Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:082/18.9BCLSB
Data do Acordão:11/19/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CLÁUDIO RAMOS MONTEIRO
Descritores:DISCIPLINA DESPORTIVA
INFRACÇÃO DISCIPLINAR
TRIBUNAL ARBITRAL
PRESUNÇÃO JUDICIAL
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
PRINCIPIO DA CULPA
Sumário:I - A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional (LPFP) que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP (RD/LPFP), conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos artigos 2º, 20º, nº 4 e 32º nºs 2 e 10 da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
II - A responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas prevista no artigo 187.º do referido RD/LPFP pelas condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube ou de uma sociedade desportiva e pelos quais estes respondem não constitui uma responsabilidade objetiva violadora dos princípios da culpa e da presunção de inocência.
Nº Convencional:JSTA000P26791
Nº do Documento:SA120201119082/18
Data de Entrada:10/09/2020
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
Recorrido 1:FUTEBOL CLUBE DO PORTO - FUTEBOL, SAD
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO


I. Relatório

1. FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL - identificada nos autos – recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do n.º 1 do artigo 150.º do CPTA, do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), de 21 de novembro de 2019, que revogou parcialmente o acórdão arbitral proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), de 18 de julho de 2018, que confirmou o Acórdão da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), de 7 de Novembro de 2017, que condenou a ora recorrida, FUTEBOL CLUBE DO PORTO – FUTEBOL SAD, numa multa no valor de 1.873,00 €.

Nas suas alegações formulou, com relevo para a decisão de mérito, as seguintes conclusões:

« (…)

10. Não existe nenhuma crítica a fazer à decisão proferida pelo TAD, ao contrário do que entendeu o TCA Sul;

11. O (…) não colocou, em momento algum, em causa que estes factos aconteceram, colocou em causa, sim, que tenham sido adeptos do FCP os responsáveis pelos mesmos;

12. Tal como consta dos Relatórios de Jogo cujo teor se encontra a fls. … do processo arbitral, os Delegados da Liga, bem como as forças de segurança, são absolutamente claros ao afirmar que tais condutas foram perpetradas pelos adeptos do FCP, sem deixar qualquer margem para dúvidas;

13. Com base nesta factualidade, e atendendo à gravidade dos factos perpetrados, o Conselho de Disciplina instaurou o competente processo disciplinar à Recorrida;

14. Ao mencionado processo disciplinar foi junto, como não poderia deixar de ser, entre outros documentos, o relatório elaborado pelos delegados da Liga. Este relatório goza, consabidamente, da presunção de veracidade do seu conteúdo (cfr. Artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP);

15. Os Delegados da LPFP são designados para cada jogo com a clara função de relatarem todas as ocorrências relativas ao decurso do jogo, onde se incluem os comportamentos dos adeptos que possam originar responsabilidade para o respetivo clube;

16. Assim, quando os Delegados da LPFP colocam nos seus relatórios que foram adeptos de determinada equipa que levaram a cabo determinados comportamentos, tal afirmação é necessariamente feita com base em factos reais, diretamente visionados pelos delegados no local. Até porque, caso coloquem nos seus relatórios factos que não correspondam à verdade, podem ser alvo de processo disciplinar;

17. Ainda, para formar uma convicção para além de qualquer dúvida razoável que permitisse chegar à conclusão de que a ora Recorrida devia ser punida pelas infrações pelas quais foi condenada, o CD coligiu ainda outra prova, que consta dos autos, tal como, por exemplo, o Relatório das Forças Policiais;

18. Neste particular, os relatórios das forças policiais, por serem exarados por “autoridade pública” ou “oficial público”, no exercício público das “respetivas funções” (para as quais é competente em razão da matéria e do lugar), constituem documento autêntico (art.º 363.º, n.º 2 do Código Civil), cuja força probatória se encontra vertida nos artigos 369.º e ss. do Código Civil. Com efeito, tal relatório faz «prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora» (cf. art.º 371.º, n.º 1 do Código Civil);

19. Sucede que, não obstante os relatórios de jogo juntos aos autos serem claríssimos ao afirmar que foram adeptos afetos ao FCP que levaram a cabo estes comportamentos, o TCA alega que nada existe nos autos que permita concluir que os atos sub judice – punidos pelo RD da LPFP – foram praticados por sócio, adepto ou simpatizante do clube recorrido;

20. Manifestamente, o acórdão recorrido não tomou em consideração a presunção de veracidade legal e regulamentarmente estabelecida para os relatórios de policiamento desportivo e dos delegados da LPFP, respetivamente;

21. E é, precisamente, esta presunção de veracidade que, inscrevendo-se nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, confere um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP e pelas forças policiais relativamente aos factos deles constantes que estes tenham percecionado.

22. Isto não significa que os Relatórios Delegados da LPFP e das forças de segurança contenham uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo dos Relatórios, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que foram adeptos ou simpatizantes da recorrida que levaram a cabo os comportamentos sub judice;

23. Tal não significa que quem acusa não tenha o ónus de provar. Trata-se de abalar uma convicção gerada por documentos que beneficiam de uma especial força probatória;

24. E, para abalar essa convicção, cabia ao clube, no lugar de se remeter ao silêncio, apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil;

25. Quanto à questão de saber se a ora recorrida pode ser responsabilizada a título de culpa por esses comportamentos, mais uma vez, nenhuma crítica há a fazer à decisão do Conselho de Disciplina;

26. Entende o TCA Sul que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta dos Relatórios de Jogo) que o FCP violou deveres de formação a que se encontra adstrito, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como sabemos, não é possível;

27. Ora, o Relatório dos Delegados da LPFP, bem como o Relatório de Policiamento Desportivo do jogo dos autos, atento os respetivos conteúdos, são perfeitamente suficientes e adequados para sustentar a punição do FCP no caso concreto.

28. Ademais, há que ter em conta, nos termos acima explanados, que no caso concreto existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tais documentos.

29. Isto significa que o conteúdo dos Relatórios juntos aos autos, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrida incumpriu os seus deveres.

30. Para abalar essa convicção, cabia ao FCP apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil;

31. Em sede sancionatória, o “arguido”, não pode simplesmente remeter-se ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento cabendo-lhe, pelo menos, colocar uma dúvida na mente do julgador correndo o risco de, não o fazendo, ser punido se as provas reunidas forem todas no mesmo sentido.

32. Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido dos Relatórios dos Delegados da LPFP, pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não o FCP.

33. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo dos Relatórios, cabia à Recorrida demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de Recurso Hierárquico Impróprio apresentado ou quanto muito em sede de ação arbitral. Mas a Recorrida não o demonstrou, em nenhuma sede;

34. Por seu turno, o TCA Sul nada analisa nem nada fundamenta;

35. Do conteúdo do Relatório de Jogo elaborado pelos Delegados da Liga, é possível extrair, desde logo, diretamente duas conclusões: (i) que o FCP incumpriu com os seus deveres, senão não tinham os seus adeptos perpetrado condutas ilícitas (violação do dever de formação); (ii) que os adeptos que levaram a cabo tais comportamentos eram apoiantes do FCP, o que se depreendeu por manifestações externas dos mesmos;

36. Isto significa que para concluir que quem teve um comportamento incorreto foram adeptos do FCP e não adeptos do clube visitante (e muito menos de um clube alheio a estes dois, o que seria altamente inverosímil), o Conselho de Disciplina tem de fazer fé no relatório dos delegados, os quais têm presunção de veracidade. Posteriormente, o clube pode fazer prova que contrarie estas evidências, porém, no caso concreto, tal não aconteceu;

37. O próprio Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 730/95, diz claramente que “o processo disciplinar que se manda instaurar (…) servirá precisamente para averiguar todos os elementos da infração, sendo que, por essa via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)”;

38. Neste sentido, veja-se o Acórdão deste STA proferido no âmbito do recurso n.º 297/18, interposto da decisão do TCA Sul tirada no processo n.º 144/17.0BCLSB que, dando provimento ao recurso de revista, diz que é lícito o uso das presunções judiciais e que cabe ao clube apresentar prova que contrarie a presunção de veracidade dos relatórios, o que no caso, não sucedeu;

39. Ainda que se entenda – o que não se concede – que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir o clube recorrido, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido – a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Recorrida e a violação dos respetivos deveres – foi retirado de outros factos conhecidos.

40. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com nenhum princípio constitucional, tal como o princípio da presunção de inocência ou o princípio da culpa, de acordo com jurisprudência, quer dos tribunais comuns, quer dos tribunais administrativos.

41. A tese sufragada pelo TCA é um passo largo para fomentar situações de violência e insegurança no futebol e em concreto durante os espetáculos desportivos, porquanto diminuir-se-á acentuadamente o número de casos em que serão efetivamente aplicadas sanções, criando-se uma sensação de impunidade em que pretende praticar factos semelhantes aos casos em apreço e ao invés, mais preocupante, afastando dos eventos desportivos, quem não o pretende fazer, em virtude do receio da ocorrência de episódios de violência;

42. Face ao exposto, deve o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado por erro de julgamento, designadamente por errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 13.º, al. f), 127.º e 187.º, n.º 1, al. a) e b), todos do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional.»

2. A Recorrida contra-alegou, concluindo que:

«- I -
A. Inconformada com o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 21.11.2019 pretende a Recorrente, em sede de revista, ver esclarecido o critério legal da apreciação da prova em processo disciplinar desportivo.

B. Fá-lo, pretendendo que este Supremo Tribunal Administrativo funcione como uma terceira instância de apelação.

C. O juízo sobre a matéria de facto é, via de regra, insindicável, porquanto o Supremo Tribunal Administrativo só poderá revogá-lo e determinar que o Tribunal Central Administrativo dê como provados factos que julgou como não verificados em face da prova existente se e apenas na medida em que esse juízo tenha violado disposição legal expressa que fixe a força de determinado meio de prova (art. 150.º/4 do CPTA).

D. Não se vê, nem a Recorrente a identifica, que norma legal haja sido violada pelo Tribunal Central Administrativo na apreciação da prova, devendo o recurso interposto pela Recorrente ser julgado improcedente.

E. A revogação pelo STA do decidido pelo Tribunal a quo, com o fundamento de que a prova dos autos seria suficiente para sustentar a decisão condenatória tomada pela recorrida, ultrapassando a apreciação da prova realizada pelas instâncias competentes, incorrerá em excesso de pronúncia e violará o regime do recurso de revista instituído pelo art. 150.º do CPTA.
- II -
F. Considerando as infracções p. e p. pelos arts. 187.º-1 a) e b) e 127.º-1 do RD em causa nos autos, para decidir pela condenação da Recorrida sempre seria necessário que o Conselho de Disciplina tivesse carreado aos autos prova suficiente de que os comportamentos indevidos foram perpetrados por concreto sócio ou simpatizante da Futebol Clube do Porto – Futebol SAD, e ainda, que tais condutas resultaram de um comportamento culposo daquela entidade promotora do encontro. O que não sucede.

G. Desde logo porque a mera circunstância de a bancada na qual teve origem a deflagração de engenhos pirotécnicos estar, por princípio, afecta a adeptos da Recorrida, sem sequer haver prova da absoluta exclusividade dessa afectação, não permite concluir – com toda a probabilidade próxima da certeza ou, pelo menos, para além de toda a dúvida razoável – que os autores das deflagrações tenham efectivamente sido sócios ou simpatizantes da recorrente.

H. Não se tendo apurado nos autos qual a concreta identificação dos adeptos infractores, não basta à Recorrente invocar que os factos ocorreram em bancada afecta a adeptos da Recorrida para que se possa concluir (e levar à matéria assente) que os autores das condutas sub judice eram sócios ou simpatizantes do clube arguido, e, por essa via, associar à concretização do ilícito o efeito automático de imputação ao clube do delito omissivo impróprio de violação do dever jurídico de garante (ex vi art. 35.º do Regulamento das Competições da LPFP).

I. Na verdade, pretende a Recorrente – à semelhança da doutrina que vem fazendo curso no Tribunal Arbitral – impor uma dupla, e inadmissível, presunção: tendo por base uma presunção de autoria, e daí fazendo derivar uma presunção de culpa!

J. Porém, no âmbito do processo sancionatório – penal, contraordenacional e disciplinar – o recurso a presunções judiciais só se revela legítimo quando intervenham juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto – desconhecido e não directamente provado – é uma consequência natural ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza.

K. Até porque, para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar, é sempre necessária uma racional e objectiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, não podendo bastar uma sua simples indiciação – exigência que se mantém incólume mesmo perante o recurso a presunções.

L. Daí que, estando em causa a prova indirecta de um facto, deve o Tribunal na decisão que proferir: a) fundar em prova direta os factos que constituem a base da presunção de modo a que eles possam suportar a regra da experiência de que resulta a presunção; b) descrever a regra de experiência que permite relacionar o facto presumido ao facto indício, identificando a regra de normalidade (ou de probabilidade) pressuposta pelo juízo de inferência; e c) comprovar que os (factos) indícios provados no caso concreto são subsumíveis naquela regra geral (enquanto “critério generalizante e tipificante de inferência factual”), isto é, afirmam a regra geral, não havendo outras circunstâncias que afastem aquela subsunção.

M. Caso assim não seja, o que se estabelece é uma cadeia de presunções, numa sequência de ilações incertas e pouco precisas – e, por isso, inadmissível por prejudicial a um efetivo exercício de defesa e de contraditório dos factos que sustentam a condenação.

N. Pelo que se tem por absolutamente ilegítimo, porque violador dos direitos à defesa e à presunção de inocência do arguido, a presunção da qualidade funcional de "sócio ou simpatizante" (ligação ao Clube) exigida pela norma relativamente a pessoa física de identidade desconhecida para, a partir daí, estabelecer uma segunda presunção: a de que o Clube arguido violou deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes.

O. Nesta senda, reputa-se por isso como inconstitucional por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.º, n.ºs 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.º/4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.º da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.º da CRP), a interpretação dos artigos 187.º-1 a) e b), 127.º-1 e 258.º, n.º 1, do RDLPFP, no sentido de que se pode dar como provado, por presunção, que o clube violou deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes com base no facto de que esses sócios ou simpatizantes adoptaram um comportamento social ou desportivamente incorrecto previamente também dado como provado por presunção, radicada no artigo 13.º, al. f), do RDLFPF.
- III -
P. Por seu turno, o estalão normativo de apreciação da prova probatório preconizado pela Recorrente – na linha da mais recente jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo –, no sentido de que a prova do primeiro elemento típico (que o comportamento socialmente incorrecto ou antidesportivo foi da autoria de sócio ou simpatizante do Clube) é bastante para que se prove também o segundo elemento típico, designadamente, se o Clube em apreço não demonstrar que tudo fez para evitar tal resultado, é também ele incompatível com o princípio da presunção de inocência.

Q. Primeiro por implicar a imposição de um ónus de prova ao arguido; depois por baixar o grau de convicção da verificação do facto para um nível insuportável: não a certeza correspondente à convicção para além de toda a dúvida razoável, mas a suspeita baseada somente na primeira aparência; e, por último, por fazer actuar uma presunção judicial a partir de factos também eles previamente dados como provados através de uma outra presunção judicial (e não por prova directa).

R. A admissão de que a prova da violação dos deveres legais e regulamentares de vigilância, controlo e formação impostos ao Clube pode ser feita mediante presunção / indiciação de que sócios ou simpatizantes desse Clube adoptaram um comportamento social ou desportivamente incorrecto, equivale a dar como provado um elemento fundamental da factualidade típica da infracção não com base numa convicção para além da dúvida razoável, mas com base tão-somente numa indiciação de primeira aparência.

S. Violando-se, do mesmo passo, o princípio da presunção de inocência quando se faz recair sobre o Clube o ónus de demonstrar que fez tudo o que estava ao seu alcance para evitar ou impedir que tais comportamentos tivessem ocorrido.

T. Em conclusão, não tendo sido carreado aos autos, pelo titular da acção disciplinar, nenhum elemento de prova que depusesse em favor do preenchimento de pressuposto essencial exigido pelos tipos legais, sempre se impunha resolver “em favor do arguido por efeito da aplicação dos princípios da presunção de inocência do arguido e do “in dubio pro reo”.

U. Pelo que, revelando-se insuficientes os factos provados e nem havendo prova que permite colmatar esta insuficiência – e atendendo desde logo à presunção de inocência – fica necessariamente prejudicada a condenação da Recorrida no processo disciplinar em questão.

V. Motivos pelos quais é forçoso concluir que o acórdão recorrido não padece de qualquer erro de julgamento, tendo subsumido correctamente os factos alegados ao direito aplicável.

W. Se, por mera hipótese de raciocínio, proceder a tese da Recorrente, reputa-se como inconstitucional, por violação por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.º/2 /10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.º/4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.º da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.º da CRP), a interpretação dos artigos 187.º-1 a) e b), 127.º-1, e 258.º/1, do RDLPFP no sentido de que se dá como provado que o clube violou deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes quando se prove, com base com base no artigo 13.º, f), do RDLFPF, que esses sócios ou simpatizantes adoptaram um comportamento social ou desportivamente incorrecto, cabendo ao clube aportar prova demonstradora do cumprimento desses seus deveres.
- IV -
X. Caso, contra tudo o alegado, se conceda provimento ao recurso, sempre se imporá o reenvio do processo ao Tribunal a quo, para que este, de acordo com o critério normativo fixado em sede de revista, aprecie, em plano de apelação, a conformidade da matéria de facto dada como provada com os únicos meios de prova constante dos autos: os Relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da LPFP;

Y. porquanto, o cerne da questão controversa prende-se com o alcance da presunção de veracidade do relatório do delegado firmada pela alínea f), do art. 13.º do RDLPFP, e este STA dispõe apenas, neste domínio, de poderes de revista, só estando por isso autorizado a conhecer matéria de direito (art. 150.º/1 e -2 do CPTA).
- V -
Z. Ao fixar o valor do processo em € 30.000,01, por entender que o valor da presente causa é indeterminável, o Tribunal Arbitral violou o disposto no art. 33.º, b), do CPTA, pelo que, caso se entenda – contra tudo o alegado – ser de revogar o acórdão recorrido e manter a decisão arbitral, sempre cumprirá, porém, repor a legalidade e fixar o valor da acção no montante de € 3.155,00, daí se extraindo as devidas consequências.»

3. Do acórdão recorrido foi previamente interposto pelo Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC) que, contudo, um recurso de constitucionalidade, o qual, no entanto, não foi admitido por Decisão Sumária do Tribunal Constitucional, de 3 de março de 2020, por aquele Tribunal ter entendido que o mesmo acórdão não desaplicou qualquer norma legal com fundamento na sua inconstitucionalidade, tendo-se limitado a afastar a interpretação de direito infraconstitucional sufragada na decisão do TAD então recorrida.

4. O presente recurso de revista foi admitido por Acórdão da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo, em formação de apreciação preliminar, de 10 de setembro de 2020, dado que «(...) o aresto do TCA afronta a recente jurisprudência do Supremo neste campo».

5. Notificado do referido acórdão, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 146.º do CPTA, o Ministério Público nada disse.

6. Sem vistos, dada a natureza urgente do processo, nos termos do n.º 2 do artigo 8.º da Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, e do n.º 2 do artigo 36.º do CPTA.


II. Matéria de facto

7. O TAD deu como provados os seguintes factos:
1. No dia 9 de setembro de 2017, realizou-se no Estádio do Dragão, no Porto, o jogo referente à 5.à jornada da Liga NOS, entre a Demandante e o Grupo Desportivo de Chaves - Futebol SAD;
2. No recinto desportivo, deu entrada material não permitido, nomeadamente potes de fumo e petardos;
3. Na bancada do topo sul do recinto desportivo, adeptos da Demandante entoaram aos 28 minutos de jogo o seguinte cântico, por três vezes: "SLB filhos da puta SLB" (cfr. Relatório do Jogo elaborado pelo Delegado da Liga Portuguesa ele Futebol Profissional, a fls. 29 dos autos do processo administrativo):
4. Na mesma bancada, esses mesmos adeptos lançaram aos 29 minutos de jogo 1 pote de fumo mas sem causar dano (cfr,. de novo, Relatório do Jogo elaborado pelo Delegado da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, a fls. 29 dos autos do processo administrativo):
5. Entre os minutos 67 e 70, os mesmos adeptos entoaram por 9 vezes o cântico "Benfica é merda" (cfr., ainda, Relatório do Jogo elaborado pelo Delegado da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, a fls. 29 dos autos do processo administrativo);
6. Aos 86 minutos. na bancada nascente, onde se encontram adeptos da Demandante, rebentaram 2 petardos. sem deflagração de fumo (cfr.. ainda. Relatório do Jogo elaborado pelo Delegado da Liga Portuguesa de Futebol Profissional. a fls. 29 dos autos do processo administrativo):
7. A Demandante não impediu os adeptos de entrarem no recinto desportivo com petardos e potes de fumo, nem o rebentamento dos primeiros e o lançamento dos segundos durante a realização do jogo;
8. À data da prolação da decisão ora impugnada, proferida pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF em 7 de novembro de 2017, a Demandante já apresentava o "cadastro disciplinar" constante das fls. 37 a 47 dos autos do processo administrativo:
9. No dia 1 de outubro de 2017, realizou-se no Estádio José Alvalade, em Lisboa, o jogo referente à 8.a jornada da Liga NOS, entre a Sporting Clube de Portugal - Futebol SAD e a Demandante;
10. Na Bancada A norte ou topo norte do Estádio José Alvalade, adeptos da Demandante adotaram as seguintes condutas (cfr. Relatório do Jogo elaborado pelo Delegado da Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Relatório do Policiamento Desportivo, ambos integrantes do processo administrativo junto aos autos):
- Acenderam duas tochas aos 84 minutos;
- Rebentaram petardos aos 82 minutos (1 petardo), aos 83 minutos [2 petardos), aos 84 minutos (2 petardos) e no final do jogo (1 petardo);
- Deflagraram 3 potes de fumo, respetivamente aos 83, 84 e 85 minutos;
- Acenderam flash lights aos 82 minutos (1 flash light, aos 84 minutos (2 flash lights) e no final do jogo (1 flash light);
11. À data dos factos ocorridos a 1 de outubro de 2017, a Demandante já havia sido sancionada, por decisão definitiva, pelo cometimento de diversas infrações disciplinares;
12. No momento da interposição do recurso para o Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF, a Demandante tinha conhecimento dos factos imputados aos respetivos adeptos no Relatório do Jogo elaborado pelo Delegado da Liga Portuguesa de Futebol Profissional e que se acham descritos no supra no ponto 9.9 dos factos dados como provados;
13. Nesse mesmo momento, a Demandante tinha, pois, conhecimento dos factos imputados aos seus adeptos, subsumíveis na norma geradora da responsabilidade disciplinar que lhe fora imputada pela decisão singular proferida pelo Conselho de Disciplina da Secção Profissional da FPF, em 24 de outubro de 2017,
Em contrapartida:
- por referência ao jogo realizado a 7 de setembro de 2017, não se considera provado que a Demandante nada tenha feito para impedir os seus adeptos de entoarem os cânticos mencionados nos pontos 2° e 4.°
- e relativamente ao jogo realizado a 1 de outubro de 2017, não se considera provado, ao contrário do referido na decisão proferida pela Demandada aqui posta em crise, que a Demandante "agiu de forma livre, consciente e voluntária bem sabendo que ao não evitar a ocorrência dos referidos acontecimentos incumpriu deveres legais e regulamentares de segurança e de prevenção da violência que sobre si impendiam. enquanto entidade participante no dito jogo de futebol".


III. Matéria de Direito

8. A questão que se discute neste recurso é relativa à responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos por ocasião da realização de jogos de futebol.
Mais concretamente, a questão controvertida é a do valor probatório dos relatórios de jogo elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa de Futebol Profissional que, nos termos da alínea f) do artigo 13.º do respetivo Regulamento de Disciplina, gozam de uma «presunção de veracidade» dos factos nele atestados.
No caso dos autos, concretamente, o acórdão recorrido entendeu que, não obstante o que se dispõe naquela norma, e o que está escrito naquele relatório sobre a autoria dos factos que consubstanciam a punição disciplinar, não é legalmente possível presumir que todos os adeptos que ostentam camisolas, bonés, cachecóis, tarjas ou bandeiras do ora recorrido sejam sócios ou simpatizantes do mesmo.
Por esta razão, o acórdão recorrido conclui que:
«porque as normas exigem a imputação da qualidade pessoal de sócio ou simpatizante ao clube especificamente objecto da punição, do ponto de vista jurídico não é admissível presumir a qualidade de sócio ou simpatizante relativamente a pessoa que nem se sabe quem é por não estar identificada no processo disciplinar para efeitos de operatividade da ligação funcional do (desconhecido) sócio ou simpatizante ao clube desportivo nos termos consignados nos art°s. 127°/187° do RD—LPFP/2017.
Efectivamente, a interpretação dos art°s. 127º/187° do RD—LPFP/2017 no sentido
(i) da imputação de autoria ao clube por efeito automático da concretização dos ilícitos disciplinares comissivos referidos ou descritos nos citados artigos (127º/187°), cometidos por pessoa física cuja identidade é desconhecida,
(ii) presumindo a qualidade funcional de "sócio ou simpatizante" (ligação ao clube) exigida pela norma (182º/187°) relativamente a essa pessoa física de identidade desconhecida,
(iii) associando à concretização dos ilícitos (182°/187°) o efeito automático de imputação ao clube do delito omissivo impróprio de violação do dever jurídico de garante (art° 35° do Regulamento das Competições da LPFP/2016),
configura-se inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência em sede de processo disciplinar, à luz do regime constante do art° 32° n°s. 2 e 10 CRP».

9. A questão controvertida neste recurso não é nova neste Supremo Tribunal Administrativo, que sobre a mesma tem dado resposta de forma uniforme e reiterada, no sentido de que «a presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional [LPFP] que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP [RD/LPFP], conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos arts. 02.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo» - cfr. Acórdão de 21 de fevereiro de 2019, proferido no Processo n.º 0033/18.0BCLSB; v. também, no mesmo sentido Acórdãos de 18 de outubro de 2018, proferido no Processo nº 0144/17.0BCLSB, de 20 de dezembro de 2018, proferido no Processo nº 08/18.0BCLSB, de 21 de fevereiro de 2019, proferido no Processo nº 033/18.0BCLSB, de 21 de março de 2019, proferido no Processo nº 075/18.6BCLSB, de 4 de abril de 2019, proferido nos Processos nºs 040/18.3BCLSB e 030/18.6BCLSB, de 2 de maio de 2019, proferido no Processo nº 073/18.0BCLSB, de 19 de junho de 201, proferido no Processo nº 01/18.2BCLSB, de 5 de setembro de 2019, proferido nos Processos nºs 058/18.6BCLSB e 065/18.9BCLSB, de 16 de janeiro de 2020, proferido no Processo n.º 039/19.2BCLSB, 7 de maio de 2020, proferido nos Processos n.º 144/17.0BCLSB e 074/19.0BCLSB, e de 18 de junho de 2020, proferido no Processo n.º 42/19.2BCLSB, todos consultáveis em www.dgsi.pt/jsta.


10. No citado acórdão de 21 de fevereiro de 2019, que seguimos de perto, aquela conclusão é alicerçada nas considerações seguintes:
«51. O conceito de «infração disciplinar» mostra-se definido no n.º 1 do art. 17.º do referido RD ali se preceituando que se considera «infração disciplinar o facto voluntário, por ação ou omissão, e ainda que meramente culposo, que viole os deveres gerais ou especiais previstos nos regulamentos desportivos e demais legislação aplicável», elencando-se nos seus arts. 29.º e 30.º o leque de sanções disciplinares [principais e acessórias] e quais aquelas que são aplicáveis aos clubes.
52. Resulta, por sua vez, do capítulo IV do RD/LPFP-2017 o elenco de infrações disciplinares, prevendo-se na sua secção I as «infrações específicas dos clubes», as quais podem ser «muito graves» [cfr. subsecção I, arts. 62.º a 83.º], «graves» [cfr. subsecção II, arts. 84.º a 118.º] e «leves» [cfr. subsecção III, arts. 119.º a 127.º], seguindo-se depois as infrações de dirigentes, de jogadores, de delegados dos clubes e dos treinadores, e na secção VI o regime das «infrações dos espectadores», resultando enunciado no art. 172.º, como princípio geral, o de que os «clubes são responsáveis pelas alterações da ordem e da disciplina provocadas pelos seus sócios ou simpatizantes nos complexos, recintos desportivos e áreas de competição, por ocasião de qualquer jogo oficial» [n.º 1] e de que «[s]em prejuízo do acima estabelecido, no que concerne única e exclusivamente ao autocarro oficial da equipa visitante, o clube visitado será responsabilizado pelos danos causados em consequência dos atos dos seus sócios e simpatizantes praticados nas vias públicas de acesso ao complexo desportivo» [n.º 2] [sublinhado nosso].
53. Também as «infrações dos espectadores» se mostram qualificadas como podendo ser «muito graves» [cfr. subsecção II, arts. 173.º a 178.º], «graves» [cfr. subsecção III, arts. 179.º a 184.º] e «leves» [cfr. subsecção IV, arts. 185.º a 187.º], estipulando-se, no que releva para o litígio, no seu art. 187.º, respeitante a «comportamento incorreto do público», que «[f]ora dos casos previstos nos artigos anteriores, o clube cujos sócios ou simpatizantes adotem comportamento social ou desportivamente incorreto, designadamente através do arremesso de objetos para o terreno de jogo, de insultos ou de atuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina é punido nos seguintes termos: a) o simples comportamento social ou desportivamente incorreto, com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 5 UC e o máximo de 15 UC; b) o comportamento não previsto nos artigos anteriores que perturbe ou ameace a ordem e a disciplina, designadamente mediante o arremesso de petardos e tochas, é punido com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 15 UC e o máximo de 75 UC» [n.º 1].
54. Decorre, por outro lado, do art. 34.º do RC/LPFP-2017, relativo à segurança e utilização dos espaços de acesso público, que os «clubes estão obrigados a elaborar um regulamento de segurança e utilização dos espaços de acesso ao público relativo ao estádio por cada um utilizado na condição de visitado e cuja execução deve ser concertada com as forças de segurança, a ANPC e os serviços de emergência médica e a Liga» [n.º 1], e que tal regulamento deverá conter, designadamente, medidas relativas à «a) separação física dos adeptos, reservando-lhes zonas distintas, nas competições desportivas consideradas de risco elevado; … d) instalação ou montagem de anéis de segurança e adoção obrigatória de sistemas de controlo de acesso, de modo a impedir a introdução de objetos ou substâncias proibidas ou suscetíveis de possibilitar ou gerar atos de violência, nos termos previstos na lei» [n.º 2].
55. Resulta do art. 35.º do mesmo RC que «[e]m matéria de prevenção de violência e promoção do fair-play, são deveres dos clubes: a) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança; b) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados; c) aplicar medidas sancionatórias aos seus associados envolvidos em perturbações da ordem pública, impedindo o acesso aos recintos desportivos nos termos e condições do respetivo regulamento ou promovendo a sua expulsão do recinto; (…) f) garantir que são cumpridas todas as regras e condições de acesso e de permanência de espetadores no recinto desportivo; (…) k) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, com a redação dada pela Lei n.º 52/2013, de 25 de julho; l) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas, xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos; (…) o) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei; (…) s) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afetos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos» [n.º 1], e que «[p]ara efeito do disposto na alínea f) do número anterior, e sem prejuízo do estabelecido no artigo 24.º da Lei n.º 39/2009 (…) e no Regulamento de prevenção da violência constante do Anexo VI, são considerados proibidos todos os objetos, substâncias e materiais suscetíveis de possibilitar atos de violência, designadamente: (…) f) substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo-de-artifício, foguetes luminosos (very-lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos; g) latas de gases aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam altamente inflamáveis» [n.º 2], sendo que «[p]ara além do disposto nos números anteriores, os clubes visitados, ou considerados como tal, devem proceder à colocação, em todas as entradas do estádio, de um mapa-aviso, de dimensões adequadas, com a descrição de todos os objetos ou comportamentos proibidos no recinto ou complexo desportivo, nomeadamente invasões do terreno de jogo, arremesso de objetos, uso de linguagem ou cânticos injuriosos ou que incitem à violência, racismo ou xenofobia, bem como a introdução (…) material produtor de fogo-de-artifício ou objetos similares, e quaisquer outros suscetíveis de possibilitar a prática de atos de violência» [n.º 6] [sublinhados nossos].
56. E quanto aos regulamentos de prevenção da violência [cfr. art. 36.º daquele RC] a matéria surge regulada nos referidos RD/LPFP e no anexo VI ao RC/LPFP [o RPV/RC/LPFP - adotado ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 05.º da Lei n.º 39/2009 (cfr. art. 02.º do mesmo RPV - «norma habilitante»)], extraindo-se do seu art. 04.º que «[c]ompete à Liga e aos seus associados, incentivar o respeito pelos princípios éticos inerentes ao desporto e implementar procedimentos e medidas destinados a prevenir e reprimir fenómenos de violência, racismo, xenofobia e intolerância nas competições e nos jogos que lhes compete organizar», constituindo deveres do «promotor do espetáculo desportivo» [no caso os «clubes» - cfr. art. 05.º, al. h), do referido RPV], no que aqui ora releva, os de «(…) b) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança; c) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados; (…) l) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009 (…); m) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube, associação ou sociedade desportiva participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos; p) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei; (…) t) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afetos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos; u) instalar e manter em funcionamento um sistema de videovigilância, de acordo com o preceituado nas leis aplicáveis» [cfr. art. 06.º do mesmo Regulamento].
57. Constituem, por último, condições de acesso dos espetadores ao recinto desportivo definidas no art. 09.º do referido Regulamento, nomeadamente, o: «f) não entoar cânticos racistas ou xenófobos ou que incitem à violência; (…) l) consentir na revista pessoal e de bens, de prevenção e segurança, com o objetivo de detetar e/ou impedir a entrada ou existência de objetos ou substâncias proibidos ou suscetíveis de possibilitar atos de violência; m) não transportar ou trazer consigo objetos, materiais ou substâncias suscetíveis de constituir uma ameaça à segurança, perturbar o processo do jogo, impedir ou dificultar a visibilidade dos outros espetadores, causar danos a pessoas ou bens e/ou gerar ou possibilitar atos de violência, nomeadamente: (…) vi. substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo-de-artifício, foguetes luminosos (very-lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos; vii. latas de gases aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam altamente inflamáveis», sendo que o acesso e permanência dos grupos organizados de adeptos [cfr. art. 11.º] se mostra disciplinado pelo estabelecido, nomeadamente, no art. 09.º, sendo sempre obrigatória a revista pessoal aos mesmos e seus bens.
58. Encerrando-se aqui o elencar do quadro normativo tido por pertinente para a análise do litígio temos que a previsão do ilícito desportivo disciplinar em questão, no caso o inserto no art. 187.º do RD/LPFP-2017, mostra-se clara e perfeitamente integrada naquilo que, por um lado, são os deveres legais e regulamentares atrás aludidos e que nesta matéria impendem, nomeadamente, sobre os clubes e sociedades desportivas, e, por outro lado, no que, mais vastamente, constituem os objetivos e os fins da política de combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança e desportivismo, prevenindo a eclosão e reprimindo a existência ou a manifestação de tais fenómenos.
59. Através da previsão do referido ilícito desportivo disciplinar visa-se a prossecução e realização daqueles objetivos e fins, prevenindo e reprimindo os comportamentos e as condutas que nele se mostram tipificados e que são atentatórios e desconformes com aqueles objetivos e fins, fazendo responder clubes e sociedades desportivas por tais condutas e comportamentos incorretos, tidos pelo público aos mesmos afeto ou simpatizante, enquanto reveladores da inobservância por estes, por ação ou por omissão, do que constituem os seus deveres legais e regulamentares gerais e especiais constantes dos comandos normativos atrás convocados.
60. Na formulação do que constitui o tipo de ilícito disciplinar inserto no art. 187.º do RD/LPFP-2017 e do que, em decorrência, se exige para o seu preenchimento em concreto, estão subjacentes, tão-só, as condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube/sociedade desportiva e pelos quais os mesmos respondem, porquanto decorrentes ou fruto do que constitui o incumprimento pelos mesmos, por ação ou omissão, do dever in vigilando que têm sobre as suas claques e adeptos, nomeadamente e no que releva para a discussão objeto dos autos sub specie, de que houve alguma falha no dever de revista dos adeptos, no dever de revista do estádio, no dever de controlar os adeptos dentro do estádio, no dever de demover os adeptos de praticarem ou desenvolverem tal tipo de comportamentos e condutas.
61. Ora no caso vertente inexiste, por não aportado aos autos, um qualquer elemento densificador e revelador do cumprimento por parte da demandante dos deveres a que está subordinada no que respeita aos deveres de formação, controlo e vigilância do comportamento dos seus adeptos e espectadores, bem sabendo que estava obrigada a cuidar dos mesmos e que eram os seus adeptos que ocupavam a denominada «bancada sul», onde se verificaram as ocorrências registadas no Relatório.
62. Sobre os clubes de futebol e as respetivas sociedades desportivas, como é o caso da demandante aqui recorrida, recaem especiais deveres na assunção, tomada e implementação de efetivas medidas não apenas dissuasoras e preventivas, mas, também, repressoras, dos fenómenos de violência associada ao desporto e de falta de desportivismo, de molde a criar as condições indispensáveis para que a ordem e a segurança nos estádios de futebol português sejam uma realidade.
63. Neste contexto, ao invés do sustentado pela demandante na sua impugnação e que veio a ter acolhimento no acórdão recorrido, não estamos em face de uma qualquer situação de responsabilidade disciplinar objetiva violadora dos princípios e comandos constitucionais.
64. Com efeito, mostra-se ser in casu subjetiva a responsabilidade desportiva na vertente disciplinar da demandante aqui recorrida, já que estribada naquilo que foi uma violação dos deveres legais e regulamentares que sobre a mesma impendiam neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido.
65. É que se no domínio da prevenção da violência associada ao fenómeno desportivo o quadro normativo impõe deveres a um leque alargado de destinatários, nomeadamente, aos clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, é porque lhes reconhece capacidade para os cumprir e também para os violar, pelo que apurando-se a violação de deveres legalmente estabelecidos os destinatários dos mesmos serão responsáveis por essa violação.
66. Socorrendo-nos e transpondo para o caso vertente a jurisprudência do TC expendida no acórdão n.º 730/95 [consultável in: «www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/» e que foi firmada no quadro da apreciação da conformidade constitucional da sanção de interdição dos estádios por comportamentos dos adeptos dos clubes prevista nos arts. 03.º a 06.º do DL n.º 270/89, de 18.08 (diploma no qual se continham medidas preventivas e punitivas de violência associada ao desporto) e 106.º do Regulamento Disciplinar da FPF], temos que os ilícitos disciplinares ou disciplinares desportivos imputados e pelos quais a demandante aqui recorrida foi sancionada resultam de «condutas ilícitas e culposas das respetivas claques desportivas (assim chamadas e que são os sócios, adeptos ou simpatizantes, como tal reconhecidos) - condutas que se imputam aos clubes, em virtude de sobre eles impenderem deveres de formação e de vigilância que a lei lhes impõe e que eles não cumpriram de forma capaz», «[d]everes que consubstanciam verdadeiros e novos deveres in vigilando e informando», presente que cabe a cada clube desportivo o «dever de colaborar com a Administração na manutenção da segurança nos recintos desportivos, de prevenir a violência no desporto, tomando as medidas adequadas», concluindo-se no sentido de que «[n]ão é, pois, (…) uma ideia de responsabilidade objetiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres».
67. É, por conseguinte, neste ambiente de proteção, salvaguarda e prevenção da ética desportiva, bem como do combate a manifestações de violência associada ao desporto, que incidem ou recaem sobre vários entes e entidades envolvidos, designadamente sobre os clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, um conjunto de novos deveres in vigilando e in formando e em que a inobservância destes deveres assenta não necessariamente numa valoração social, moral ou cultural da conduta do infrator, mas antes no incumprimento de uma imposição legal, sancionando-se aqueles por via da contribuição omissiva, causal ou co causal que tenha conduzido a um comportamento ou conduta dos seus adeptos.
68. Na verdade, não estamos in casu, pois, perante uma responsabilidade objetiva já que o regime previsto nos arts. 17.º, 19.º, 20.º, 127.º, 187.º, n.º 1, als. a) e b), do RD/LPFP-2017 em articulação, nomeadamente, com os arts. 06.º, al. g), e 09.º, n.º 1, al. m), do RPV/RC/LPFP-2017 e com o que resulta do demais quadro normativo atrás convocado, observa o princípio da culpa, tanto mais que em sua decorrência apenas se sancionam os clubes de futebol ou as suas sociedades desportivas pelos comportamentos incorretos do seu público havidos em violação por aqueles dos deveres que sobre os mesmos impendiam.
69. Daí que, no contexto, o princípio constitucional da culpa, enquanto servindo, igualmente, de elemento conformador e basilar ao Estado de direito democrático, e tendo como pressuposto o de que qualquer sanção configura a reação à violação culposa de um dever de conduta, considerado socialmente relevante e que foi prévia e legalmente imposto ao agente, não se mostra minimamente infringido, tanto mais que será no quadro do processo disciplinar a instaurar [cfr. arts. 212.º e segs., 225.º e segs., do RD/LPFP-2017] que se terão de averiguar e apurar todos os elementos da infração disciplinar, permitindo, como se refere no citado acórdão do TC, que «por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)».
70. Frise-se que é na e da inobservância dos deveres de assunção da responsabilidade pela segurança do que se passe no recinto desportivo e do desenvolvimento de efetivas ações de prevenção socioeducativa que radica ou deriva a responsabilidade disciplinar desportiva em questão, dado ter sido essa conduta que permitiu ou facilitou a prática pelos seus adeptos dos atos ou comportamentos proibidos ou incorretos.
71. E que cabe aos clubes de futebol/sociedades desportivas a demonstração da realização por parte dos mesmos junto dos seus adeptos das ações e dos concretos atos destinados à observância daqueles deveres e, assim, prevenirem e eliminarem a violência, e isso sejam esses atos e ações desenvolvidos em momento anterior ao evento, sejam, especialmente, imediatamente antes ou durante a sua realização.
72. Para o efeito, aportando prova demonstradora, designadamente, de um razoável esforço no cumprimento dos deveres de formação dos adeptos ou da montagem de um sistema de segurança que, ainda que não sendo imune a falhas, conduza a que estas ocorrências e condutas sejam tendencialmente banidas dos espetáculos desportivos, assumindo ou constituindo realidades de carácter excecional.
73. A previsão no quadro disciplinar do ilícito desportivo em crise mostra-se, assim, devidamente legitimada já que encontra, ou vê radicar, repousar os seus fundamentos não apenas naquilo que é a necessária prevenção, mas, também, na culpa, sancionando-se o que constitui um negligente cumprimento dos deveres supra enunciados, sem que, de harmonia com o exposto, um tal entendimento atente ou enferme de violação dos princípios da culpa e do Estado de direito, ou constitua um entorse aos direitos de defesa e a um processo equitativo, dado que assegurados e garantidos em consonância e adequação com o entendimento e interpretação fixados.
74. E também não vemos que tal entendimento e interpretação possam envolver uma pretensa violação dos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo, pois, não estamos em face da assunção duma presunção de culpa da arguida ou de regra que dispense, libere ou inverta o ónus probatório que colida com o primeiro princípio, nem, como atrás referido, no caso em presença somos confrontados com uma situação de inexistência de prova relevante de que foi cometido ilícito e de quem é o sujeito responsável à luz da prova produzida para, mercê da existência de legítima dúvida, fazer apelo ao segundo princípio.»

11. As considerações transcritas são plenamente aplicáveis ao caso dos autos, pelo que o TAD não estava impedido de fundar no relatório elaborado pelos delegados da Liga a presunção de que os factos neles relatados são imputáveis a sócios ou simpatizantes da ora recorrida.
Deste modo, extraindo-se da matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido que a recorrida incumpriu culposamente os deveres de vigilância, controlo e formação a que estava adstrita, por força do disposto nos artigos 13.º, al. f), 127.º e 187.º, n.º 1, al. a) e b), todos do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, não pode deixar de se concluir que o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento quando considerou existir violação do princípio da presunção de inocência do arguido, à luz do regime constante dos n.ºs 2 e 10 do artigo 32.º CRP.

12. Ao concluir nestes termos, este Supremo Tribunal Administrativo não está a extravasar o âmbito dos seus poderes de jurisdição, na medida em que não está a realizar um julgamento sobre a matéria de facto, através de uma distinta valoração probatória, mas apenas a aplicar o direito aos factos considerados provados pelo acórdão recorrido.
Inexiste, assim, o excesso de pronúncia alegado pela recorrida.

13. A conclusão de que se pode dar como provado, por presunção, que o clube violou deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes com base no facto de que esses sócios ou simpatizantes adotaram um comportamento social ou desportivamente incorreto também não viola o princípio jurídico-constitucional da culpa, que se extrai do princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da CRP, pois, como se afirmou no acórdão atrás citado, o que os artigos 187.º, n.º 1, als. a) e b), 127.º, n.º 1 e 258.º, n.º 1, do RDLPFP sancionam é o «negligente cumprimento dos deveres supra enunciados».

14. Aquela conclusão também não afronta o direito da recorrida a um processo equitativo, nos termos do n.º 4 do artigo 20.º da CRP.
Como se afirmou a este propósito no Acórdão desta Secção, de 12 de dezembro de 2019, proferido no Processo n.º 048/19.0BCLSB, em que a ora recorrida também era parte:
«26. (...) se é certo que a CRP consagra nos seus arts. 20º e 268º nº 4, o direito a um processo justo, imparcial e equitativo, o qual postula, designadamente, que a «todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos», temos que a definição dos meios de tutela jurisdicional desses direitos e interesses, daquilo que são as suas regras de tramitação, os poderes e os ónus que recaem sobre as partes e poderes do julgador, carecem de consagração e concretização legal, não resultando dos direitos em referência a atribuição aos cidadãos, na defesa e tutela de seus direitos e interesses, de um direito a livremente poderem socorrer-se de todo e qualquer meio processual ou probatório que considerem adequado, nem que estejam isentos ou desonerados do respeito de regras contendo deveres e ónus/faculdades processuais e/ou das consequências que derivem do seu incumprimento ou da sujeição às decorrências resultantes dos comportamentos desenvolvidos no ou fazendo uso de ónus/faculdades.
27. Na verdade, atendendo a outros bens e valores jurídicos que importa que sejam igualmente considerados, o legislador procede à definição dos meios ao dispor dos cidadãos para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, disciplina as suas regras e pressupostos, institui deveres, poderes e ónus para as partes, cientes de que o direito a um processo equitativo só se considera violado quando for impossível o estabelecimento de uma relação mínima de equilíbrio ou proporção entre a justificação da exigência em causa e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento de tal exigência.
28. No caso vertente não se vislumbra uma qualquer ofensa ao comando constitucional em crise e ao direito convocado, porquanto à Recorrida mostrou-se e mostra-se assegurado, em pleno, o direito a um processo equitativo na e com tramitação e decisão dos vários meios impugnatórios de que dispôs e deduziu em várias sedes e instâncias, feitas segundo as regras disciplinadoras dos mesmos e que se mostram equilibradas/proporcionais aos valores e direitos a tutelar - cfr., também, em idêntico sentido o ponto 2.4 do Ac. deste STA de 5/9/2019 (Proc. n.º 058/18.6BCLSB).»

15. Deste modo, e sem necessidade de mais considerações, conclui-se que o presente recurso deve proceder, revogando-se o acórdão recorrido e mantendo-se o acórdão do TAD que confirmou a multa aplicada à recorrida.

16. A recorrida alega que, no caso de o recurso proceder, como procede, impõe-se «o reenvio do processo ao Tribunal a quo, para que este, de acordo com o critério normativo fixado em sede de revista, aprecie, em plano de apelação, a conformidade da matéria de facto dada como provada com os únicos meios de prova constante dos autos: os Relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da LPFP.»
Mas não tem razão.
Por um lado, porque desta revista não decorre, como não poderia resultar, qualquer dever de repetição do julgamento de facto. Aliás, o TCAS apreciou a matéria de facto dada como provada pelo TAD e não fez a esse respeito qualquer reparo, limitando a sua divergência ao julgamento de direito.
Por outro lado, porque o TCAS não deixou nenhuma questão de direito por conhecer – nomeadamente por ter ficado prejudicada pela sua decisão – pelo que a censura da errada interpretação que fez do direito aplicável àqueles factos implica, automaticamente, a confirmação da decisão do TAD.

17. A recorrida suscitou ainda, na sua última conclusão, a questão da legalidade do valor da causa fixado pelo TAD, alegando que o mesmo não é indeterminável e deve ser fixado com base no valor da multa que lhe foi aplicada, no montante de € 1.873,00.
Sucede, porém, que o TACS conheceu do recurso interposto do acórdão do TAD quanto a essa questão, tendo negado provimento ao mesmo e confirmado o valor de € 30.000,01.
Ora, havendo uma decisão expressa do TCAS sobre o valor da causa, não pode este STA, em sede de revista, conhecer daquela questão ou mandar baixar o processo para que ela seja reapreciada, uma vez que, nessa parte, aquela decisão não foi objeto de um recurso autónomo, independente ou subordinado, pelo que transitou em julgado.


IV. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, reunidos em conferência, em conceder provimento ao recurso e, em consequência, em revogar a decisão recorrida, confirmando-se o Acórdão do TAD por ela revogado, que manteve a pena disciplinar de multa aplicada à Recorrida, no valor de 1.873,00 €.

Custas pela recorrida, neste Tribunal e no TCAS. Notifique-se.
Lisboa, 19 de Novembro de 2020. – Cláudio Ramos Monteiro (relator) – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano.