Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01760/03
Data do Acordão:10/04/2006
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:CÂNDIDO DE PINHO
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL.
SEGURO ESCOLAR.
INDEMNIZAÇÃO.
Sumário:I - Os acidentes escolares estão cobertos pelo chamado seguro escolar, que, no entanto, apresenta limitações indemnizatórias decorrentes do grau da incapacidade do aluno e até os danos morais não são ressarcíveis totalmente.
II - Por isso, e mais ainda pelo facto de o recurso contencioso - que o interessado possa interpor da decisão que no âmbito do seguro estabeleça a indemnização - não ser de jurisdição plena, a tutela efectiva só é alcançada através de acção de condenação contra o Estado com base na responsabilidade civil extracontratual.
Nº Convencional:JSTA00063523
Nº do Documento:SA12006100401760
Data de Entrada:11/04/2003
Recorrente:A...
Recorrido 1:ESTADO PORTUGUÊS
Votação:UNANIMIDADE
Ref. Acórdãos:
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAC PORTO.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - RESPONSABILIDADE EXTRA.
Legislação Nacional:DL 35/90 DE 1990/01/25 ART17.
PORT 413/99 DE 1999/06/08 ART3 ART11.
CPC96 ART26.
LPTA85 ART71.
CCIV66 ART498.
DL 48051 DE 1967/11/21 ART5 ART2 ART3 ART6.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC59/05 DE 2005/04/19.; AC REL COIMBRA DE 2001/11/06 IN CJ XXVI TOMOV PAG13.; AC RP PROC322171 DE 2003/11/18.; AC TC 452/95 IN DR SII DE 1995/11/21.; AC STA PROC34483 DE 1994/07/12.; AC STAPLENO PROC224/02 DE 2006/06/22.
Referência a Pareceres:PPGR 132003 DE 2003/11/18.
Referência a Doutrina:GOMES CANOTILHO DIREITO CONSTITUCIONAL E TEORIA DA CONSTITUIÇÃO PAG664-665.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na 1ª Subsecção da 1ª Secção do STA
I – Na acção intentada no TAC do Porto por A... para efectivação de responsabilidade civil extracontratual contra o Estado, o digno Magistrado do M.P., em representação do Réu, agravou (fls. 113) do despacho saneador proferido no TAC do Porto, a fls. 99 e sgs., recurso que foi admitido com subida diferida.
Nas alegações respectivas, concluiu (fls. 168/175):
«1. Não é admissível a presente acção, por não constituir meio próprio e por não ter a A. interesse em agir judicialmente antes que se mostrem esgotados os mecanismos administrativos estabelecidos nos artigos 23º, 24º, 32º e 14º e sgs. da Portaria nº 413/99.
2. Ao decidir em sentido contrário, o douto despacho recorrido violou essas normas regulamentares conjugadas com o artigo 26º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil e 3º do ETAF.
3. A citação do R. na acção anteriormente proposta onde não se invocaram quaisquer factos integradores da culpa não interrompeu a prescrição relativamente ao direito a indemnização com base na responsabilidade por facto culposo, nos termos do artigo 323º, nº1, do Código Civil, pelo que se verifica a excepção da prescrição.
4. Está, assim, prescrito esse direito, nos termos das disposições combinadas dos artigos 71º, nº2, do DL nº 267/85, da LPTA, e 498º, nº1 do Código Civil, que a douta decisão recorrida violou, bem como o artigo 323º, nº1, do Código Civil.
5. Consequentemente, deverão julgar-se verificadas as aludidas excepções absolvendo-se o R. da instância ou do pedido».
Não houve contra-alegações.
Na oportunidade, julgada improcedente a acção (fls. 286 e sgs.), da respectiva sentença viria a autora a recorrer jurisdicionalmente.
Concluiu as alegações do seguinte modo:
«1 - No acto lectivo de 1996/1997 a recorrente era uma aluna da área curricular de desporto, sendo uma aluna aplicada e com bom comportamento.
2 – Durante uma aula de Educação Física no dia 12/12/1996, pelas 10 horas, orientada pelo respectivo professor, este solicitou à recorrente a realização de um exercício físico na barra fixa.
3 – Tal exercício consistiria em apoiar-se na barra com ambas as mãos, ficando com as pernas esticadas na vertical para cima e abertas, após o que deveria rodar sobre a barra.
4 – Por se tratar de um exercício complexo e com um grau de dificuldade bastante elevado, dado que não tinha experiência na sua realização, a recorrente mostrou algum receio quanto à sua execução.
5 – A recorrente era uma aluna aplicada e com bom aproveitamento, não se recusando à realização de qualquer exercício que lhe fosse solicitado, desde que entendesse estar ao alcance das suas capacidades técnicas.
6 – A recorrente receou a realização deste especifico exercício por a execução do mesmo ser complicada e exigir bastante prática e grande aptidão técnica por parte do aluno.
7 – Tratando-se de um exercício que, atentas as características, poderia advir algum perigo para o aluno no caso de má execução.
8 - Daí que, na realização deste tipo de exercício o Professor tem sempre que estar presente e auxiliar o aluno, enquanto este não estiver tecnicamente e psicologicamente preparado para o executar sozinho e em segurança.
9 – Não obstante a recorrente ser uma aluna daquela área curricular, o certo é que, em termos técnicos, não tinha conhecimentos nem prática suficiente para realizar o exercício ordenado pelo professor, muito menos sozinha!
10 – O receio demonstrado pela recorrente advinha precisamente do facto de, sendo uma aluna aplicada e com bom aproveitamento, ter perfeita noção da sua falta de preparação para a realização do exercício.
11 – Era dever do Professor certificar-se que o receio da recorrente era infundado e que estava completamente habilitada a realizá-lo.
12 – Ao obrigar a recorrente a efectuar o exercício sem a sua ajuda, o Professor violou o seu dever objectivo de cuidado e vigilância, a que estava obrigado, pelo desempenho das suas funções e de que era capaz, incorrendo, deste modo, num acto ilícito.
13 – Assim, o acidente que a recorrente sofreu ocorreu por culpa única e exclusiva do Professor de Educação Física o qual, mercê da sua negligência, imprudência e insensatez, lhe ordenou a execução de um exercício, sem a auxiliar, após verificar que a aluna não se sentia apta a fazê-lo.
14 – O Professor de Educação Física ordenou a realização do exercício e deixou de auxiliar a recorrente no decurso de uma aula por si ministrada, no âmbito do programa escolar tratando-se, assim, de um acto funcional.
15 – Os danos decorrentes do acidente em questão são os que constam dos factos dados como provados, que aqui se dão por reproduzidos.
16 – Foi na sequência do traumatismo da perna esquerda sofrido na referida aula de educação física, que a recorrente iniciou um quadro doloroso daquela região com edema.
17 – Tendo-lhe sido diagnosticada uma lesão osteolítica e detectado um derrame artificial de médio volume e uma acentuada alteração do extremo distal do fémur abrangendo os condilos, sobretudo, sobretudo o extremo, com espessamento e irregularidade da cortical com reacção periostica do extremo do extremo distal do fémur e um hipersinal das estruturas adjacentes.
18 – Após o que tais lesões foram sofrendo agravamento, levando a que a recorrente fosse submetida a diversas intervenções cirúrgicas e a severos tratamentos médicos e medicamentosos, os quais se encontram foram dados como provados.
19 – “À luz da causalidade adequada não é absolutamente necessário que a condição tenha ocasionado directa ou imediatamente o dano, pois basta que desencadeie outra condição que o produza, contando que este último seja consequência adequada do facto que deu origem à primeira”, bastando, para que se verifique o pressuposto do nexo de causalidade, a existência de uma causalidade indirecta. – in Ac. STA, de 24/03/1992, publicado na Revista de Direito Público, ano VI, n.º 12, pág. 106.
20 – Deste modo, encontram-se verificados todos os pressupostos da existência da responsabilidade civil extracontratual do Estado por factos ilícitos e culposos, ou seja, o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade, inexistindo qualquer causa de exclusão dessa responsabilidade.
21 – Pelo que o Estado, ora recorrido, é responsável pelo pagamento da indemnização peticionada pela recorrente para ressarcimento dos danos sofridos em consequência do mencionado acidente, nos termos do disposto nos artigos 2º, 3º, nº2 e 6º do Decreto-Lei nº 48051, de 21/11/1967 e dos artigos 483º, 487º, 563º e 564º do Código Civil e 90º do Decreto-Lei nº 100/84, de 29/03».
Alegou, igualmente, o Estado para pugnar pela improcedência das conclusões do recurso e pala confirmação da sentença.
Neste tribunal, o M.P. opinou no sentido do improvimento do recurso.
Cumpre decidir.
II – Os Factos
A 1ª instância deu por assente a seguinte factualidade:
«No ano lectivo de 1996/97, a A. frequentou o 12º ano de escolaridade, na área do desporto, na Escola Pública de ..., sita em ..., Viana do Castelo;
Nessa escola, no dia 12.DEZ.96, pelas 10H00, a A. teve uma aula de educação física sob a orientação do respectivo professor;
No âmbito dessa aula, a certa altura o respectivo professor ordenou à A. que efectuasse um exercício físico na barra-fixa;
Na execução desse exercício, a A. devia apoiar-se na barra com ambas as mãos, ficando com as pernas esticadas na vertical para cima e abertas, após o que deveria rodar sobre a barra;
Ao efectuar tal rotação, na posição atrás descrita, as mãos da A. escorregaram, tendo esta perdido o equilíbrio, e foi embater violentamente com a parte de trás do joelho esquerdo na barra-fixa;
A A. nasceu em 12.OUT.78 – cfr. doc. de fls. 97;
À data do acidente, a A. era uma aluna aplicada, com bom aproveitamento;
Em virtude de desejar seguir a carreira militar, a A. em MAI.97, apresentou-se voluntariamente no Centro de Classificação e Selecção a fim de ser incorporada no Exército, tendo sido considerada apta;
Por conta dos danos sofridos pela A. decorrente do acidente dos autos, o R. pagou à A. a quantia de 236 002$00.
Antes de iniciar o exercício físico, atrás mencionado, a A. mostrou algum receio quanto à sua execução;
Apesar de ter demonstrado algum receio, a A. executou aquele exercício físico sem o auxílio do professor de educação física;
Desde então, a A. passou a sentir fortes dores na perna esquerda;
Devido à persistência das dores, em JUL.97, a A. deslocou-se ao SU daquele Hospital, onde foi observada;
Por apresentar patologia óssea ao nível do fémur esquerdo, a A. foi enviada daquele Hospital para o IPO do Porto;
Em 25.JUL.97, a A. foi submetida a uma consulta de grupo no IPO do Porto, tendo-se constatado que, na sequência do traumatismo da perna esquerda sofrido na referida aula de educação física, a A. tinha iniciado um quadro doloroso daquela região com edema;
Após estudo de tal edema, concluiu-se que o mesmo apresentava uma lesão osteolítica de provável etiologia tumoral;
Para além disso, foi ainda detectado um derrame artificial de médio volume e uma acentuada alteração do extremo distal do fémur abrangendo os condilos, sobretudo o extremo, com espessamento e irregularidade da cortical com reacção periostica do extremo distal do fémur e um hipersinal das estruturas adjacentes;
A A. foi ainda submetida a um TAC, que confirmou a irregularidade cortical na vertente antero medial com múltiplas áreas de continuidade;
Em virtude de todo este quadro, a A. realizou biopsia sob controlo radiográfico da lesão do fémur esquerdo, cuja histologia revelou produto constituído por coágulo de sangue e tecido ósseo sem alterações assinaláveis;
Além disso, a A. apresentava um edema marcado do joelho esquerdo com limitação funcional;
Em virtude disso, a A. foi submetida a um RX do fémur esquerdo e foi-lhe efectuada uma biopsia incisional óssea, a qual revelou uma pequena área com uma neoplasia maligna osteoformadora compatível com a hipótese clinicaradiológica de osteosarcamos;
Em 25.AGO.97, a A. foi submetida à cirurgia pré-operatória, tendo-lhe sido retirados os pontos no dia 05.SET.97;
Em 12.SET.97, foi decidido submeter a A. ao tratamento de quimioterapia;
Em consequência de tal tratamento, a A. teve de ser internada no IPO do Porto, em 01.OUT.97, 28.NOV.97 e 31.DEZ.97;
Em 22.JAN.98, a A. foi, novamente submetida a cirurgia pré-operatória;
Em seguida, foi de novo internada no IPO do Porto em 23.FEV.98, 16.MAR.98, 06.ABR.98, 27.ABR.98 e 18.MAI.98, a fim de ser submetida a tratamentos de quimioterapia;
Tais tratamentos obrigavam a A. a ter consultas de estomatologia e de psiquiatria;
Em deslocações efectuadas ao IPO do Porto, a A. despendeu a quantia de 264 275$00;
A A. é portadora de uma prótese do joelho e do fémur esquerdo;
Derivado quer da lesão sofrida quer dos subsequentes tratamentos e intervenções cirúrgicas a que se submeteu, a A. sentiu e continua a sentir fortes dores;
A A. desloca-se com dificuldade;
A A. tem dificuldade em permanecer de pé;
As sequelas que a A. apresenta, impediram-na de seguir uma carreira profissional relacionada com as forças de segurança, com a carreira militar e com o desporto; e
Em virtude dos tratamentos a que se submeteu, a A. ficou com cicatrizes, por cuja feiura, extensão e localização se sente esteticamente diminuída».
Nos termos do art. 712º do CPC, adita-se ainda a seguinte factualidade:
A A. instaurou no Tribunal Judicial de Viana do Castelo contra o Estado Português acção ordinária para ressarcimento dos danos sofridos com a sua queda na aula de ginástica acima mencionada (fls. 34/40).
Nesses autos, foi o Estado citado através do M.P. em 24/09/99 e proferido despacho saneador, julgando o Tribunal Judicial materialmente incompetente e, em consequência, absolvendo o R. da instância (fls. 41/43).
A petição inicial dos presentes autos deu entrada no tribunal no dia 16/02/2000 (fls. 2).
No âmbito do seguro escolar não foi proposta à A. nenhuma indemnização, nem ela requereu ou foi convocada para nenhuma junta médica no âmbito do seguro escolar.
III - O Direito
1- Do agravo de fls. 113
a) Do erro na forma de processo
Entendeu o tribunal “a quo”, no despacho saneador, não se verificarem as excepções dilatórias de “erro na forma de processo” e da “falta de interesse em agir” por parte da A. e, bem assim, a excepção peremptória de “prescrição” invocadas pelo R.
Diferentemente, o recorrente advoga que os eventuais danos advindos do acidente escolar verificado estão cobertos pelo seguro previsto no DL nº 35/90, de 25/01, assente que está na socialização do risco inerente à actividade escolar.
Logo, a indemnização a atribuir, por se conter nesse estrito âmbito, é excluída do regime comum da responsabilidade civil extracontratual do Estado por actos de gestão pública.
Isto significaria que, antes do recurso aos tribunais, haveria que accionar o mecanismo da verificação da incapacidade e da sua relação com o acidente, nos termos dos arts. 14º e sgs. do Regulamento aprovado pela Portaria nº 413/99, de 8/06, a fim de lhe ser, então, paga a indemnização de acordo com a Tabela da Portaria nº 760/85, de 4/10.
E só então, caso não concordasse com a indemnização então atribuída, haveria lugar a recurso contencioso.
A presente acção, deste modo, não seria o meio próprio para a A. alcançar o efeito pretendido e, assim também, não teria ela interesse em agir.
Vejamos.
Se a adequação do meio processual se afere pelo pedido e causa de pedir formulados, então parece evidente estarem, no caso, reunidos todos os condimentos à propriedade da acção, já que a um acidente escolar, de que resultaram danos cujo ressarcimento ora se pede, se imputa uma actuação ilícita e culposa no quadro da gestão pública de uma instituição de ensino do Estado. Nada, portanto, que se não enquadre na disciplina do DL. nº 48051, de 21/11/67. Como se afirma em aresto deste mesmo STA para reconhecer a propriedade do meio escolhido, «É o que lhe corresponde, no âmbito do processo civil, em geral (artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do CPC), e é o que a LPTA prevê, mandando aplicar os termos do processo civil de declaração – artigo 71.º, n.º 2 e 72.º, n.º 1. Nem a LPTA nem o ETAF de 1984 contemplam outro meio principal para a efectivação da responsabilidade civil» (Ac. do STA de 19/04/2005, proc. nº 059/05).
Por conseguinte, por esse prisma, não acompanhamos o excepcionante.
A nosso ver, o problema que o MP suscita, não tendo que ver com a propriedade do meio da acção, prende-se já em averiguar se a A., por esta via, poderá obter êxito na sua pretensão indemnizatória, se for seguro que, por outra especificamente dirigida a esse fim, a poderia igualmente alcançar.
Configurada a esta luz, a questão não será de erro na forma de processo, mas de verificação de diferente excepção dilatória, in casu, inominada (art. 288º, nº1, al. e), do CPC).
Trata-se, portanto, de saber se o uso da acção prevista naquele diploma (DL. nº 48 051) pode substituir, ser acumulável, ou autónomo da via indemnizatória estabelecida no mecanismo do seguro escolar previsto na Portaria nº 413/99, de 8/06, designadamente nos arts. 3º, 10º, 11º e 12º (diploma que aplica o art. 17º do DL nº 35/90, de 25/01).
Ora, o chamado seguro escolar, conforme consta do preâmbulo do Dec. Lei n.º 35/90, de 25 de Janeiro, constitui uma das vertentes do apoio social e escolar aos alunos do ensino básico, destinando-se a garantir a cobertura financeira na assistência a alunos sinistrados.
Sob a epígrafe "Prevenção e seguro escolar", estabelece o artigo 17º do citado Dec. Lei n.º 35/90 que «nos estabelecimentos de ensino existirá um programa de prevenção de acidentes e seguro escolar"; dispondo o n.º 2 do mesmo artigo que " O programa referido no número anterior consiste em acções educativas no campo da segurança e prevenção de acidentes nas actividades escolares e num esquema de seguro que garanta a cobertura financeira da assistência a prestar aos sinistrados, complementarmente aos apoios assegurados pelo sistema nacional de saúde».
Como se escreveu no acórdão da relação de Coimbra de 6-11-2001, in CJ, ano XXVI, Tomo V, pag. 13 "o seguro escolar é um seguro social, cuja relação deriva da lei, por contraposição aos seguros privados, que são contratados com as seguradoras em obediência às regras do mercado".
Ou, como se diz no Ac. da R.P. de 18/11/2003, Proc. Nº 0322171, «O Estado enquanto segurador escolar, não exerce uma actividade seguradora ao nível dos seguros escolares "age como um ente público, no domínio da administração pública e na prossecução de um bem comum". O chamado seguro escolar é uma medida de assistência social ou segurança social, um serviço público. A terminologia usada pelo legislador, ao falar em seguro, reporta-se " ao que a doutrina vem classificando de seguro social, onde o Estado, intervindo embora como segurador, desempenha um serviço público e a relação de seguro nasce directamente da lei».
Ora, aquela Portaria nº 413/99 prevê que, em caso de acidente escolar, o seguro escolar garante ao aluno sinistrado assistência médica e medicamentosa (art. 7º), hospedagem, alojamento e alimentação (art. 8º), transporte (art. 9º) e indemnização por incapacidade temporária ou permanente e por danos morais (arts. 10º, 11º e 12º).
É, portanto, a própria lei que atribui aos alunos abrangidos pelo chamado seguro escolar o direito de serem indemnizados pelos danos decorrentes de acidente escolar (Ac. cit. da R.P., de 18/11/2003, Proc. Nº0322171; também Parecer da PGR, de 15/05/2003, nº 000132003).
Atentemos, agora, na noção de “acidente escolar” fornecida pelo art. 3º da referida Portaria:
«1 - Considera-se acidente escolar, para efeitos do presente Regulamento, o evento ocorrido no local e tempo de actividade escolar que provoque ao aluno lesão, doença ou morte.
2 - Considera-se ainda abrangido pelo presente Regulamento:
a) O acidente que resulte de actividade desenvolvida com o consentimento ou sob a responsabilidade dos órgãos de gestão do estabelecimento de educação ou ensino;
b) O acidente em trajecto nos termos dos artigos 21.º e seguintes do presente Regulamento».
Isto é, o Estado, na sua função sócio-educativa, avocou para si mesmo o dever de indemnizar o aluno por qualquer evento danoso ocorrido no local e tempo de actividade escolar.
No entanto, o diploma em apreço cria limites à indemnização, tendo em atenção o grau de incapacidade, cujo coeficiente é fixado por junta médica (cfr. art. 11º, nºs 1 a 3), e até os próprios danos morais não são ressarcíveis em toda a sua plenitude (art. 11º, nº4). Razão por que se divisam aqui dificuldades que o seguro não consegue resolver totalmente.
Claro que se poderia dizer que neste caso à Administração estaria destinada a primeira palavra através de procedimento especial prévio e ao tribunal caberá a apreciação da legalidade da definição além obtida através de recurso contencioso, caso o interessado não concordasse com o valor da indemnização atribuída (a propósito, o acórdão nº 452/95 do T. Constitucional, publicado no DR, II Série, de 1995.11.21 e Gomes Canotilho, in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, pp. 664/665; tb. acórdão STA de 1994.07.12, Proc. nº 34 483).
Só que, como é sabido, o recurso contencioso não é de plena jurisdição e, portanto, ele não se afirma com potencialidade para reparar na íntegra o direito ao ressarcimento total dos danos. Se ele visa somente apreciar a legalidade da decisão, ao tribunal que o decide acaba por escapar o poder de condenar o responsável, o que só pode ser conseguido através de uma acção condenatória.
Ora, se o direito à indemnização é de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, torna-se claro que a tutela judicial efectiva não ficaria assegurado pela via reactiva decorrente do simples uso do recurso contencioso interposto do acto atributivo da indemnização. Conferir a 1ª palavra à Administração, para depois consentir a impugnação contenciosa desse resultado não responde à necessidade de tutela do lesado - tanto mais quanto é certo que o mecanismo do seguro tem, como vimos, limites impostos pela natureza das enfermidades e sequelas, o que é inconciliável com um direito irrestrito a uma indemnização - além de contender com o art. 202º, nº2, da CRP, já que corresponderia a conferir à Administração um poder de composição de um conflito de interesses que só aos tribunais deve caber (neste sentido, Ac. do STA/Pleno, de 22/06/2006, Proc. nº 0224/02-20).
E embora se diga que essa fase é pré-judicial, o seu uso não pode em caso algum obstar ao accionamento dos mecanismos jurídicos através da acção para ressarcimento dos danos que o seguro escolar, pelas suas limitações, não tenha logrado cobrir. A acção baseada na culpa é, portanto, independente do seguro, e vice-versa. Quer isto dizer que a presente acção, além de ser forma processual adequada à discussão da responsabilidade imputada ao Estado a título de culpa, é também autónoma e independente do accionamento do seguro escolar.
b) Da falta de interesse em agir
Face ao que expusemos, se a A. com a presente acção pode alcançar um desiderato que o simples uso do seguro escolar lhe não asseguraria, é patente o seu interesse em agir e, com isso, a sua legitimidade processual activa (art. 26º do CPC).
Assim, andou bem o despacho saneador em fazer prosseguir o processo, considerando inexistir as invocadas excepções de impropriedade do meio e de falta de interesse em agir.
c)- Da prescrição
A autora, com a acção intentada no Tribunal Judicial de Viana do Castelo, intentava obter o ressarcimento dos danos resultantes, exactamente, dos mesmos factos descritos na presente acção.
Aí mostrou exprimir a intenção de exercer o direito à indemnização, sendo certo que o efeito suspensivo ou interruptivo não tem que ser obtido no processo em que o interessado pretende exercer o direito, podendo sê-lo noutro processo, mesmo que em tribunal incompetente, conforme o assegura o art. 323º, nº1, do CC.
Ora, tendo o acidente tido lugar em 12/12/1996 – data do conhecimento do direito - a instauração do processo no Tribunal Judicial de Viana do Castelo (declarado incompetente) em 17/05/1999 e a citação do M.P., em representação do Estado, em 24/09/1999, apresentam-se como factores interruptivos da prescrição, a tanto não obstando a circunstância de na acção intentada no Tribunal Judicial de Viana do Castelo não ter sido invocada a culpa. Na verdade, o que importa ao caso é a intenção de exercer o direito à indemnização, baseado em responsabilidade civil extracontratual do Estado por actos de gestão pública, como num caso e noutro sucedeu.
Logo, não se verifica a invocada prescrição de três anos (cfr. art. 71º, nº2, da LPTA e 5º do DL nº 48051, de 21/11/67 e 498º do C.C.), como decidiu, e bem, o saneador recorrido.
2- Do recurso da sentença
Quem aqui recorre é, agora, a autora, insurgindo-se contra a sentença da 1ª instância, que julgou improcedente a acção, por não ter dado por verificado dois dos elementos da responsabilidade civil extracontratual, concretamente a ilicitude do facto e a culpa do agente.
Efectivamente, se a ilicitude representa a ofensa de direitos e interesses de terceiros ou de disposições legais e regulamentares e princípios gerais de direito destinados à protecção desses direitos e interesses, ou é caracterizada pela prática de actos materiais que infrinjam essas normas e princípios e ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração, e se a culpa constitui a imputação subjectiva do facto ao lesante (cfr. art. 2º, 3º e 6º do DL nº 48051), então não vemos que tais elementos da responsabilidade possam vislumbrar-se na presente situação.
Na verdade, numa aula de ginástica, em princípio não assiste aos alunos o direito de se oporem à realização dos movimentos, exercícios e práticas atléticas, nem a faculdade de invocar interesses que os protejam da sua realização. A ofensa desses direitos e interesses só se verifica, portanto, se os alunos, por alguma razão particular identificada perante o professor, estiverem acautelados de forma a não realizarem os exercícios de ginástica, no todo ou em parte; isto é, só estarão salvaguardados se apresentarem causas específicas que os coloquem fora dessa actividade curricular. E não havendo normas legais e regulamentares que impeçam os professores de obrigarem os alunos a tais exercícios, a estes cumprirá acatar as ordens, fazendo-os. No caso em apreço, portanto, não houve ilicitude por parte do acto do professor em mandar a autora realizar o exercício na barra fixa.
E se não vemos que a decisão desse mesmo professor tenha violado qualquer norma legal ou regulamentar a esse nível, do mesmo modo não vemos que ele haja infringido regras de ordem técnica e de prudência comum que devessem ser tidas em consideração. Com efeito, a recorrente era uma aluna da “área curricular de desporto”, “aplicada”, com “bom aproveitamento”, nada fazendo prever que não conseguisse realizar o exercício na barra fixa. É certo que ela mostrou “algum receio quanto à sua execução” (matéria de facto). Porém, não deixou de o executar. Por outro lado, de acordo com a matéria de facto provada, ficou por demonstrar que o exercício físico fosse de «elevado grau de dificuldade» (art. 2º da base instrutória), que tivesse pedido ao professor «para não efectuar tal exercício» (art. 2º, b.i.), que «se o professor tivesse permanecido junto da aluna ou da barra ele poderia ter impedido a violência do embate» (4º, b.i.). Ou seja, não está demonstrado que tivesse havido violação de regras técnicas por parte do professor, tal como não se provou que ele tivesse incorrido em incúria, negligência ou em falta de prudência comum com a ordem dada a esta aluna para a execução do referido exercício.
Estando tudo isto provado nos autos, então não se vê como possa dizer-se que a atitude do professor fosse censurável, especialmente perante uma aluna aplicada da área de desporto, e que pretendia, inclusive, seguir uma carreira militar. O acidente terá, então, ocorrido por uma qualquer causa estranha à atitude do professor e, talvez mesmo, ligada à própria aluna. O que significa que o facto danoso não é directamente imputável ao professor.
Em suma, faltando os requisitos da ilicitude e da culpa, nenhuma censura pode ser dirigida à sentença recorrida.
IV - Decidindo
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela autora.
Lisboa, 4 de Outubro de 2006. Cândido de Pinho (relator) – Azevedo Moreira – Pais Borges.