Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0122/20.1BALSB
Data do Acordão:03/25/2021
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CA
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
OBJECTO IMPOSSÍVEL
Sumário:I - A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias que vise exclusivamente a imposição judicial de uma conduta que permita circular no território nacional em determinados dias, não pode ser judicialmente imposta depois daquela data por falta de objecto.
II - A decisão que se limite a verificar a impossibilidade de satisfazer judicialmente a pretensão do Recorrente não encerra nenhuma violação da garantia da tutela jurisdicional efectiva, seja na dimensão do direito a recorrer, seja quanto a um alegado exercício futuro do direito de acção para efectivar uma eventual responsabilidade civil.
Nº Convencional:JSTA00071092
Nº do Documento:SAP202103250122/20
Data de Entrada:12/15/2020
Recorrente:A......
Recorrido 1:ESTADO PORTUGUÊS E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Legislação Nacional:RCM 89-A DE 2020/10/26
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo


I - RELATÓRIO

1 – A………, com os sinais dos autos, intentou neste Supremo Tribunal Administrativo, em 29 de Novembro de 2020, contra a Presidência do Conselho de Ministros, igualmente com os sinais dos autos, uma intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, na qual formulou o seguinte pedido: "deve ser julgada procedente a presente intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias e ser o requerido Estado Português intimado a respeitar o direito fundamental da requerente à livre circulação e locomoção no território nacional no período compreendido entre as 00h00 do dia 30/10/2020 e as 06h00 do dia 03/11/2020 e em consequência, o requerido abster-se de qualquer acto que, por si ou através das forças de segurança e de fiscalização, a impeça de exercer plenamente este direito no quadro da Resolução do CM n.º 89-A/2020 de 26 de Outubro. Nada mais peticionou.


2 – Por acórdão de 31 de Outubro de 2020 a intimação foi julgada improcedente por se considerar não verificada a alegada violação de direitos, liberdades e garantias.

3 – Inconformada, a Requerente interpôs em 17 de Novembro de 2020 [fls. 247 do SITAF] recurso dessa decisão, o qual rematou com as seguintes conclusões:
«[…]

I - O presente recurso jurisdicional vem interposto da decisão proferida pela Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, datada de 31 de Outubro de 2020, através da qual se julgou improcedente a presente intimação, considerando-se por não verificada qualquer violação de direitos, liberdades e garantias.

II - Para o efeito, e em suma, concluiu-se no supra citado aresto que:

i) O teor das medidas restritivas de circulação, adoptadas pelo Governo através da Resolução do Conselho de Ministros 89-A/2020 de 26 de Outubro, “(…) se aproxima mais de uma “recomendação agravada” do que uma proibição”;

ii) Existe habilitação parlamentar, resultante de “(…) uma cadeia de legitimação que tem no seu topo uma lei parlamentar” para a emissão de tais medidas;

iii) Que tais medidas se reputam de adequadas, necessárias e proporcionais;

iv) Que tais medidas não violam o princípio da igualdade

II - Ora, salvo o devido respeito, não pode a ora Recorrente conformar-se com o entendimento sufragado no Acórdão recorrido.

III - Com efeito, e compulsadas as normas regulamentares da Resolução de Ministros sub judice, constata-se, à evidência, que estamos perante medida uma verdadeira medida proibitiva, na medida em que, estando perante um verdadeiro dever, o seu incumprimento acarreta consequências que se projectam nas liberdades individuais de cada um.

IV - Neste sentido, veja-se o ponto 6. do voto vencido do Acórdão recorrido, através do qual se menciona o seguinte: “Não estamos em presença de uma determinação que revista ou se possa qualificar como detendo a natureza de simples soft law, desprovida da instituição de uma obrigação/dever jurídico e da respectiva sujeição aos meios e mecanismos de coação e punição para as situações do seu incumprimento, já que, manifestamente, não podemos sustentar que a normação proibitiva instituída no ato e de que o desrespeito ou a resistência à ordem das autoridades em aplicação da mesma não aporte ou se mostre desprovida de uma qualquer sanção/consequência no plano das liberdades individuais daqueles que não acatem as ordens ou determinações que directamente lhes sejam dirigidas pelas autoridades em execução da RCM no segmento em crise.” (sublinhado nosso).

V - Mal andou, pois, a decisão quando, no que concerne à qualificação da norma, concluiu que o seu conteúdo “(…) se aproxima mais de uma “recomendação agravada” do que uma proibição; (…)”

VI - Por outro lado, e conforme, desde logo, mencionou a ora Recorrente na sua Petição Inicial, nenhum do acervo normativo evidenciado na Resolução aqui em apreço (a saber, artigos 12º e 13º do Decreto-Lei nº 10- A/2020, de 13 de março, na sua redação actual, por força do disposto no artigo 2º da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, na sua redação actual, do artigo 17º da Lei nº 81/2009, de 21 de agosto, do nº6 do artigo 8º e do artigo 19º da Lei nº 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual, e da alínea g) do artigo 199º da Constituição), habilita o Governo para, por si, impor a restrição do direito de circulação ali contida.

VII - Remete-se, outrossim, e no que tange a esta matéria, para os fundamentos aduzidos no voto vencido do Acórdão recorrido, concluindo-se ali que pela violação do artigo 18º, 44º, 112º e 165º, nº1, b), todos da Constituição da República Portuguesa.

VIII - Ademais, e como bem se refere no ponto 11. e 12. da argumentação ali expendida, “11. Importa, todavia, notar que uma tal cadeia de legitimação não pode bastar-se, ou ser entendida/considerada como admitindo a possibilidade de “delegação” aberta e irrestrita de que uma lei da AR ou de um Decreto-Lei autorizado do Governo possam autorizar um acto regulamentar, ou um acto administrativo, a operarem uma restrição, inovadora e autónoma, de um direito, liberdade e garantia, mormente o em causa na acção – liberdade de deslocação -, já que isso envolveria uma inequívoca infracção dos referidos arts. 18º, nº2, e 165º, nº1, b), da CRP.

12. (…) E essa cadeia de legitimação mostra-se alvo de sérias reservas doutrinárias [cfr, entre outros, J.J. Gomes Canotilho, in: “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, págs. 1278/1279, J.C. Vieira de Andrade, in: “Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, 5ª ed., págs. 224 e 290/291].”

IX - Não tendo sido esse o sentido da decisão vertida no Acórdão recorrido, deve o mesmo ser revogado, por erro de julgamento e violação de lei, designadamente, dos preceitos legais supra mencionados, a saber 18º, 44º, 112º e 165º, nº1, b) da CRP.

X - Sem embargo, sempre entende a ora Recorrente que as medidas de restrição sub judice se consubstanciam numa verdadeira suspensão do exercício do direito de circulação previsto, constitucionalmente, no artigo 44º da Lei Fundamental, a partir do momento em que tal circulação deixa de ser livre para ser condicionada ao controle de autoridades.

XI - Por outro lado, não pode a ora Recorrente, de igual modo, conformar-se com o entendimento versado no Acórdão recorrido, no que concerne à necessidade, adequação e proporcionalidade das medidas em apreço.

XII - Efectivamente – e permitindo-nos, desde logo, remeter para a argumentação, oportunamente expendida na Petição Inicial apresentada em juízo – não obstante a situação epidemiológica, actualmente vivenciada, certo é que tal circunstância não pode justificar a não observância dos preceitos constitucionais, garante do Estado de Direito.

XIII - Acresce ainda – conforme, desde logo, e de igual modo, a ora Recorrente teve oportunidade de demonstrar, remetendo-se para os argumentos aduzidos na Petição Inicial – a medida de restrição de circulação aqui em apreço reputa-se de absolutamente desproporcional, não podendo prever-se, sequer que produza qualquer efeito a nível do controlo da pandemia.

XIV - Por outro lado, e sem qualquer evidência científica que comprove a eficácia de tal medida, ao nível da contenção do surto epidemiológico, ficam, irremediavelmente, comprometidos os princípios da igualdade e universalidade, na medida em que tratam, de forma injustificada e distinta, os cidadãos cujos familiares residam no mesmo concelho e os que não residem,

XV - Limitando, de resto, e de igual forma, o direito à liberdade de consciência, de religião e de culto previsto no artigo 41º da CRP, impedindo milhões de portugueses de praticar plenamente o culto religioso, sendo certo que as medidas se reportaram ao período que abrange o feriado religioso do dia de finados.

XVI - Em suma, e pelos motivos supra expostos, mal andou a Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo ao julgar por não verificada qualquer violação de direitos, liberdades e garantias, encontrando-se tal decisão inquinada por vício de violação de lei e erro de julgamento.

XVII - Deve, assim, nesses termos, a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue a presente intimação procedente, e, em consequência, tenha por verificada a violação dos direitos liberdades e garantias aqui em apreço, fazendo-se, assim,

JUSTIÇA!

Pelo exposto, deve o presente recurso jurisdicional ser considerado procedente, por provado, com as devidas consequências legais, devendo o Acórdão recorrida ser revogado, com as devidas consequências legais.


4 – A Recorrida apresentou contra-alegações nas quais alegou falta de interesse processual e inutilidade objectiva do recurso, para além de pugnar pela inadmissibilidade do mesmo e, subsidiariamente, pela manutenção do julgado.

5 – Notificada a Recorrente para se pronunciar sobre a inutilidade superveniente da lide, a mesma apresentou um requerimento em que sustentou o interesse da lide com base no seguinte (fls. 318 do SITAF):
«[…]

1 - A ora Recorrente, não se conformando com o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, datado de 31 de Outubro de 2020, veio dele, legitimamente, interpor recurso jurisdicional para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto no artigo 25º, nº1, a) do ETAF e artigo 144º e artigo 147º do CPTA.

2 - Tal recurso jurisdicional foi admitido por despacho proferido pela Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, datado de 14 de Dezembro de 2020;

3 - Vem agora o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo, ao contrário do entendimento anteriormente versado no supra citado despacho proferido pelo Tribunal a quo, considerar o seguinte:

“(…) não obstante o recurso ter sido admitido por despacho de 14 de Dezembro de 2020, tal despacho não vincula este Tribunal [artigo 641.º, n.º 5 do CPC], o qual, pelas razões antes expostas, considera ser manifesta a inutilidade superveniente da lide [artigo 277.º, al. e) do CPC] e, nessa medida, dever ser julgado extinto o recurso por não haver que conhecer do seu objecto [artigo 652.º, n.º, als. b) e h) do CPC e artigo 145.º, n.º 2, al. a) do CPTA].”

4 - Salvo o devido respeito, não pode a ora Recorrente conformar-se com a posição ali versada, pelos motivos e fundamentos que se passam, doravante, a demonstrar.

5 - Vejamos:

No que tange à utilidade do presente recurso jurisdicional, importa, desde logo, ater-nos ao meio processual urgente em causa nos presentes autos, designadamente aos seus pressupostos e à sua finalidade, articulando-o, de forma efectiva, com a garantia de recurso jurisdicional que o legislador consagrou, por forma a obter, em segunda instância, a apreciação da decisão de mérito que seja proferida,

6 - Garantia essa – diga-se - reforçada, in casu, através do disposto no artigo 142º, nº 3, a) do CPTA, estatuindo, relativamente às decisões que admitem recurso, que: “3 – Para além dos casos previstos na lei processual civil, é sempre admissível recurso, independentemente do valor da causa e da sucumbência, das decisões: a) De improcedência de pedidos de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias; (…)” (sublinhado nosso).

7 - Dispõe, por seu turno, no que tange ao preenchimento dos pressupostos para a admissão do meio processual em apreço nos presentes autos, o artigo 109º do CPTA, que:

1 - A intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar.” (sublinhado nosso).

8 - Ora, procedendo à leitura do supra citado preceito legal, conclui-se que, neste tipo de processo urgente, que a prolação da decisão em primeira instância ocorrerá sempre na eminência da consumação/preenchimento da lesão ao direito que se pretende acautelar.

9 - Será, de resto, tal circunstância, que justificará, desde logo, que o tribunal profira uma decisão definitiva, perante a impossibilidade de definição provisória do direito afastando, por isso, a adopção de uma providência cautelar.

10 - Ora, se assim é, importa efectivar/harmonizar este tipo de acção e as decisões de mérito que nela são proferidas com a garantia que o legislador concedeu às partes de, não se conformando com a decisão que foi proferida, poder sindicá-la perante os tribunais superiores,

11 - Considerando, mormente o tempo normal de decisão dos tribunais e o andamento médio regular na tramitação dos autos, com a inerente observância dos prazos processuais.

12 - Ora, a considerar-se que o preenchimento da situação de facto inutiliza o prosseguimento dos autos e a consequente apreciação superior das decisões de mérito que são proferidas, esvaziar-se-ia, na prática, na maioria das intimações que são requeridas, o direito de recurso jurisdicional que o legislador previu no CPTA para este tipo de acções, levando a que, in extremis, nenhum recurso jurisdicional viesse a ser julgado, atento, designadamente o hiato de tempo, entretanto, decorrido até ao trânsito em julgado da decisão.

13 - Situação que, cremos, não terá estado no espírito do legislador, atendendo – reitere-se – não só ao direito de recurso jurisdicional nas circunstâncias gerais, bem como ao reforço das garantias em situações - como a dos presentes autos - contempladas no nº 3, alínea a) do artigo 142º do CPTA.

14 - Assim, e salvo o devido respeito, o entendimento de que a utilidade da interposição do recurso jurisdicional se esgota na ocorrência do evento que impossibilita a execução (por acção ou omissão) da conduta objecto de intimação, viola, além das garantias ínsitas no disposto no artigo 140º e seguintes do CPTA, o direito constitucionalmente previsto à obtenção de uma tutela jurisdicional efetiva plasmado no artigo 20º da CRP.

15 - É que – diga-se - salvo o devido respeito, o interesse da ora Recorrente na interposição de recurso jurisdicional não pode limitar-se à aferição da possibilidade de execução da decisão que venha a ser proferida,

16 - Sendo certo que, para a ponderação da utilidade a retirar, tal impossibilidade deve ser distinguida do interesse que a ora Recorrente continua a manter no prosseguimento da lide, com vista à discussão/apreciação da legalidade/constitucionalidade da conduta levada a cabo pela ora Recorrida.

17 - A análise/ reapreciação, por parte de tribunal superior, da ocorrência de violação de direitos, liberdades e garantias, pode, em caso de procedência do presente recurso jurisdicional da consequente verificação da lesividade da esfera jurídica da Recorrente, ser geradora de indemnização por responsabilidade civil advinda de actos de gestão pública, por parte da Entidade Requerida, podendo a ora Recorrente, portanto, sempre daí retirar uma vantagem juridicamente relevante.

18 - Em suma,

A eventual procedência, em sede de recurso jurisdicional, da presente intimação, com o decretamento da abstenção de condutas da Entidade Requerida (ainda que, à data, de impossível execução) terá sempre subjacente o reconhecimento da ilegalidade das medidas proibitivas que foram adoptadas e, em consequência, a verificação (ainda que já posteriormente) da violação dos direitos, liberdades e garantias da ora Recorrente, com a consequente e inerente reparação a que tem direito, nos termos da lei – cfr., entre outros, DL 67/2007 de 31 de Dezembro,

19 - O que só é efectiva e processualmente possível através do presente recurso porquanto, a contrario, a decisão proferida em primeira instância, ainda que com ela a Recorrente não se conforme, não poderia nunca ser devidamente sindicada, passando a fazer caso julgado quanto ao aí decidido em sede de direitos fundamentais e, consequentemente, impedindo o eventual direito da Recorrente à reparação devida pela concretizada violação dos seus direitos fundamentais.

Assim,

20 - Se à Recorrente não fosse permitido sindicar, em sede de recurso, a decisão proferida em primeira instância com fundamento no mencionado despacho de 03-01- 2021, assistir-se-ia a uma dupla violação dos seus direitos fundamentais – a primeira, já concretizada pela decisão já proferida, a segunda por lhe ser negada uma efectiva tutela jurisdicional e o direito a recurso.

21 - Assim, pelo supra exposto, e concluindo-se à evidência que a ora Recorrente, mantém, nos presentes autos, interesse na manutenção e prosseguimento da lide, deve o presente recurso jurisdicional, considerando o circunstancialismo assente, ser admitido, com todas as consequências legais.

Pelo exposto,

Deve o presente recurso jurisdicional ser admitido, com as devidas consequências legais, com o prosseguimento dos presentes autos.

[…]».


6 – Por despacho da Relatora, de 18 de Janeiro de 2021 (fls. 326 do SITAF), decidiu-se: “atenta a manifesta impossibilidade e inutilidade superveniente da lide [artigo 277.º, al. e) do CPC], julga-se extinto o recurso por não haver que conhecer do seu objecto [artigo 652.º, n.º 1, als. b) e h) do CPC e artigo 145.º, n.º 2, al. a) do CPTA]”.

7 – Inconformada com aquela decisão, a Recorrente apresentou reclamação para a conferência que rematou com as seguintes conclusões:
«[…]

I - Através do despacho proferido em 18 de Janeiro de 2021, veio a Senhora Relatora, Juíza Conselheira do Pleno da Secção de Contencioso do Supremo Tribunal Administrativo, manter a posição anteriormente perfilhada no despacho antecedente, proferido a fls. dos autos em 3 de Janeiro de 2020, concluindo pela extinção da instância, por manifesta inutilidade superveniente da lide.

II - Ora, salvo o devido respeito, e ao contrário da posição ali versada, entende a Recorrente, ora Reclamante, que deve a instância prosseguir, considerando a utilidade que continua a retirar da lide e da decisão- favorável, espera-se - que venha a ser tomada em segunda instância.

III - Com efeito, e como a ora Reclamante teve, sobejamente, oportunidade de explicar, o entendimento de que a utilidade da lide se esgota com a impossibilidade de execução da conduta que foi requerida, inviabiliza, por completo, o direito ao recurso jurisdicional que o legislador previu, expressamente, nas acções de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.

IV - Destarte, deve o critério da utilidade processual que se retira da interposição de recurso ter subjacente a harmonização/compatibilização prática e efectiva entre o efeito útil a acautelar com a prolação da decisão de primeira instância (pressuposto para a utilização do meio processual aqui em apreço) e o hiato de tempo decorrido e prazos de tramitação para a obtenção de uma decisão em segundo grau de jurisdição.

V - A concluir-se pela inutilidade, tout court, da interposição de recurso jurisdicional sempre que o evento que originou a intimação de determinada concuta se preencha ou o prazo dentro do qual aquela intimação foi requerida se esgote, estar-se-á, no limite, perante a circunstância de nenhum recurso, atento o desfasamento temporal neste tipo de acções, ter a possibilidade de chegar a ser interposto ou apreciado.

VI - Por outro lado, entende a Recorrente, ora Reclamante, que o facto, na presente acção, não ser já possível dar cumprimento à conduta requerida, tal só releva para a impossibilidade de execução da decisão que venha a ser proferida, mantendo a Recorrente, ora Reclamante, interesse total no desfecho da lide, designadamente para a aferição da violação dos seus direitos por parte da Entidade Requerida com a conduta que acabou por ser praticada.

VII - A não ser assim entendimento, verá a ora Recorrente coartado, além do direito ao reconhecimento da ilicitude e consequente violação dos direitos fundamentais da Recorrente na presente acção, o direto a, futuramente, e em acção autónoma, poder vir a ser ressarcida dessa lesão, por via da propositura de acção de responsabilidade civil extracontratual por actos de gestão pública, acção judicial essa cujo pedido – diga-se – não tem de ser forçosamente formulado nem apreciado na presente acção.

VIII - Conclui-se, assim, que, mantendo a ora Reclamante interesse e o prosseguimento na lide, o qual – como sobejamente se viu – não se reconduz ou subsume a um interesse puramente académico da questão, deve a presente reclamação ser deferida e, em consequência, ser o despacho sub judice, datado de 18 de Janeiro de 2021, ser revogado e substituído, em conferência, por outro, que admita o recurso jurisdicional interposto em 17 de Novembro de 2020, fazendo-se, assim, JUSTIÇA!

Pelo exposto,

Deve a presente reclamação ser deferida, sendo o caso submetido à conferência e revogando-se, em conferência, o despacho reclamado proferido pela Senhora Relatora em 18 de Janeiro de 2021, com as devidas consequências legais.

[…]».


8 – Substituídos os vistos legais pelas formalidades previstas no n.º 2 do artigo 657.º do CPC, vêm os autos à Conferência para decisão.


II – FUNDAMENTAÇÃO

No despacho reclamado decidiu-se julgar extinto o recurso com fundamento na impossibilidade e inutilidade superveniente da lide; porém, a reclamação apresentada põe em evidência que a questão em apreço se deve reconduzir apenas a uma situação de impossibilidade da lide.
Com efeito, a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias proposta pela A. e aqui Recorrente visava exclusivamente imposição judicial de uma conduta que permitisse à ora recorrente circular no território nacional entre os dias 30 de Outubro e 3 de Novembro de 2020.
Se essa conduta fosse hoje judicialmente imposta, não teria objecto. E por isso estamos perante uma situação que constitui uma verdadeira impossibilidade superveniente da lide, a qual determina a declaração de extinção da instância nos termos do disposto no artigo 277.º, al. e) do CPC.
Esta decisão, que verdadeiramente se limita a verificar um facto — a impossibilidade de satisfazer judicialmente a pretensão que a Recorrente pretende fazer valer com a presente lide —, não encerra nenhuma violação da garantia da tutela jurisdicional efectiva, seja na dimensão do direito a recorrer (pois esta decisão não cuida sequer de analisar o preenchimento ou não dos pressupostos respeitantes à legitimidade para recorrer, situando-se a montante dessa questão, limitando-se a verificar e declarar que a pretensão da recorrente é impossível), seja quanto a um alegado exercício futuro do direito de acção para efectivar uma eventual responsabilidade civil.
Com efeito, no que concerne a esta segunda questão suscitada pela Recorrente, cumpre esclarecer que, terminando a presente lide com uma declaração de extinção da instância por impossibilidade da mesma, o acórdão da Secção não transita em julgado, e a Recorrente não fica assim impedida de, em futura acção de responsabilidade civil, demonstrar a ilicitude subjacente à acção danosa que invoque, pelo que, também por esta razão, a solução que agora se adopta em nada afecta a garantia da tutela jurisdicional efectiva.


III – DECISÃO
Assim, acordam os juízes do Pleno da Secção do Contencioso Administrativo em deferir parcialmente a reclamação, revogando o despacho reclamado, e em julgar extinta a instância destes autos por impossibilidade superveniente da lide.
Sem custas

A relatora consigna e atesta que, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, tem voto de conformidade com o presente acórdão dos Senhores Juízes Conselheiros Teresa de Sousa, Madeira dos Santos, José Veloso, Fonseca da Paz, Maria Benedita Urbano, Ana Paula Portela e Adriano Cunha.

Lisboa, 25 de Março de 2021

Suzana Tavares da Silva