Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0443/05
Data do Acordão:06/14/2005
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:POLÍBIO HENRIQUES
Descritores:TÉCNICOS OFICIAIS DE CONTAS.
PROCESSO DISCIPLINAR.
DIREITO DE AUDIÊNCIA E DEFESA.
Sumário:I – Processo disciplinar regulado no DL. nº 452/99, de 5 de Novembro, tem estrutura acusatória.
II – Sob pena de violação do direito de audiência e defesa – art. 32º/10 da Constituição da República Portuguesa – o instrutor do processo, que deduziu a acusação e elaborou o relatório final – está impedido de tomar a decisão final, na qualidade de membro do Conselho Disciplinar da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas.
Nº Convencional:JSTA0005568
Nº do Documento:SA1200506140443
Recorrente:CONSELHO DISCIPLINAR DA CÂMARA TÉCNICOS OFICIAIS DE CONTAS
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo
1. RELATÓRIO
A..., já identificado nos autos, intentou, no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, recurso contencioso de anulação do Acórdão nº 59/01, do Conselho Disciplinar da Câmara dos Técnicos Oficias de Contas, proferido a 12 de Outubro de 2001, que lhe aplicou a pena disciplinar de multa no valor de € 1 246, 49 (mil, duzentos e quarenta e seis euros e quarenta e nove cêntimos).
Por sentença de 15 de Novembro de 2004, do 1º Juízo do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, foi concedido provimento ao recurso e declarado nulo o acto administrativo impugnado.
1.1. Inconformado, o Conselho Disciplinar da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, recorre da decisão judicial para este Supremo Tribunal apresentando alegações com as seguintes conclusões:
3.1. Só há recurso à analogia nos casos em que a lei não preveja determinadas situações.
3.2. No caso dos autos, o ETOC não tem qualquer omissão na regulação do procedimento disciplinar, pelo que o Tribunal “a quo” não podia recorrer à analogia, para assim justificar a aplicação do previsto nos arts. 40º e 41º, nº 3, do C.P.P.
3.3. Deste modo, a sentença recorrida deve ser revogada, por o Acórdão proferido pelo recorrente não ter violado aquelas disposições legais.
3.4. Por outro lado, os nºs 5 e 10 do art. 32º da CRP, que apenas se aplicam ao processo criminal e de mera ordenação social, apenas impõem que naqueles processos seja respeitado o princípio do contraditório e os direitos de audição e de defesa do arguido.
3.5. Como se pode ver do procedimento administrativo/disciplinar junto aos autos, o recorrente respeitou aquele princípio de direito do recorrido, pelo que, ainda que aquelas disposições constitucionais fossem de aplicar ao caso dos autos, o recorrente tê-las-ia respeitado.
3.6. Por último, deve referir-se que a decisão em processo disciplinar faz parte integrante do exercício do poder disciplinar, que, obrigatoriamente, tem de ser precedida do respectivo procedimento, que garanta ao prevaricador o contraditório.
3.7. A decisão em processo disciplinar não é uma diferente fase processual, como acontece em processo penal entre a fase de instrução, que termina com a decisão instrutória, e a fase de julgamento, que termina com a sentença.
3.8. Releva-se que, nos termos do art. 40º do C.P.P., só está afastado de participar na fase de julgamento o juiz que tenha presidido ao debate instrutório e tomado decisão de pronunciar o arguido.
3.9. O vogal do recorrente, que também foi instrutor do procedimento disciplinar, não tomou qualquer decisão anterior àquela que foi objecto de recurso contencioso, pelo que o princípio da imparcialidade não foi violado pelo recorrente.
3.10. Por quanto alegado, deve ser revogada a sentença recorrida.
1.2. Contra-alegou o recorrente contencioso, concluindo:
1. Atenta a matéria de facto dada como provada, o processo disciplinar instaurado ao recorrente é nulo, nos termos do art. 133º, nº 2, d) do Código do Procedimento Administrativo (CPA), por violação do direito fundamental do arguido a um processo imparcial, nos termos do art. 32º, nº 5 e 266º, nº 2 da CRP, não podendo o instrutor ser simultaneamente julgador e técnico de contas, tal como também já entendeu o Exmº Provedor de Justiça.
2. Aos Tribunais Administrativos compete unicamente apreciar a legalidade do processo e sanções disciplinares aplicados pela Administração Pública, e não substituir-se à Administração na aplicação de penas disciplinares.
3. Nos termos da estrutura acusatória do processo penal português, consagrada na Constituição da República, o agente intervém na instrução de um processo disciplinar, não pode julgar esse mesmo processo, sob pena de atingir o núcleo fundamental da garantia constitucional prevista no art. 32º, nº 5 da CRP.
1.3. O Exmº Magistrado do Ministério Público emitiu o seu douto parecer nos seguintes termos.
“A sentença sob recurso declarou a nulidade do acórdão nº 59/01, do Conselho Disciplinar da Câmara dos Técnicos de Contas, proferido a 12 de Outubro de 2001, nos termos do qual foi aplicada ao ora recorrido a pena disciplinar de multa de € 1 246,49.
Para tanto, tendo sido apurado que o instrutor do procedimento disciplinar integrara o colectivo do Conselho Disciplinar que aplicou a referida pena disciplinar de multa, conclui a sentença que tal facto fulminaria de nulidade o acórdão contenciosamente recorrido “por violação do conteúdo de direitos fundamentais que foram, no caso concreto e por se tratar de uma decisão disciplinar sancionatória, a imparcialidade do julgador e o princípio da presunção de inocência”.
Insurgindo-se contra a decisão proferida, vem o recorrente defender em sede de recurso que o Estatuto da CTOC não tem qualquer omissão no regulamento do procedimento disciplinar, pelo que não seria admissível o recurso à analogia e, por via disso, a aplicação do previsto no art. 40º do CPP, o mesmo se dizendo quanto aos nºs 5 e 10 do art. 32º da CRP, por apenas se aplicarem ao processo penal e de mera ordenação social, rematando por afirmar que não teria ocorrido violação do princípio da imparcialidade já que o instrutor do procedimento disciplinar não teria tomado “qualquer decisão anterior àquela que foi objecto do recurso contencioso”.
Vejamos.
Muito embora se acompanhe o recorrente quando entende que não haverá lugar ao apelo que foi feito na sentença às normas relativas ao processo penal e às garantias de processo criminal consagradas no art. 32º da Constituição da República, uma vez que no caso a decisão sancionatória recorrida foi proferida no âmbito de um procedimento administrativo, que por ser uma realidade distinta do processo penal está submetida a princípios estruturantes com acolhimento em ordenamento diverso, qual seja o do Código de Procedimento Administrativo e com expressão constitucional no art. 266º da CRP, a verdade é que se nos afigura que o acórdão proferido pelo Conselho Disciplinar da CTOC viola o principio da imparcialidade, como se decidiu na sentença, já que um dos membros desse órgão decisor foi o instrutor do procedimento disciplinar respectivo.
Na verdade, nos artigos 59º a 84º do Estatuto da CTOC (DL nº 42/99, de 5 de Novembro), mostra-se configurada para o procedimento disciplinar uma estrutura acusatória, em que se verifica uma nítida separação de competências dos órgãos instrutor e decisor, tendo o primeiro a seu cargo proferir o despacho de acusação (art. 74º) e o segundo a realização do pertinente julgamento (artigo 79º).
Com essa separação de competências, o Estatuto, a nosso ver, assumiu como valor essencial do procedimento disciplinar sancionatório a salvaguarda dos direitos e liberdades individuais dos arguidos através da consagração duma tramitação que tem por objectivo impedir a interferência ou colisão de diferentes poderes funcionais (instrutores versus decisores), partindo da consciência de que essa confusão pode colocar em causa a transparência e a imparcialidade da decisão administrativa, princípios estes com particular relevância nos procedimentos sancionatórios.
Ora, “in casu”, a reunião na mesma pessoa da qualidade de instrutor e de membro do colectivo do Conselho Disciplinar que aplicou a sanção disciplinar debilita, por si só, o conteúdo essencial da posição jurídica do ora recorrido, desse modo afectando o seu direito a um procedimento justo, isento e imparcial, o que consubstancia violação do princípio da justiça e imparcialidade previsto no art. 6º do CPA e com consagração constitucional no artigo 266º, nº 2 da CRP.
Termos em que se é de parecer que o recurso deverá ser improvido, mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida, com a alteração da sua fundamentação de acordo com o que acima se explanou”.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. OS FACTOS
Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
A. O recorrente é técnico oficial de contas inscrito na Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas.
B. A 27 de Julho de 1994 foi celebrado um contrato, entre a “B...” e a sociedade “...”, no qual a primeira outorgante se obrigava a “proceder à elaboração da contabilidade da segunda outorgante e orientar os seus serviços nos termos legais e a ter em boa ordem funcional todos os elementos de contabilidade que a segunda outorgante lhe forneça.
C. Da certidão de matrícula nº 1516, emitida a 12 de Dezembro de 2000, pela Conservatória de Registo Comercial da Amadora, respeitante à “B...”, consta como sócio maioritário e gerente, com capacidade para obrigar a sociedade, A..., ora recorrente.
D. A 10 de Novembro de 1995 a sociedade “...” enviou carta registada à “B...”, rescindindo o contrato supra identificado no ponto B., a partir do dia 31 de Dezembro de 1995 e solicitando a entrega do “fecho do ano de 1995”.
E. Em data que não se pode apurar, o Ilustre Mandatário da sociedade “B...” enviou à “...”, uma carta na qual era alegado que a primeira era credora da segunda em esc. 840 000$00 e que após se encontrar um acordo de pagamento da referida quantia, a segunda faria a entrega imediata dos documentos retidos ao abrigo do art. 734º do CC.
F. A 16 de Dezembro de 1996, o recorrente recebeu o duplicado de uma notificação judicial avulsa, tendo-se recusado a assiná-la, na qual era intimada a que procedesse à entrega imediata de todos os documentos relativos à contabilidade de 1995 da “...” que se encontrassem na sua posse, e em cujo articulado era referido o seguinte:
“8º A situação da requerente tem-se tornado insustentável pois que para realização da contabilidade do ano de 1996 são necessários vários elementos referentes ao ano de 1995, os quais a requerente não dispõe devido à atitude do ora requerido.
9º Por outro lado, o Balanço anual referente a 1995 deveria ter sido entregue na Repartição de Finanças até 30 de Março de 1996, o que não aconteceu por estar nas mãos do Sr. A...”.
G. A 18 de Novembro de 1999, a “...” apresentou queixa do recorrente ao Conselho Disciplinar da Associação dos Técnicos Oficiais de Contas alegando a retenção dos documentos referentes ao exercício de 1995.
H. A 14 de Dezembro de 1999, foi enviada ao recorrente por carta registada com aviso de recepção, em folha de timbre da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas e assinada pelo instrutor do processo, Dr. ..., a notificação de que lhe tinha sido instaurado o processo disciplinar nº 42/99, na sequência de denúncia apresentada por “...”, mencionando os fundamentos da mesma (cf. Ponto G) supra) e que poderia no prazo de oito dias responder às acusações.
I. A 24 de Março de 2000, foi elaborada pelo Dr. ..., instrutor do processo disciplinar nº 42/99, nota de culpa contra o recorrente, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido e do qual se retira o seguinte:
“EM CONCLUSÃO:
Atento o carácter público das funções atribuídas ao Técnico Oficial de Contas, o elenco das suas funções específicas – tal como estão caracterizadas no art. 6º do Estatuto, o comportamento ilícito de V.Exª, pela sua gravidade e consequências, colocou o contribuinte não só numa situação de incumprimento perante a Administração Fiscal como atrasou a feitura da contabilidade, pelo que não pode a Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas contemporizar com atitudes e procedimentos como os ora descritos (…)”.
J. No relatório final do processo disciplinar, datado de 1 de Outubro de 2001, foi considerado provado que o recorrente reteve a documentação contabilística da sociedade “...” do exercício de 1995, recusando-se a entregá-la, tendo-se concluído nos seguintes termos:
“O arguido retém documentação contabilística da firma ...”, situação que viola o disposto nos arts. 19º, nº 1 e 21º, nº 1, al. b), ambos do Estatuto dos TOC, aprovado pelo Decreto-lei nº 265/95, de 17/10, entretanto revogado pelo Decreto-lei nº 452/99, de 05/11, mas com idêntica redacção nos artigos 52º, nº 1 e 54º, nº 1, al. b) do Estatuto da CTOC, assim como o art. 16º do Código Deontológico, sendo ainda susceptível de consubstanciar o crime de abuso de confiança previsto no art. 205º do Código Penal, o que constitui infracção disciplinar prevista no artigo 26º e punida pelo art. 27º, ambos do Estatuto da CTOC.
6. PROPOSTA
Considerando que:
a) se trata de infractor primário;
b) o arguido não colaborou no decurso da instrução do processo; e
c) a matéria da acusação assume gravidade acrescida por não permitir que outro colega prossiga normalmente o trabalho de processamento contabilístico proponho a aplicação de pena de multa de 250 000$00
O INSTRUTOR DO PROCESSO
(...)”
K. A 12 de Outubro de 2001, foi lavrado acórdão pelo Conselho Disciplinar da Câmara dos Técnicos Oficias de Contas, composto pelo presidente, Dr. ..., e dois vogais, Dr. ... e Dr. ... ..., no qual se decidiu a aplicação ao recorrente da pena disciplinar de multa no valor de esc. 250 000$00 (€ 1 246,49), invocando a aplicação dos arts. 59º, nº 2, 63º, nº 1, al. b) e 64º, nº 2 e 66º, nº 2 do Estatuto dos Técnicos Oficiais de Contas, e do qual se realça o seguinte:
“II – OS FACTOS
Na sequência das diligências probatórias levadas a cabo e de acordo com o relatório final, apurou-se que o Técnico Oficial de Contas nº 13 091 era responsável pela prática dos seguintes factos disciplinarmente relevantes:
1º A “...” contratou os serviços de contabilidade com a firma “B...”, adiante designada “...”, na qual – em 1995 – era sócio gerente A..., com uma quota de 400 000$00, obrigando-se a sociedade com a assinatura de qualquer dos sócios (…)
2º Acto continuado, tem vindo a recusar desde que deixou de exercer funções – 31 de Dezembro de 1995- a entrega da documentação pertencente à firma “...”.
V. CONCLUSÃO
A retenção de documentação contabilística merece censura disciplinar, porquanto, consubstancia um comportamento inadmissível que prejudicou o contribuinte – que teve de pagar multa pela falta de entrega da declaração de 1995 – e não cumpriu com as suas obrigações fiscais, bem como a Administração Fiscal, que não pôde ter acesso aos documentos que pretendia e não pôde arrecadar as receitas devidas.
Este comportamento de forma alguma se coaduna com as funções de natureza pública reconhecidas ao Técnico Oficial de Contas, o que se por um lado constitui o reconhecimento oficial da importância da profissão, confere-lhe, por outro, um acréscimo de responsabilidade perante a sociedade em geral e, em particular, perante a Administração Fiscal.
O arguido violou o disposto no art. 19º, nº 1 do Estatuto (aprovado pelo Dec.Lei nº 265/95, e 17 de Outubro, adiante designado Estatuto de Associação), com idêntica redacção no art. 52º, nº 1 do Estatuto dos Técnicos Oficiais de Contas (aprovado pelo Dec.Lei 452/99, de 5 de Novembro, adiante designado de Estatuto da Câmara) infringindo o “dever de contribuir para o prestígio da profissão, desempenhando consciente e diligentemente as suas funções e evitando qualquer actuação contrária à dignidade da mesma”.
Violou o art. 21º, nº 1, alínea b) do Estatuto da Associação com idêntica redacção no art. 54º, nº 1, al. b) do Estatuto da Câmara “Nas suas relações com as entidades a quem prestem serviços, constituem deveres dos Técnicos Oficiais de Contas: (…) Abster-se de qualquer procedimento que ponha em causa tais entidades”
Assinalem-se manobras dilatórias do TOC que em nada contribuíram para esclarecer a verdade material dos factos, apenas tiveram o efeito de arrastar este processo além do que era desejável e, como tal, foi tido em consideração na determinação do valor da pena de multa”.
2.2. O DIREITO
No caso em apreciação, a sanção punitiva foi aplicada ao arguido com precedência de um processo disciplinar, regulado pelo DL nº 452/99, de 5 de Novembro, no qual o instrutor nomeado, que deduziu a acusação, realizou as diligências de prova e elaborou o relatório final, propondo a pena a aplicar, participou também no julgamento do processo, na qualidade de membro do conselho disciplinar da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas.
A sentença recorrida considerou, no essencial, que (i) “a imparcialidade do julgador e a separação objectiva e subjectiva das fases de acusação e decisão, em direito sancionatório, são princípios basilares de que não se pode abdicar num Estado de Direito” e que o acto punitivo, violando o disposto no art. 40º CPP, era inválido por ofender o conteúdo essencial do direito fundamental de defesa, consagrado no ar. 32º, nº 10 da Constituição da República Portuguesa.
A autoridade recorrida, ora recorrente, discorda da decisão, defendendo a validade do acto punitivo, dizendo, em síntese, que as normas dos arts. 40º e 41º do CPP são inaplicáveis e que não houve violação do princípio da imparcialidade.
Vejamos.
A Constituição consagra, no art. 32º/10, o direito de audiência e defesa a assegurar em “quaisquer processos sancionatórios”, incluindo-se nestes, seguramente, os processos disciplinares que são a sua espécie típica.
Ora, este direito fundamental de defesa postula um tratamento justo e imparcial do arguido. A imparcialidade do julgador é, sem sombra de dúvida, condição da eficácia da defesa do arguido, que ficará comprometida se aquele não agir com objectividade e isenção. O procedimento no qual se conforma o direito, para ser justo, não pode dispensar-se de regras que preservem o princípio da imparcialidade. Daí que as normas do CPP que regulam o impedimento do juiz em processo penal, votadas à salvaguarda do núcleo essencial do direito de audiência e defesa, arredando da decisão final o julgador que, pelo anterior contacto com o processo possa ter já uma convicção íntima que inquine a posição de objectividade que deve presidir à apreciação da prova e influencie negativamente a decisão a proferir, consubstanciem um verdadeiro princípio geral de direito e tenham vocação de aplicação genérica a todos os demais processos sancionatórios, sempre que estes não disponham de regras próprias que salvaguardem aqueles valores (cfr. acórdão STJ de 2003.09.24 – recº nº 3739).
No caso em apreciação, o processo disciplinar, de estrutura acusatória, está regulado no DL nº 452/99, de 05.11, sem que dele constem normas relativas a impedimentos. Esta imprevisão, sob pena de inconstitucionalidade, por atentar contra o direito fundamental de defesa, tem de interpretar-se como incompletude a carecer de integração e não como expressão de uma regulamentação completa e fechada, na qual não há lugar para as regras concretizadoras do princípio da imparcialidade. E, nesta matéria, sufraga-se o entendimento da sentença recorrida, segundo o qual a integração das lacunas, neste procedimento especial, deve fazer-se, por analogia, com apelo, sucessivamente e por ordem, ao direito processual disciplinar, às normas e princípios gerais da actividade administrativa, às normas e princípios do direito processual penal e, por último, ao direito processual civil, matriz de todo processo (cf., neste sentido, Luís Vasconcelos Abreu, in “Para o Estudo do Procedimento Disciplinar no Direito Administrativo Português Vigente: As Relações com o Processo Penal”, pp 84/85 e Leal Henriques in “ Procedimento Disciplinar”, 4ª ed., pág. 111).
Dito isto, é de toda a evidência que a estrutura acusatória do processo disciplinar (arts. 74º e 75º do DL nº 452/99, de 5.11), assente na separação entre a entidade que acusa e a entidade que decide é incompatível com a possibilidade de o instrutor/acusador ser, também julgador, ainda que por integração em órgão colegial. No caso concreto ocorreu, pois, uma incontornável violação do princípio geral da imparcialidade (art. 6º CPA), sendo a conduta ilegal, desde logo à luz do art. 44º/1/d) do CPA, norma concretizadora daquele princípio geral e aplicável por força das disposições combinadas dos arts.1º do DL nº 452/99, de 5.11 e 2º/b)5/7 do CPA, ou, se dúvidas houver a respeito, por violadora das normas dos arts. 39º/1/c) e 40º do CPP, a aplicar com as necessárias adaptações, as quais, para preservarem a imparcialidade, afastam do poder decisório a entidade que tenha acusado e/ou tenha sido instrutora do processo.
Deste modo, não merece censura a sentença recorrida, enquanto considerou ofendido o direito fundamental de audiência e defesa.
Improcede, pois, a alegação da autoridade ora recorrente.
3. DECISÃO
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 14 de Junho de 2005. – Políbio Henriques – (relator) – Rosendo José – António Madureira.