Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02133/14.7BEPRT
Data do Acordão:03/04/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P25697
Nº do Documento:SA12020030402133/14
Data de Entrada:10/03/2019
Recorrente:GESTÃO DE OBRAS PÚBLICAS DA CÂMARA MUNICIPAL DO PORTO
Recorrido 1:A....... E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA FORMAÇÃO DE APRECIAÇÃO PRELIMINAR DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:

I. RELATÓRIO

A……….., S.A. E OUTROS intentaram, no TAF do Porto, contra GESTÃO DE OBRAS PÚBLICAS DA CÂMARA MUNICIPAL DO PORTO, E.M., a presente acção administrativa comum pedindo a condenação da Ré a pagar-lhes 59.117,02 €, respeitante a um crédito/direito de agir cedido, em 11.03.2014, pela Massa Insolvente da firma B……….., S.A.”.

Aquele Tribunal julgou caduco o direito de agir pelo que absolveu a R. do pedido.
Decisão que o Tribunal Central Administrativo Norte revogou, ordenando a remessa dos autos ao TAF para que aí prosseguissem os seus termos se a tal nada obstasse.

É desse acórdão que a Ré vem recorrer justificando a admissão da revista com a relevância jurídica e social da questão e com a necessária intervenção do STA com vista a uma melhor interpretação e aplicação do direito (art.º 150.ºdo CPTA).

II. MATÉRIA DE FACTO
Os factos provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III. O DIREITO

1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto como «válvula de segurança do sistema» para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos se, in casu, tais requisitos se verificam.

2. Em 07.10.2008, a Ré adjudicou à “B……….., S.A.” uma empreitada, consignada em 27.11.2008 e recepcionada provisoriamente em 31.07.2009, cuja correcta execução foi parcialmente assegurada por uma garantia bancária prestada pelo BCP, tendo os segundo e terceiro Autores dado o seu aval a uma livrança, emitida pelo BCP e subscrita pela B………, destinada a assegurar o reembolso da quantia garantida à Ré.
Em 27.02.2012 foi declarada a insolvência dessa sociedade e, na sequência desse facto a ré solicitou à massa insolvente, em 24.05.2012, o pagamento de 59.117,02 €, decorrente de revisão de preços, solicitação que foi recusada. O que determinou que a ré accionasse junto do BCP, por carta datada de 15.10.2013, a garantia bancária constituída. Em 11.03.2014, a Massa Insolvente da cedeu o crédito/direito de agir que detinha sobre a Ré à Autora A……...
A presente acção entrou em juízo em 03.09.2014.

O TAF julgou caduco o direito de agir com a seguinte fundamentação:
“...
Segundo a ré, verifica-se a excepção de caducidade do direito que os autores pretendem exercer, nos termos do disposto no art.º 255º do RJEOP (DL nº 59/99, de 02/03 - diploma aplicável à empreitada que esteve na génese do accionamento da garantia.)
Os Autores insistem que aqui não se trata de questão ínsita à relação entre empreiteiro e dono da obra, mas apenas da garantia bancária indevidamente accionada.
....
O art.º 255º, respeitante ao prazo de caducidade não é um dos pertencentes ao leque imediatamente revogado pelo art.º 18º, nº 2 do DL nº 18/2008 (art.°s 260º a 264º do RJEOP).
Diz este artigo:
As acções deverão ser propostas, quando outro prazo não esteja fixado na lei, no prazo de 132 dias contados desde a data da notificação ao empreiteiro da decisão ou deliberação do órgão competente para praticar actos definitivos, em virtude da qual seja negado algum direito ou pretensão do empreiteiro ou o dono da obra se arrogue direito que a outra parte não considere fundado.”
Dos factos acima elencados, resulta claramente, cominada a data em que à data em que foi interposta a presente acção já estava excedido o prazo de 132 dias úteis previstos no art.º 255º do RJEOP acima transcrito.
Caberia à cedente do crédito, a B………, S.A. (respectiva massa insolvente) ter interposto, in illo tempore, a competente acção, procurando justificar em que medida foi indevidamente accionada a garantia bancária constituída. Aí se aduziriam os argumentos que os autores agora procuram aduzir, mormente a extemporaneidade da “revisão de preços”.
Não o tendo feito, caducou o seu direito de agir. Cedeu assim à aqui autora A………. um direito de agir que se encontrava caduco.
Assim sendo, porque caducou o direito de agir que os autores ora procuram exercer, cumpre absolver a ré do pedido contra si formulado.”

Decisão que o TCA revogou pela seguinte ordem de razões:
“........
O T.A.F. do Porto considerou que tendo a garantia bancária, prestada pela B………sido accionada junto do BCP por carta datada de 15/10/2013 e nada tendo feito a B………nos 132 dias subsequentes, caducou o direito de agir desta, pelo que cedeu a B……… à A…..… um direito de agir que se encontrava caduco, acabando por concluir que se mostrava caduco o direito de agir que (todos) os autores procuravam exercer.
Constitui entendimento deste Tribunal que o recurso deve proceder.
Em primeiro lugar importa referir que a causa de pedir dos diversos AA., elencada na petição inicial não é a mesma relativamente à A. A………. e aos AA. C……… e D………... Com efeito, a causa de pedir da A……….. é a invocada cessão de créditos, nos termos de contrato que terá sido celebrado com a Massa Insolvente da B…………, Lda, enquanto que os demais AA., nos termos alegados “...deram o seu aval a uma livrança em branco (uma vez que se encontrava por preencher a data de vencimento, o montante, o local e a data da emissão), emitida pelo BCP, subscrita pela B.........., para garantia do cumprimento da obrigação de reembolso que recaia sobre a aludida B…….., em caso de entrega da quantia garantia à Ré.” — cfr. item 10º da p.i..
Assim, relativamente à A. A……….. o fundamento do pedido por esta formulado é o crédito que esta invocou ter-lhe sido transmitido pela Massa Insolvente da B……… em 11/03/2014 pelo que não está em causa uma acção que vise a interpretação, validade ou execução do contrato de empreitada de obras públicas, não obstante o alegado crédito transmitido à A……… ter, na sua génese, o accionamento, parcial, de garantia bancária, prestada pela B………., SA como garantia de boa execução da empreitada que lhe foi adjudicada pela ora Recorrida.
Não obstante os AA, referirem que o accionamento da garantia é ilegal, por o mesmo radicar em revisão de preços, por banda da recorrente, que estes consideram ilegítima, não está em causa, relativamente à A……… a interpretação, validade ou execução do contrato de empreitada de obras públicas, mas sim, o que constitui questão relativamente ao mérito da acção, saber se o crédito alegadamente transmitido existia ou não e, existindo, o mesmo foi, efetivamente, transmitido.
Na verdade, determinar se para a existência do crédito teria sido necessário que a B……….tivesse demandado, com êxito, a recorrida peticionando a anulação ou a declaração de nulidade do acto administrativo que calculou e determinou a revisão de preços é algo que contende com o mérito da ação e não com qualquer questão de caducidade do direito invocado, direito esse que, no caso da A………., emerge da invocada cessão de créditos, pelo que o recurso, nesta medida, terá que proceder.
Importa agora analisar o decidido pelo T.A.F. do Porto no que concerne à caducidade do direito de agir relativamente aos 2º e 3º AA. No que concerne a estes - avalistas da B..., S.A, por terem dado “..,o seu aval a uma livrança em branco (uma vez que se encontrava por preencher a data de vencimento, o montante, o local e a data da emissão), emitida pelo BCP, subscrita pela B……….., para garantia do cumprimento da obrigação de reembolso que recaia sobre a aludida B………, em caso de entrega da quantia garantia à Ré” - o T.A.F. retirou da conclusão segundo a qual a Massa Insolvente da B…………., S.A. ter cedido à A. A……….um direito de agir que se encontrava caduco, a decisão segundo a qual se mostraria caduco o direito de agir de todos os AA., não mencionando que a causa de pedir da A………. e dos 2° e 3° AA. não é a mesma, dado a causa de pedir dos 2° e 3° AA ser a invocada posição de avalistas da B……., S.A..
A questão que se coloca é se, relativamente a estes AA., decidiu bem o T.A.F do Porto quando julgou caduco o direito dos mesmos de accionar a Recorrida, com o fundamento de a Massa Insolvente da B……………, S.A. ter cedido um direito caduco por não ter, em devido tempo, recorrido ao meio contencioso previsto no artigo 254° do DL n° 59/99, de 2 Março.
Também quanto a estes AA. importa referir não existir a invocada caducidade de direito de acção dado a mesma apenas poder ser oposta à B…………., S.A. - outorgante do contrato de empreitada de obras públicas celebrado com a Recorrida - ou à respectiva Massa Insolvente, pelo que a questão de saber se o direito invocado, nos autos, pelos 2° e 3.º AA,, é afectado pelo facto de a B……….. não ter reagido contra a deliberação da Recorrida que determinou e calculou a revisão de preços é matéria que contende, igualmente, com o mérito da pretensão por estes formulada, não se podendo, assim, concluir mostrar caducado o direito (de agir) exercido por estes AA., pelo que, também nesta medida, deve proceder o recurso, devendo os autos ser remetidos ao T.A.F do Porto para que aí prossigam, se a tal nada obstar.”

3. A Ré, ora recorrente, não se conforma com tal decisão pelo que pede a admissão desta revista para a qual formula, entre outras, as seguintes conclusões:
B. Os temas decidendum do caso sub iudice assumem relevância jurídica, uma vez que é reconhecida, desde a primeira instância, a complexidade lógica e jurídica da problemática em discussão, relacionadas com a utilização do regime de cessão de créditos como forma de falsear a execução dos contratos de empreitadas, mais concretamente as obrigações legais aplicáveis às empresas adjudicatárias desses contratos e, mais amplamente, de quaisquer contratos públicos.
C. Também é enorme a capacidade de expansão da controvérsia, na vertente da possibilidade (ou probabilidade) de o mesmo problema se vir a colocar num número indeterminado de situações, uma vez que esta, além ser transversal a todos (os muitos) casos de cessão de créditos no âmbito da execução de contratos públicos, sejam eles de empreitada, de locação, de aquisição de bens móveis ou serviços, basta que em qualquer um desses contratos seja exigida a prestação de uma caução (como é regra que seja – cf. artigo 88.º do Código dos Contratos Públicos) e ela seja prestada através de garantia bancária – como é usual fazer-se – para que a questão subjacente aos autos também se possa colocar.
D. Por outro lado, não há jurisprudência deste Supremo Tribunal sobre esta matéria que possa evitar que decisões como a recorrida se repitam nos tribunais inferiores. Aliás, este Supremo Tribunal já reconheceu expressamente, a propósito de um contrato de “factoring”, a inexistência de jurisprudência relativamente aos direitos que um contraente público pode opor ao adquirente dos créditos e, ao mesmo tempo a importância jurídica da questão – cf. Acórdão (de admissão de recurso de revista) de 03.02.2015, proferido no processo n.º 084/15

4. Como o antecedente relato evidencia a situação que se nos apresenta é juridicamente complexa e isto por estarmos perante uma acção em que três Autores formulam um único pedido fundado em diferenciadas causas de pedir.
Com efeito, enquanto a causa de pedir da A……….. é a invocada cessão de créditos, os demais AA fundam o seu pedido no aval que deram a uma livrança emitida pelo BCP e subscrita pela B……….. Tudo tendo como pano de fundo um contrato de empreitada e as consequências dele decorrentes.
Ora, esta questão foi diferentemente apreciada e decidida pelas instâncias.
Sendo assim, e sendo que a sua complexidade merece ser reapreciada por este Tribunal justifica-se a admissão do recurso.
Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em admitir a revista.
Sem custas.

Porto, 4 de Março de 2020. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – Carlos Carvalho.