Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0427/16
Data do Acordão:10/12/2016
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
RECLAMAÇÃO GRACIOSA
OBJECTO DA IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
VÍCIO PROCEDIMENTAL
Sumário:I - A impugnação judicial de indeferimento de reclamação graciosa tem por objecto imediato a decisão da reclamação e por objecto mediato os vícios imputados ao acto de liquidação.
II - Anulado o indeferimento da reclamação por vício procedimental desta, cabe ao tribunal conhecer dos restantes vícios imputados ao acto tributário, uma vez que este é competente para conhecer em tal impugnação, quer do indeferimento da reclamação, quer dos vícios imputados ao acto tributário.
Nº Convencional:JSTA000P20968
Nº do Documento:SA2201610120427
Data de Entrada:04/07/2016
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A............
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam os juízes da secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

A FAZENDA PÚBLICA, inconformada, interpôs recurso da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé (TAF de Loulé) datada de 26 de Janeiro de 2016, que julgou procedente a Impugnação Judicial, deduzida por A…………, contra o acto do Director de Finanças Adjunto de Lisboa de 30 de Novembro de 2012, que lhe indeferiu a Reclamação Graciosa que deduzira contra a liquidação de IRC do exercício de 2008 no valor de € 376.740,00.

Alegou, tendo concluído como se segue:
a) Recorre-se da douta sentença que julgou procedente a impugnação judicial e anulou o acto do Director de Finanças Adjunto de Lisboa, que indeferiu a reclamação graciosa deduzida contra o acto de Liquidação de IRC do exercício de 2008;
b) O acto de indeferimento foi anulado por vício de falta de fundamentação. Pois, entendeu o Mm° Juiz que a decisão, “(…) por remissão, se fundamentou em informação que, atenta a sua falta de clareza e suficiência, se deve ter por não fundamentada.”;
c) A questão decidenda é a de saber se, tendo o Mm° Juiz “a quo” anulado o acto de indeferimento da reclamação graciosa, por falta de fundamentação do mesmo, deveria ter de seguida conhecido os vícios imputados ao próprio acto tributário, objecto da reclamação graciosa, ou se a tal não estava obrigado;
d) Cremos que, no caso concreto, a impugnação abrange quer a decisão de indeferimento proferida em sede de reclamação graciosa, quer o acto tributário de liquidação, pelo que, a decisão não poderá ser no sentido de que a AT tenha de praticar outra decisão que substitua a anulada, pois o Tribunal está obrigado a conhecer os vícios imputados ao acto de liquidação na impugnação;
e) Tal decorre da interpretação conjunta dos artigos 68°, n° 1 e 70°, ambos do CPPT, segundo os quais a reclamação visa a anulação total ou parcial dos actos tributários e pode ser deduzida com os mesmos fundamentos previstos para a impugnação judicial;
f) Pelo que, tendo sido anulada a decisão de indeferimento por vício procedimental, que não afecta a validade do acto tributário mediatamente impugnado, caberia ao Tribunal conhecer e julgar dos vícios que vêm imputados a este.
g) Ao não ter assim procedido, a douta sentença padece de erro de julgamento.
Contra-alegou o recorrido tendo concluído:
A) Conclui-se que, o impugnante veio requerer a falta de fundamentação que substancia na ausência de fundamentos, na contradição e na obscuridade da decisão impugnada, fundamentação de direito o douto Tribunal “a quo” fundamentou a sua decisão nos artigos 268.º da Constituição da República Portuguesa, artigo 124.º do Código de Procedimento Administrativo e artigo 77.º da LGT e consequentemente, o Meritíssimo Doutor Juiz “a quo” anulou na sua totalidade o acto tributário praticado e fundamentou os vícios imputados ao acto de liquidação.
B) Conclui-se que, nas alegações e conclusões da Fazenda Pública não refere qual a violação legal da douta sentença proferida, para concluir pelo erro de julgamento.
C) Conclui-se que, o douto Tribunal “a quo” decidiu: “Termos em que, julgando procedente a Impugnação Judicial, se anula o acto do Director de Finanças Adjunto de Lisboa, de 30 de Novembro de 2012, que indeferiu a Reclamação Graciosa deduzida contra a liquidação de IRC n.° 2010.8310005547.”.
D) Conclui-se, pela falta de alcance da Fazenda Pública quando conclui que “anulada a decisão de indeferimento por vício procedimental, que não afecta a validade do acto tributário mediatamente impugnado, caberia ao tribunal conhecer e julgar dos vícios que vêm imputados a este.”.
E) Conclui-se que, em sede de recurso, as conclusões das alegações do recurso definem, como é sabido, o respectivo objecto e consequente área de intervenção do Tribunal “ad quem”, ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração - cfr. artºs 639º do C.P. Civil; artº 282º, do C.P.P. Tributário).
F) Conclui-se que, nas conclusões alegatórias da ora recorrente Fazenda Pública, com o devido respeito, não imputa à douta sentença recorrida quaisquer vícios que ponham em causa o dispositivo da mesma relativo à decidida procedência da impugnação judicial e consequente anulação do acto do Senhor Director de Finanças Adjunto de Lisboa.
G) Conclui-se que, não sendo apontado qualquer vício à parte dispositiva da douta sentença da 1ª instância, tanto basta para que se deva considerar excluída do objecto da apelação a decisão recorrida, assim ficando prejudicada a apreciação do mérito do recurso em análise.
H) Conclui-se que, o âmbito e o objecto do recurso jurisdicional se fixam nas conclusões formuladas, sendo que quando estas se alheiam da decisão recorrida, não se lhe referindo, nem a criticando, são ineficazes para a pretensão do recorrente, conduzindo à improcedência do recurso (cfr. artºs 652º, nº al. h).
I) Conclui-se que à falta de objecto do presente recurso.
J) Conclui a Fazenda Pública que a douta sentença foi anulada por vício procedimental, que não afecta a validade do acto tributário, caberia ao Tribunal conhecer e julgar dos vícios que vêm imputados a acto e consequentemente padece de um erro de julgamento.
K) Com o devido respeito, o douto tribunal “o quo” não fundamentou a sua decisão num mero vício procedimental, mas sim em vícios que conduzem à nulidade insanável do acto, assim como foi considerado pelo douto tribunal “a quo”.
L) Conclui-se que, o tribunal “a quo” fundamentou a sua decisão com a violação do princípio constitucional de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias enunciados no título II da parte 1.ª da Constituição da República - artigo 268.º da Constituição, com a obrigação de fundamentação dos actos administrativos - cfr. o artigo 124.º Código de Procedimento Administrativo - e tributários e nos termos do artigo 77.º da LGT.
M) Mais fundamentou com a violação destes requisitos da decisão implica a respectiva ilegalidade, fundamento de subsequente anulação, em sede de impugnação judicial.
N) Mais se conclui que o Tribunal “a quo” verificou os fundamentos alegados pelo impugnante e procedência dos vícios invocados.
O) Conclui-se que, o Tribunal a quo julgou em conformidade com as normas legais aplicadas ao caso em concreto.

O Ministério Público, notificado, pronunciou-se pela procedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte factualidade concreta:
1.
A sociedade B…………, LLC, tem sede em ……, ………, ………, Oklahoma 73064, Estados Unidos da América - facto admitido por acordo.
2.
No dia 4 de Março de 2005, B………, LLC, comprou a C………, Lda., pelo preço de € 125.000,00, o prédio urbano composto por um lote de terreno para construção urbana com a área de 2.630 metros quadrados, designado por lote 16, sito na Urbanização ……, em ……, freguesia de ………, concelho de Faro, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 3.668 - cfr. fls. 20 e 13-16 do apenso.
3.
Em 9 de Janeiro de 2008, a Câmara Municipal de Faro emitiu o alvará de obras de alterações n.º 3/2008 em nome de B…………, LLC, relativo àquele prédio - cfr. fls. 17 do apenso.
4.
No dia 23 de Junho de 2008, a Câmara Municipal de Faro emitiu o alvará de utilização n.º 23/2008 em nome de B…………, LLC, relativo ao mesmo prédio - cfr. fls. 19 do apenso.
5.
Em 29 de Setembro de 2008, B…………, LLC, vendeu a D………… e E…………, por € 1.925.000,00, o prédio urbano destinado a habitação, sito na Urbanização ……… - lote 16, em ………, freguesia de ………, concelho de Faro, inscrito na respectiva matriz sob o artigo provisório 4.828 que proveio do anterior artigo 3.668 - cfr. fls. 295-297 do apenso.
6.
Na escritura foi declarado pelas partes, sob advertência de que incorreriam nas penas aplicáveis ao crime de falsidade de depoimento ou de declaração perante oficial público, “Que neste acto não houve intervenção de mediadora imobiliária” - cfr. fls. 296-298 do apenso.
7.
B…………, LLC, não procedeu à entrega da declaração modelo 22 de IRC relativa ao exercício de 2008 - facto admitido por acordo.
8.
No dia 25 de Janeiro de 2010, foi elaborado Relatório de Inspecção Tributária relativo a acção inspectiva efectuada a B…………, LLC, no qual se concluiu pela necessidade de efectuar correcções meramente aritméticas à matéria tributável nos seguintes termos:
(…)
Dado que o contribuinte é uma entidade não residente sem estabelecimento estável e obteve rendimentos previstos no artigo 10.º do Código do IRS (Mais valias), iremos proceder à determinação da matéria colectável, conforme dispõe o n.º 2 do artigo 16.º e artigo 51.º, ambos do CIRC.
O prédio em causa proveio do artigo matricial n.º 3668 e foi construído pelo contribuinte, o qual obteve licença de utilização em 2008/06/23, pelo que não existindo outros elementos disponíveis, o valor de aquisição corresponde ao valor patrimonial inscrito na matriz, de acordo com o n.º 3 do artigo 46.º do CIRS, ou seja, € 418.040,00.
O valor de realização foi de € 1.925.000,00 (...).Assim sendo, a mais valia obtida no exercício de 2008, determinada no disposto nos artigos 43.º, 44.º e 46°, todos do CIRS, foi de € 1.506.960,00 conforme a seguir se demonstra: (…)
- cfr. fls. 306 do apenso.
9.
A notificação do relatório foi efectuada através de afixação na porta do domicílio fiscal de B…………, LLC, na Rua ………, n.º … - ……, em Agualva - cfr. fls. 319 do apenso.
10.
Consequentemente, foi emitida a liquidação de IRC n.º 2010.8310005547, relativa ao exercício de 2008, no valor de € 376.740,00 - acto impugnado - cfr. fls. 332 dos autos.
11.
No dia 14 de Dezembro de 2010, foi instaurado contra B…………, LLC, o processo de execução fiscal n.º 3557-2010/01170988 - cfr. fls. 278 do apenso.
12.
Em 9 de Fevereiro de 2012, A………… foi citado para o processo de execução fiscal n.º 3557-2010/01170988 - cfr. fls. 284-286 do apenso.
13.
No dia 20 de Março de 2012, A………… deduziu Reclamação Graciosa contra a liquidação de IRC n.º 2010.8310005547 - cfr. fls. 2 do apenso.
14.
Em 30 de Novembro de 2012, no âmbito do procedimento de Reclamação Graciosa, foi elaborada a Informação de fls. 358 e seguintes do apenso, que aqui se dá por integralmente reproduzida e que, no que ora interessa, tem o seguinte teor:
(…)
Dos elementos apresentados como prova documental
(…)
40 - Quanto aos factos alegados, cumpre-nos informar que (...) V Junta diversas facturas que diz serem referentes à aquisição dos materiais necessários à aquisição dos materiais necessários à edificação da moradia ora em análise. VI Porém as facturas apresentadas não cumprem os requisitos previstos no artigo 36.º do Código do IVA, ou seja, as formalidades das facturas e documentos equivalentes.
41 - Para que os documentos apresentados em sede de Reclamação Graciosa possam fazer fé, devem também cumprir as normas evidenciadas no Código do IRC.
(...)
43 - “As sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, as cooperativas, as empresas públicas e as demais entidades que exerçam, a título principal, uma actividade comercial, industrial ou agrícola, com sede ou direcção efectiva em território português, bem como as entidades que, embora não tendo sede ou direcção efectiva naquele território, aí possuam estabelecimento estável, são obrigadas a dispor de contabilidade organizada nos termos da lei que, além dos requisitos indicados no nº 3 do artigo 17.º, permita o controlo do lucro tributável.
44 - Apesar do referido anteriormente se aplicar às entidades residentes, as entidades não residentes que não possuam estabelecimento estável devem nomear representante para as representar perante a Administração Fiscal quanto às suas obrigações referentes a IRC (artigo 126.º do CIRC).
45 - Salientamos o facto de que, apesar do Código do IRC considerar que existem determinados gastos que podem ser considerados indispensáveis à obtenção dos rendimentos, estes podem ou não ser contabilizados pelos sujeitos passivos.
46 - Uma faculdade que o legislador dá às sociedades, se o Reclamante não contabilizou os seus gastos foi porque assim o entendeu.
(…)
15.
No dia 30 de Novembro de 2012, o Director de Finanças Adjunto de Lisboa exarou, naquela Informação, o seguinte despacho (acto impugnado): “Concordo, pelo que convolo em definitivo o projecto de decisão e, com os fundamentos constantes daquele, bem como da presente informação e respectivo parecer, indefiro o pedido” - cfr. fls. 357 do apenso.
II-B. FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provou que:
A.
B…………, LLC, tenha requerido ao banco Millennium BCP um empréstimo para a construção das obras tituladas pelo alvará de obras de alterações n.º 3/2008, no valor de € 600.000.
Nada mais se levou ao probatório.

Há agora que conhecer do recurso que nos vem dirigido.

Como bem refere a recorrente nas suas alegações, a questão a decidir no presente recurso passa por saber se, tendo o Sr. Juiz “a quo” anulado o acto de indeferimento da reclamação graciosa, por falta de fundamentação do mesmo, deveria ter de seguida conhecido os vícios imputados ao próprio acto tributário, objecto da reclamação graciosa, ou se a tal não estava obrigado.

Esta questão já não é nova e tem tido sempre a mesma resposta por parte deste Supremo Tribunal.

Tem-se afirmado e reafirmado que “I - A impugnação judicial de indeferimento de reclamação graciosa tem por objecto imediato a decisão da reclamação e por objecto mediato os vícios imputados ao acto de liquidação.

II - Anulado o indeferimento da reclamação por vício procedimental desta, cabe ao tribunal conhecer dos restantes vícios imputados ao acto tributário, uma vez que este é competente para conhecer em tal impugnação, quer do indeferimento da reclamação, quer dos vícios imputados ao acto tributário.”, cfr., entre outros, o acórdão datado de 18/06/2014, recurso n.º 01942/13.

Neste acórdão, apelando-se a anteriores decisões sobre a questão, escreveu-se, a propósito da verificação de um vício de violação do direito de audição:

Não discordando a AT do sentido da decisão do tribunal a quo sobre a ilegalidade cometida com a preterição do direito de audição prévia, pretende que existe um erro de julgamento na sentença recorrida, porque se impunha ao julgador conhecer das restantes ilegalidades assacadas ao acto de liquidação.

Ou dito de outro modo, além de o tribunal ter concluído pela existência de um vício de forma no tocante à decisão da reclamação graciosa, também se lhe impunha que tivesse conhecido dos vícios de violação de lei próprios da liquidação para evitar, no dizer da AT, que a AT tenha que praticar novo acto que poderá manter ou alterar o sentido decisório, após sanação do vício formal que o Tribunal julgou ocorrer, levando novamente os impugnantes a deduzir nova impugnação judicial com os fundamentos anteriormente invocados ou até com novos fundamentos.

(…)

E depois de se ter conhecido da procedência do vício formal respeitante à decisão da reclamação graciosa, ainda se escreveu: “Face ao exposto, procedendo o vício de forma no procedimento da reclamação graciosa, por falta de audição prévia, e não se mostrando aplicável o princípio do aproveitamento do acto, a decisão de indeferimento da reclamação deve ser anulada.

Demonstrada a procedência do vício decorrente da falta de audição prévia, queda prejudicado o conhecimento dos demais vícios suscitados (nos termos do n.º 2 do artigo 660.° do C.P.C. ex vi alínea e) do artigo 2.º do CPPT”.

Esta questão colocada na sentença recorrida já não é nova e tem merecido por parte deste Supremo Tribunal uma resposta uniforme no sentido de dever ser respeitado o disposto no artigo 124º do CPPT na ordem do conhecimento dos vícios invocados pelos impugnantes e pelo Ministério Público, dando-se prioridade sempre àqueles que tutelem de forma mais eficaz e mais estável os interesses ofendidos – que impeçam a renovação do acto, cfr. por todos o acórdão datado de 18/12/2013, recurso n.º 0154/12.

Mas isto será assim, sempre que a concreta situação dos autos não fique abrangida pelo disposto no n.º 2, al. b) do artigo 124º do CPPT.

Isto é, quando não haja vícios geradores de nulidade ou vícios que conduzam à declaração de inexistência do acto, cfr. artigo 124º, n.º 1, 1ª parte e n.º 2, al. a), os vícios geradores de anulabilidade devem ser conhecidos pela ordem indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público ou, caso não se esteja perante qualquer uma destas situações, devem os vícios ser conhecidos pela ordem que determine mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos.

Portanto, sempre que o impugnante estabeleça uma ordem de precedência do conhecimento dos vícios geradores de anulabilidade é essa ordem que deve ser seguida pelo juiz, não lhe sendo permitido alterá-la, assim como não lhe é permitido alterar a ordem do conhecimento dos vícios geradores de nulidade ou de inexistência, que se encontra legalmente estabelecida.

Voltando agora ao caso concreto, e perante o julgamento que se fez na sentença recorrida sobre a ordem de precedência do conhecimento dos vícios geradores de mera anulabilidade [que aliás a recorrente AT não põe em causa, limita-se a invocar o erro de julgamento por não terem sido conhecidos os vícios de violação de lei da própria liquidação], não se vê que tenha sido desrespeitado o regime legal próprio estabelecido no artigo 124º.

Acontece, porém, que a questão concreta que aqui se coloca neste recurso não se prende com o cumprimento do disposto neste artigo 124º, trata-se de uma questão diferente, que passa por saber se, anulada a decisão da reclamação graciosa por vício de forma, deve ainda assim o juiz conhecer dos vícios de violação de lei imputados à respectiva liquidação.

E, no sentido de que esse conhecimento deve ser efectuado, já este Supremo Tribunal se pronunciou, entre outros, no acórdão datado de 16/11/2011, recurso n.º 0723/11.

“...o processo de impugnação judicial instaurado na sequência e por causa de indeferimento expresso de uma reclamação graciosa tem por objecto imediato esse mesmo indeferimento e por objecto mediato o acto de liquidação cuja anulação é visada a final.

Sobre esta mesma questão escreveu-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 16.06.2004- Processo nº 01877/03:

“Ora, a impugnante invocou, na impugnação judicial seguinte à reclamação, vícios ou ilegalidades tanto do acto tributário de liquidação como do próprio procedimento da reclamação graciosa.

Sendo que a sentença, como se referiu, anulou aquele por vício deste: preterição do direito de audição.

Pelo que há que definir o objecto da impugnação judicial do indeferimento da reclamação: se a própria liquidação, se a decisão de indeferimento da reclamação, se ambas.

Segundo dispõe o artº. 68°, n.º 1 do CPPT, a reclamação "visa a anulação total ou parcial dos actos tributários" e – artº. 70°, nº 1 -"pode ser deduzida com os mesmos fundamentos previstos para a impugnação judicial".

A interligação entre os dois processos é tal que o n.º 2 daquele primeiro normativo proíbe a reclamação "quando tiver sido apresentada impugnação judicial com o mesmo fundamento".

O que está em sintonia com o disposto no art. 111°, n.ºs 3 e 4, donde "resulta uma preferência absoluta do processo judicial sobre o processo administrativo de impugnação de um mesmo acto tributário, impedindo-se que seja apreciada, por via administrativa, a legalidade de um acto tributário que seja objecto de impugnação judicial” - cfr. CPPT, cit., pág. 342, nota 11.

Assim, do indeferimento da reclamação, sem dúvida que emerge a manutenção do acto tributário de liquidação.

Todavia, também a própria decisão de indeferimento está em causa, pois dela cabe impugnação judicial, nos termos expostos.

Propendemos, até, ao entendimento de que esta constitui o seu objecto imediato e a liquidação o seu objecto mediato - cfr. o Ac. deste STA, de 07/06/2000 rec. 21.556.

Todavia, tal diferenciação não tem relevo uma vez que, assim sendo, os dois integram o conhecimento do tribunal: o acórdão do STA de 06/11/1996 rec. 20.519, seguido pelo aresto daquela mesma data proferido no recurso 24.803, considera objecto imediato da impugnação o acto de liquidação mas logo acrescenta que aí se conhece tanto dos aspectos atinentes aos vícios próprios do indeferimento da reclamação como das ilegalidades imputadas ao acto tributário que aquele considerou não existirem.

Como ali se refere, ainda que a decisão da reclamação não constitua um acto tributário "stricto sensu", "não estava o legislador impedido de o fazer equivaler a um acto tributário para efeitos de escolha do respectivo processo judicial, desde que esse meio processual se revelasse como sendo o mais funcionalmente adequado à defesa do direito em causa".” (Em sentido idêntico v. também o recente acórdão deste Supremo Tribunal e Secção, de 12.10.2011, proferido no Processo nº 0463/11).

Daqui resulta então que, deduzida impugnação judicial do indeferimento de uma reclamação graciosa, das duas uma:

a) ou o tribunal confirma o indeferimento, mantendo-se o acto tributário impugnado;

b) ou o tribunal anula esse indeferimento, nomeadamente por vício procedimental; neste caso, o tribunal tem de apreciar os vícios imputados ao acto de liquidação, uma vez que a impugnação tem por objecto, tanto a decisão da reclamação, como os vícios do próprio acto de liquidação.

E não colhe aqui o argumento no sentido de que com a anulação da decisão da reclamação graciosa fica prejudicado o julgamento da liquidação impugnada e ainda que o julgamento desta, antes da decisão da reclamação graciosa, constituiria a prática de um acto inútil que é proibido por lei. Esta conclusão estaria correcta se a impugnação do indeferimento fosse autónoma da do acto de liquidação. Então, anulado o indeferimento, a Administração Tributária poderia/deveria praticar novo acto que poderia manter ou alterar o acto de liquidação.

No presente caso, o legislador entendeu que a impugnação deveria abranger, quer a reclamação, quer o acto de liquidação, pelo que a Administração Tributária não tem de praticar novo acto, já que o tribunal está obrigado a conhecer dos vícios imputados ao acto de liquidação na impugnação do indeferimento da reclamação.

E bem se compreende esta opção do legislador pois que, numa situação como a dos autos, a Administração Tributária poderia indeferir novamente a reclamação, após sanação do vício formal, obrigando novamente o contribuinte a impugnar o acto de liquidação com os fundamentos anteriormente invocados. Assim, melhor é que o tribunal conheça logo dos vícios imputados ao acto tributário na impugnação do indeferimento da reclamação.

Importaria então conhecer da verificação dos fundamentos para a anulação do indeferimento da reclamação.

Acontece, porém, que a recorrente Fazenda Pública, em nenhuma das suas conclusões coloca em causa a decisão recorrida no que se refere à anulação da reclamação.

Assim, temos de dar como assente a anulação da reclamação.

E, deste modo, e pelo que ficou dito, deverão os autos baixar ao tribunal recorrido para apreciação dos vícios imputados ao acto tributário, recorrendo-se à produção de prova e à fixação dos factos relevantes para essa decisão”.

No caso concreto de que agora tratamos também se surpreende que a decisão proferida na reclamação graciosa e que foi objecto de impugnação nestes autos foi anulada por vício procedimental, por vício de forma consubstanciado na falta de fundamentação de indeferimento da reclamação graciosa “…que deverá ser substituída por outra que aprecie a prova documental apresentada…”.

Como da própria decisão recorrida resulta, os vícios invocados pela impugnante não se reconduziram apenas a vícios dirigidos à decisão da reclamação graciosa “per se”, antes se reconduziram a vícios próprios do acto tributário que a decisão da reclamação graciosa apreciou.

Na verdade, o impugnante alega, em síntese (e tal como consta da sentença recorrida):

“…que a decisão da Reclamação não se encontra devidamente fundamentada (artigos 5.º a 11.º e 55.º a 66.º da Petição Inicial) e viola os artigos 77.º e 78.º da Lei Geral Tributária (artigos 67.º a 76.º); que não foi notificado da acção inspectiva nem da liquidação (artigo 14.º a 17.º); que foi preterido o seu direito de audição prévia (artigos 18.º a 30.º); que a liquidação padece de erros nos pressupostos (artigos 32.º a 40.°); que as facturas desconsideradas reúnem os requisitos legais (artigos 42.º a 54.º); que a citação é nula (artigos 77.º a 86.º) e que é parte ilegítima na execução (artigos 87.º a 121.º).”, ou seja, invoca diversas ilegalidades que não se prendem exclusivamente com a decisão da reclamação graciosa, antes afectando o acto tributário em crise.

E, assim sendo, mais não restava ao Sr. Juiz do que conhecer, também, dessas ilegalidades, o que não fez, impondo-se-lhe agora que o faça.

Podemos, pois, concluir que assiste razão à recorrente no presente recurso.

Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso e ordena-se a baixa dos autos ao tribunal recorrido para conhecimento dos vícios imputados ao acto tributário de liquidação na presente impugnação.

Custas pelo recorrido, com dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

D.n.

Lisboa, 12 de Outubro de 2016. – Aragão Seia (relator) – Casimiro GonçalvesFrancisco Rothes.