Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0751/15.5BEVIS
Data do Acordão:09/09/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24847
Nº do Documento:SA1201909090751/15
Data de Entrada:07/04/2019
Recorrente:CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES
Recorrido 1:A...., MUNICÍPIO DE MOIMENTA DA BEIRA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:

I. RELATÓRIO
A………, por si e em representação das suas filhas ………. e …………, intentou, no TAF de Viseu, contra a Caixa Geral de Aposentações (CGA) e o Município de Moimenta da Beira, acção administrativa comum pedindo que os RR fossem solidariamente condenados a reconhecer que o acidente que vitimou o seu marido e pai ocorreu quando ele se encontrava ao serviço do Município Réu e que o mesmo foi provocado pela violação grosseira das regras de segurança e, consequentemente, a pagar-lhes o subsídio por morte, despesas de funeral, pensões agravadas e indemnização por danos não patrimoniais.

O TAF julgou a acção parcialmente procedente.

E o TCA Norte, para onde a Autora, a CGA e o Município de Moimenta da Beira apelaram, este em recurso subordinado, negou provimento aos recursos.

É desse Acórdão que a CGA vem recorrer (artigo 150.º/1 do CPTA).

II. MATÉRIA DE FACTO
Os factos provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III. O DIREITO
1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o STA «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto como «válvula de segurança do sistema» para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos, pois, se tais requisitos se verificam in casu socorrendo-nos da matéria de facto seleccionada no Acórdão recorrido.

2. As Autoras, mulher e filhas de B………., funcionário do Município Réu, que, no dia 28/10/2014, sob as ordens deste, estava a limpar as caleiras de um armazém daquele, com mangueiras de água, apesar de nesse dia o tempo estar a chuviscar e a vítima não operar habitualmente em trabalhos em altura, maxime na limpeza e reparação de telhados. Todavia, contra a sua vontade, receando cair, obedeceu às ordens que lhe foram dadas e subiu ao telhado para fazer a referida limpeza.
Cerca de duas horas depois do início desse trabalho uma das placas do armazém cedeu ao peso da vítima e partiu originando a sua queda para o solo de cimento. Em consequência desse acidente sofreu diversos traumatismos e choque hemorrágico, os quais foram, directa e necessariamente, a causa da sua morte, ocorrida no dia 3/11/2014.
A CGA fixou uma pensão por morte em serviço, nos termos do Decreto-Lei n.º 503/99, que a Autora não só considerou inferior à devida como insuficientemente reparadora dos danos causados pelo acidente.
Daí a instauração desta acção.

TAF julgou-a parcialmente procedente tendo condenado as RR no seguinte:
1) A reconhecer a existência e caracterização do acidente como de serviço, o nexo de causalidade entre o acidente e a morte, o vencimento da vítima e a sua responsabilidade agravada pela reparação do mesmo;
2) A reconhecer a violação das regras de segurança nomeadamente as que concernem aos trabalhos em altura bem como o nexo de causalidade entre a violação destas regras de segurança e a morte do trabalhador;
3) A reconhecer o direito ao subsídio por morte, correspondente a 12 vezes o valor de 1,1 IAS, considerando o IAS em 2014, de € 419,22, sendo metade para a viúva e a outra metade para as duas filhas, em partes iguais e as despesas de funeral no valor € 1.825,00, à viúva do sinistrado, considerando já paga a quantia de € 6.060,00.
4) A pagar, solidariamente, às Autoras:
a) Pensão por morte da vítima, anual e vitalícia fixada nos termos dos artigos 18.º, n.º 1, n.º 4, alínea a) e n.º 5, 59.º, n.º 1, alínea a) e 71.º da LAT, a remir.
b) Pensão por morte da vítima, anual e temporária, anual e temporária (até 25 anos se estiver dependente ou sem limite de idade quando se for afetada por deficiência ou doença crónica que atinja a sua capacidade de ganho) a fixar nos termos dos artigos 18.º, n.º 1, n.º 4, alínea a) e n.º 5, 60.º, n.º 1, alínea c) e 71.º da LAT, a remir.
c) Indemnização por danos não patrimoniais devidos pela perda da vida € 80.000,00 (oitenta mil euros), sofrimento da morte da vítima € 10.000,00 (dez mil euros) e sofrimento dos familiares, viúva e duas filhas € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros), no valor global de € 145.000,00 (cem e quarenta e cinco mil euros).”

Decisão que foi objecto de recurso, quer da Autora quer de ambos os RR, mas que o TCA confirmou, com a seguinte fundamentação:
(…)
Do Recurso da CGA.
......
Se é certo que a responsabilidade da CGA é objetiva, independentemente de culpa, enquanto entidade que está legalmente obrigada a pagar as prestações devidas aos familiares dos seus beneficiários, por morte destes em acidente de serviço, e, solidária, porquanto responde integralmente por todas as prestações, cabe-lhe, no entanto, se for caso disso, o direito ao reembolso dos encargos que pagou sobre o Município, enquanto entidade empregadora, dotada de autonomia administrativa e financeira, a qual não transferiu a sua responsabilidade pela reparação dos acidentes de serviço para uma entidade seguradora.
.......
Na realidade, respondendo a CGA em primeira linha e objetivamente por todas as prestações devidas aos familiares da vítima mortal, a ausência da sua condenação poderia determinar um impasse no pagamento das indemnizações definidas judicialmente.
É incontornável que é a CGA quem paga as prestações devidas aos familiares da vítima (artigo 34º 1 e 4 do RJAS), em face do que a decisão a determinar a obrigação do pagamento indemnizatório terá de o contemplar.
Invoca ainda a CGA no seu Recurso que não será responsável pelo pagamento do subsídio por morte nem pelo reembolso das despesas com o funeral do sinistrado porquanto o subsídio por morte é pago pelo serviço onde o funcionário exercia funções e que o reembolso das despesas de funeral não é cumulável com o subsídio por morte (artigos 9º e 14º, 1 do DL 223/95 de 8/9).
..........
Sendo solidária a responsabilidade da CGA, responderá pelo pagamento do subsídio por morte e despesas com o funeral, sem prejuízo, se for caso disso, do emergente exercício do direito de reembolso sobre o Município.
Refere ainda a Recorrente CGA que o prazo para requerer o subsídio de despesas de funeral é de um ano a contar da realização das despesas nos termos do disposto no artigo 66º, nº 5 da LAT, prazo que teria sido ultrapassado.
Em qualquer caso, e em concreto, tendo a despesa sido realizada em 31.12.2014, e o pedido de reembolso feito não âmbito da presente Ação, entrada em juízo em 17-09-2015, é manifesto que o pedido se mostrará tempestivo.
..........
Invoca ainda a Recorrente CGA o artigo 7º da LAT no que respeita à entidade responsável pela reparação e demais encargos decorrentes de acidente de trabalho, relativamente ao trabalhador ao seu serviço.
Em qualquer caso, importa ter presente o RJAS, o qual, nos seus artigos 5º, nº 3, e 43º estabelece uma responsabilidade objetiva, independentemente da culpa, e solidária, respondendo, no caso, a CGA integralmente por todas as prestações, podendo, como reiteradamente se afirmou já, exercer o direito de regresso sobre o Município.
........
Como já anteriormente se abordou, estando predominantemente em causa o pagamento de pensões, e sendo a CGA a entidade que as processa, poder-se-ia criar um impasse, caso a CGA não fosse condenada no pagamento dos montantes judicialmente definidos como devidos às Autoras.
.........
Tendo o Tribunal a quo entendido ser devida uma pensão agravada (artigo 5º, nº 3 do RJAS) é incontornável que terá de ser em primeira linha a CGA, independente da culpa, quem deverá proceder ao pagamento da mesma.
....
No que concerne já ao pagamento das indemnizações por danos não patrimoniais, a correspondente condenação não assentou no disposto no artigo 483º do CC, o que sempre pressuporia a verificação, designadamente, de dolo ou mera culpa.
......
Com efeito, a responsabilidade agravada, que acarreta correspondentemente o pagamento da pensão por morte agravada, bem como os danos não patrimoniais pela ocorrência do acidente de serviço, teve por fundamento, não uma imputação subjetiva culposa, mas sim a ilicitude resultante da violação das regras de segurança e o nexo de causalidade entre a violação e o acidente, no sentido de que se existem meios de proteção individual a queda do trabalhador não se teria verificado.
A responsabilidade da Recorrente CGA é assim objetiva e independente da sua culpa, enquanto responsável pelo pagamento das prestações devidas aos familiares dos sinistrados por morte destes em acidente de serviço, e, solidária, porquanto responde integralmente por todas as prestações podendo exercer o direito de regresso relativamente aos encargos entretanto assumidos.
Em face do que precede, improcederá o Recurso interposto pela CGA.

Do Recurso das Autoras e Do Recurso Subordinado do Município.
Efetivamente, as Autoras vêm predominantemente Recorrer para esta instância em resultado de entenderem que os valores indemnizatórios atribuídos se mostrarão insuficientes.
Já o Recurso subordinado do Município resulta do entendimento de que “as quantias fixadas são exageradas”.
.......
Aqui chegados, ponderando as circunstâncias do caso, em que se evidenciam desde logo, o grau de parentesco imediato, o tempo de convivência conjugal, a ligação entre a vítima, a sua cônjuge e as filhas de ambos, o acompanhamento familiar, e a presença regular do falecido, a circunstância repentina e inesperada da sua morte, perfeitamente evitável, e as circunstâncias da sua ocorrência e a capacidade económica do lesante, considera-se que os valores indemnizatórios estabelecidos se mostram adequados, na medida do possível, ao ressarcimento dos danos verificados, por forma a, designadamente, compensar a angústia, tristeza, sofrimento causados.
........
Decorre pois de tudo quanto se foi discorrendo que se ratifica tudo quanto se expendeu no discurso fundamentador da Sentença de 1ª instância, cuja decisão se confirmará, negando-se provimento a todos os Recursos apresentados, em virtude de, em momento algum, se ter reconhecido que o decidido tenha afrontado “as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida”, em face do que se não justifica qualquer intervenção corretiva desta instância, mormente no que concerne aos valores indemnizatórios estabelecidos, os quais se mostram ajustados à realidade de facto e de direito em que assentam.”

3. A CGA não se conforma com esse Acórdão, pelo que pede a admissão desta revista pelas razões condensadas nas seguintes conclusões:
“2.ª Como fundamento para todos os valores peticionados nestes autos está o «Agravamento da responsabilidade» (art.º 18.º da Lei n.º 98/2009, de 4/9), o qual a CGA não discute – nem nunca discutiu –, tendo em conta que esse regime legal tem, sempre, por pressuposto a «Actuação culposa do empregador», ou seja, assenta na responsabilidade subjetiva do empregador.
3.ª Tal regime jurídico assenta na responsabilização do agente, quando incumpra os deveres de cuidado a que está adstrito e, culposamente, produza um dano, não sendo «extensível» a um terceiro (como a CGA), que se limita a processar pensões, e que não tem responsabilidade nenhuma pela violação das regras de segurança no trabalho que estiveram na origem do acidente.
6.ª Mas poderá o art.º 43.º do DL n.º 503/99 legitimar a CGA no pedido de reembolso (ou de regresso, como se refere na pág. 42 do Acórdão) do valor correspondente aos danos morais que o Tribunal a quo considerou ser de fixar solidariamente? Fará isto sentido?
14.ª Sobre a condenação, solidariamente com o Município de Moimenta da Beira, no pagamento de uma indemnização por danos morais no valor global de € 145.000,00, este será o segmento da decisão que mais perplexidade causa, porque viola grosseiramente quer as regras de direito subjetivo quer as regras de direito adjetivo convocáveis ao caso.
18.ª Não se descortina, no caso, nem o «dolo ou mera culpa» que possa ser imputável à CGA, nem qual o nexo causal entre a atuação da CGA e a violação das regras de segurança no trabalho que originaram o acidente, que justifique a sua condenação no pagamento de danos morais.

4. Como decorre do anterior relato são duas as questões essenciais que se suscitam nesta revista; por um lado, a de saber se a CGA, que em nada contribuiu para o desencadear do acidente, pode ser responsabilizada pelos danos não patrimoniais dele decorrentes e, por outro, a de saber se a responsabilidade que recai sobre se ela é objectiva e se, por isso, abarca o ressarcimento de todos os danos independentemente da sua culpa.
Questões que estão interligadas e que, como vimos, as instâncias, em uníssono, responderam positivamente fundando-se, no toca à primeira delas, no disposto nos n.ºs 1 e 4 do art.º 34.º do RJAS onde se estatui:
Artigo 34.º
Incapacidade permanente ou morte
1 - Se do acidente em serviço ou da doença profissional resultar incapacidade permanente ou morte, haverá direito às pensões e outras prestações previstas no regime geral.
4 - As pensões e outras prestações previstas no n.º 1 são atribuídas e pagas pela Caixa Geral de Aposentações, regulando-se pelo regime nele referido quanto às condições de atribuição, aos beneficiários, ao montante e à fruição.
Todavia, limitando-se a CGA a processar pensões e não tendo nenhuma responsabilidade pela violação das regras de segurança no trabalho que estiveram na origem do acidente, é altamente controversa a condenação da mesma – solidariamente, é certo, com o Município Réu - no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais devidos em função dos danos provocados pelo acidente, designadamente, a perda da vida, o sofrimento da vítima e o sofrimento dos familiares, viúva e duas filhas.
Nesta conformidade, atenta a importância dessa questão e a possibilidade da sua repetição, justifica-se a intervenção esclarecedora deste Supremo Tribunal.

DECISÃO.

Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em admitir a revista.
Sem custas.

Porto, 9 de Setembro de 2019. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – São Pedro.