem jurídica) e dos autos apensos, que foi com esse objectivo que a Administração Tributária o interpretou.

Acresce que, não podem subsistir dúvidas que foi nesses mesmos termos que o Tribunal interpretou o pedido, como se vê da sentença no seu todo e, muito particularmente, do seu discurso jurídico final, atenta a restrição operada àquela dimensão, ao aí o juiz ter decidido:

Em consequência, resulta inválido o despacho de indeferimento em crise nos autos e, bem assim as liquidações de IRS impugnadas.

(…)

Por último, quanto ao pedido de condenação da Autoridade Tributária ao reconhecimento da totalidade dos benefícios fiscais emergentes do atestado de incapacidade emitido em 15/11/2013, sempre se impõe referir que, considerando o disposto no art.° 97.° do CPPT e o meio impugnatório deduzido (impugnação judicial), tal pedido não é suscetível de apreciação por este Tribunal.

Na verdade, só pode ser deduzida impugnação judicial sempre que estejam em causa atos administrativos relativos a questões tributárias que comportem a apreciação da legalidade do ato de liquidação [e nos casos expressamente previstos na lei (cf. alíneas b), d), e), f), g) n.º 1 do artº 97.º CPPT; n.º 13 do art.º 22.º do CIVA] não cabendo, nesta sede impugnatória, a apreciação de pedidos de reconhecimento de direitos (cfr. art.° 145.° do CPPT), pelo que resulta o mesmo sem efeito neste âmbito.

E também não advogue a Recorrente que, de todo o modo, face ao pedido, o juiz apenas podia anular parcialmente as liquidações impugnadas. Por um lado, porque, como dissemos já, em sede de contencioso tributário as limitações impostas ao juiz são diversas das que se colocam no processo judicia comum, o que, para o que ora releva, significa que não é o facto de um Impugnante peticionar uma anulação total ou uma anulação parcial que determina o julgamento, o qual será proferido num ou noutro sentido em função do que legalmente se impuser no caso concreto, designadamente no respeito pelos direitos do contribuinte na decorrência do reconhecimento da invalidade, e não em função ou estrita observância da pretensão formulada.

No caso, como bem aduz o Excelentíssimo Procurador, se não for entendido que existe erro de julgamento, a reconstituição da situação em conformidade com a lei, exige a anulação total das liquidações, uma vez que está em causa um erro de direito que afecta a liquidação no seu todo.

Em conclusão, ao julgar inválido o despacho de indeferimento tácito e ao anular as liquidações a Meritíssima Juíza nem condenou em quantidade superior nem em objecto diverso do pedido, improcedendo, pois, por todo o exposto, nesta parte, o recurso interposto.

3.2.4. Do erro de julgamento: a previsão normativa consagrada no artigo 78.º, n.º 4 da LGT e a insusceptibilidade de nela se integrarem as deduções à colecta relacionadas com deficiências fiscalmente relevantes.

Defende a Recorrente que a sentença, ao fundar juridicamente a invalidade do despacho e a ilegalidade das liquidações impugnadas no artigo 78.º, n.º 4 da LGT, padece de erro de julgamento por a norma em apreço, ou em bom rigor, a expressão “matéria tributável” nela contida não pode abranger as deduções à colecta, as quais diferentemente daquela, são efectuadas já no âmbito da liquidação do IRS. Em síntese nossa, para a Recorrente, a letra da lei, os elementos lógicos e o disposto no art. 9º, nº 3 do CC determinam que a única interpretação possível do regime consagrado no artigo 78.º, n.º 4 da LGT é a de que o mecanismo aí previsto não abrange as deduções à coleta, mormente as que se relacionam com pessoas com deficiências fisicamente relevantes previstas no art. 87º do Código de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), precisamente por não se enquadrarem no conceito de “revisão da matéria colectável” constante daquele primeiro preceito.

Vejamos, então, antes de mais, o que dizem os mencionados normativos.

Assim, consta do artigo 87.º do CIRS (na redacção aplicável, por ser a vigente à data dos factos), sob a epígrafe «Dedução relativa às pessoas com deficiência», que:

«1- São dedutíveis à colecta por cada sujeito passivo com deficiência uma importância correspondente a quatro vezes o valor do IAS e por cada dependente com deficiência, bem como, por cada ascendente com deficiência que esteja nas condições da alínea e) do n.º 1 do artigo 79.º, uma importância igual a 1,5 vezes o valor do IAS.

2- São ainda dedutíveis à colecta 30 % da totalidade das despesas efectuadas com a educação e a reabilitação do sujeito passivo ou dependentes com deficiência, bem como 25 % da totalidade dos prémios de seguros de vida ou contribuições pagas a associações mutualistas que garantam exclusivamente os riscos de morte, invalidez ou reforma por velhice." (sublinhado de nossa autoria)

Por sua vez, consta do n.º 4 do artigo 78.º, da LGT, que tem por epígrafe «Revisão dos actos tributários», o seguinte: «O dirigente máximo do serviço pode autorizar, excepcionalmente, nos três anos posteriores ao do acto tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte».

É na distinção conceptual que existe entre matéria tributável e matéria colectável que reside a resistência da Autoridade Tributária à admissão do erro grave e notório, quando reportado a situações de dedução à colecta relativas a deficiências reconhecidas. Ou seja, para a Administração Tributária, essa deficiência está legalmente reconhecida como fiscalmente relevante. E, no caso, admite que o pedido de revisão tem fundamento, uma vez que essa deficiência não foi, oportunamente relevada fiscalmente. Porém, a reposição da legalidade, através do mecanismo previsto no artigo 78.º, n.º 4 da LGT, “se resume ao rendimento bruto, às deduções específicas, aos rendimentos líquidos e, até 2008, aos abatimentos ao rendimento, deixando de fora as deduções à colecta”.

Todavia, e como muito bem decidiu o Tribunal a quo, em cuja fundamentação nos revemos integralmente, não lhe assiste razão.

É certo, deve ser reconhecido antes de mais, que, como a Autoridade Tributária realça, são distintos os conceitos de matéria tributável e matéria colectável.

Como se diz na sentença recorrida, convocando a doutrina que de forma atenta mais se tem dedicado a esta matéria, (João Sérgio Ribeiro, Tributação Presuntiva do Rendimento, Almedina, p. 115, nota 388.) a primeira reporta-se a um momento mais avançado no procedimento tributário, abarcando não só a determinação da matéria tributável propriamente dita (que no caso dos impostos sobre o rendimento será equivalente ao rendimento tributável), mas igualmente as operações que subsequentemente visam determinar o quantum tributário sobre o qual se aplicará a taxa, de forma a obter a colecta. A segunda, corresponderá a um momento anterior ao apuramento da matéria colectável, compreendendo as operações destinadas a determinar, no caso dos impostos sobre o rendimento, o rendimento fiscalmente relevante, após a subtracção dos custos ou perdas inerentes à sua produção.

Porém, a leitura de diversa legislação no domínio jurídico-tributário revela bem que nem sempre o legislador fiscal é impressivamente rigoroso na utilização dos conceitos, incluindo dos que apreciamos, aplicando indistintamente um ou outro, não expressando de uma forma tão rigorosa como seria desejável a realidade ou conjunto de realidades que pretende abarcar com os institutos ou mecanismos legais que consagra.

Convocando mais uma vez a sentença recorrida, “No contexto do IRS, a matéria (ou rendimento) tributável corresponderá aos rendimentos de cada categoria. A estes rendimentos serão feitas as correspondentes deduções específicas obtendo-se assim o rendimento líquido de cada categoria. Estes rendimentos serão depois englobados, obtendo-se então a matéria (ou rendimento) coletável (art.° 22° do CIRS) ao qual, de seguida, se aplicarão as taxas de imposto (art.° 68° do CIRS), assim se obtendo a coleta. Sobre este montante (a coleta) poderão ainda incidir as deduções à coleta (art.° 78° e ss. do CIRS). Após todas estas operações, apurar-se-á o imposto a pagar (ou receber).

Diferentemente, no contexto do IRC, a matéria tributável corresponderá ao lucro tributável (art.° 17° do CIRC) o qual, por sua vez, corresponderá, grosso modo, aos rendimentos e ganhos (art.° 20° CIRC) deduzidos dos gastos e perdas (art.° 23° CIRC). E a matéria colectável será determinada, por sua vez, pela dedução ao lucro tributável dos montantes correspondentes a prejuízos fiscais e benefícios fiscais (art.° 15° CIRC).

Em suma, os conceitos de matéria tributável e matéria colectável assumem particulares contornos no contexto de cada imposto, não necessariamente coincidentes contornos próprios que poderão não ser inteiramente coincidentes. E outros impostos existem no ordenamento fiscal português que não fazem sequer apelo a tais conceitos, como é o caso do IVA, do IMT ou do ISV, impostos no âmbito dos quais apenas se refere valor ou base tributável, resultando o imposto a pagar da aplicação de uma taxa a tais valores.

Debruçando-se sobre o campo de aplicação do instituto de revisão previsto no artigo 78.º da LGT e sobre o conceito de “matéria tributável” nele consagrado, adianta a doutrina um importante contributo para o que ora nos importa decidir: “Pensamos que o conceito de matéria tributável não deve ser entendido necessariamente em sentido restrito e em moldes rigoristas, até porque ele não é transversal a todos os impostos. (…) A entender-se que no caso da tributação do rendimento, se limitava ao rendimento colectável (artigo 78.º, n.º 4, da LGT), o qual resulta do englobamento dos rendimentos das várias categorias auferidos em cada ano, depois de efectuadas as deduções específicas e os abatimentos (artigo 22.º, n.º 1, do Código do IRS), não ficariam abrangidas então as deduções a colecta, as quais curiosamente correspondiam a abatimentos antes da Lei n.º 87-B/1998, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 1999). Parece-nos que tal interpretação significaria porventura coarctar, em termos práticos, uma importante garantia do contribuinte.

Os abatimentos têm que ver com o rendimento global líquido ao qual são abatidos, enquanto as deduções à colecta funcionam ao nível do cálculo final do imposto (a pagar ou a receber), uma vez que se abatem à colecta já determinada com base no rendimento colectável influenciado por aquele rendimento global líquido. Pelo que numa perspectiva puramente literal ficariam abrangidas pela revisão as mesmas despesas quando consideradas abatimentos (artigo 56.º, da LGT) e já não enquanto deduções à colecta (artigo 78.º, da LGT), o que não parece ter sido a intenção do legislador (artigo 78.º, n.º 5, da LGT), sob pena de ficarem prejudicados os contribuintes que pretendam a correcção de injustiça grave ou notória em relação a despesas com carácter personalizantes. Daqui podemos concluir que a técnica legislativa utilizada não revela harmonia perfeita entre a legislação que regula o procedimento e o processo tributário e a legislação substantiva em matéria de tributação de rendimento.». Paulo Marques, “A revisão do acto tributário”, Almedina, 2.ª Edição, revista, página 280.)

Este Supremo Tribunal Administrativo já se debruçou múltiplas vezes sobre a interpretação das normas jurídicas e o caminho desejável que nesta difícil tarefa se deve prosseguir, adiantando, também recorrentemente, que interpretar a lei é atribuir-lhe um significado, determinar o seu sentido a fim de se entender a sua correta aplicação a um caso concreto. Sublinha-se, em múltiplos arestos, que a interpretação deve ser realizada através de elementos, meios, factores ou critérios que devem utilizar-se harmónica e não isoladamente. E que sendo o primeiro elemento a considerar o elemento literal, as palavras através das quais o legislador se expressou, por nelas haver de revelar-se minimamente o resultado interpretativo a obter, constituindo, assim, o ponto de partida e o limite da interpretação, outros há que coadjuvando aquele conduzem o julgador à interpretação mais fiel à vontade do legislador, mais consentânea com o ordenamento jurídico no seu todo, desta forma se alcançando uma interpretação e aplicação mais correcta, isto é, um julgamento mais justo.

A jurisprudência que vimos citando mais não é do que a aplicação da disciplina consagrada no artigo 9.º do Código Civil à interpretação das normas jurídico-tributárias, sabido que, como também é recorrente dizermos, que não se regista quanto a esta tarefa fundamental qualquer imposição legal ou constitucional que exija que neste ramo do direito sejam outros os cânones interpretativos ou devam ser limitados os que, em geral, valem para os demais ramos do direito.

Tendo presente o que ficou dito e vertendo este nosso entendimento ao caso concreto, concluímos não existir fundamento para que seja afastada do conceito de injustiça grave e notória a situação que o probatório regista.

Efectivamente, sem olvidar, como começamos por salientar, que o legislador, no n.º 4, do artigo 78.º da LGT lançou mão do conceito de matéria tributável e o conteúdo técnico jurídico que, numa aproximação rigorosa, desta utilização resulta, certo é que, como também deixámos dito, não é incomum a utilização incorrecta, algumas vezes por manifesto lapso, da utilização de um ou outro dos conceitos, ou seja, impropriamente. Por outro lado, tendo sido intenção do legislador instituir um mecanismo de cujo regime resulte a possibilidade, dentro de determinado prazo, de se corrigirem injustiças graves e notórias, que, de resto, a Autoridade Tributária e Aduaneira reconheceu no acto de deferimento do pedido de revisão estar verificada, não se logra encontrar qualquer justificação para excluir a integralidade dessa reparação, ao invés de se aplicarem as limitações identificadas pela Recorrente.

Recordando de novo o raciocínio da doutrina já citada, se só consideramos a literalidade do preceito e adoptarmos uma concepção estrita do conceito vertido na norma chegamos a um resultado, por um lado, ilógico e, por outro, pouco compatível com a vontade que esteve subjacente à instituição deste mecanismo. Ilógico, porque as mesmas despesas ficam abrangidas quando consideradas abatimentos e já não ficam abrangidas enquanto deduções à colecta. Incompatível com a vontade, a intenção do legislador porque, sendo seu objectivo instituir um mecanismo capaz de corrigir injustiças graves e notórias, essa correcção nunca ocorreria em relação a despesas com carácter personalizante, o que não faz, naturalmente, qualquer sentido. Daí que, acompanhamos o autor quando afirma que estamos perante uma situação em que “a técnica legislativa utilizada não revela harmonia perfeita entre legislação que regula o procedimento e o processo tributário e a legislação substantiva em matéria de tributação de rendimento».

É, pois, tendo presente tudo quanto ficou exposto, quer a utilização nem sempre rigorosa dos conceitos em apreço quer os critérios interpretativos consagrados no artigo 9.º do Código Civil, que não entendemos ser de censurar a conclusão assumida na sentença recorrida de que a expressão “matéria tributável”, utilizada pelo legislador no n° 4 do artigo 78° da LGT, deve ser entendido como abarcando todas as situações em que a tributação levada a cabo redunde na prática de uma “injustiça grave ou notória”. E, em conformidade, ser de confirmar o julgamento de ilegalidade do acto de indeferimento tácito e das liquidações impugnadas.

4. DECISÃO

Termos em que, acordam os Juízes que integram a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, negar provimento ao recurso jurisdicional.

Custas pela Recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2023 – Anabela Ferreira Alves e Russo (relatora) – José Gomes Correia – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz (vencido, conforme voto que segue)

«Vencido

A sentença recorrida é nula, por haver proferido decisão, final, cujo objeto é diverso do pedido, no sentido de que a amplitude desse veredicto excede o pretendido pelo impugnante, no articulado inicial deste processo de impugnação judicial.

Concretamente, a sentença, em primeira linha, anulou “as liquidações de IRS impugnadas”, quando, o impugnante pediu: «

A) Deve a presente impugnação ser admitida e, a final, ser julgada procedente por provada e, em consequência, determinar-se a Administração a proceder à revisão das liquidações impugnadas, reconhecendo-se ao Impugnante a totalidade dos benefícios fiscais emergentes do atestado de incapacidade junto aos autos, emitido em 15.11.2013 [Cf. Doc. 1]; e

B) Deverá, ainda, condenar-se a AT a restituir o IRS a mais liquidado e pago por não ter sido levado em consideração o atestado de incapacidade acima mencionado, acrescido dos juros indemnizatórios previstos no art.º 43º da LGT.»).

Assim, enquanto o contribuinte pediu que as liquidações de IRS (dos anos de 2009 a 2012) fossem revistas, apenas, quanto à consideração de deduções à coleta (que serviços da autoridade tributária e aduaneira, inclusive, tinham aceitado – cf. A) a D) dos factos provados), o tribunal recorrido decidiu no sentido de que aquele não tinha de pagar IRS algum, nos anos em questão.».

Aníbal Augusto Ruivo Ferraz