Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:046/15.4BEALM 01366/16
Data do Acordão:11/07/2018
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANA PAULA LOBO
Descritores:REGIÃO AUTÓNOMA
LIMITES
PODER-DEVER
Sumário:I - As Regiões Autónomas são pessoas colectivas territoriais, dotadas de personalidade jurídica de direito público, com autonomia financeira, e titulares de poder tributário próprio, nos termos da lei, com competência para adaptar o sistema fiscal nacional às especificidades regionais, nos termos de lei-quadro da Assembleia da República -[artigo 227.º, n.º 1, alínea i), da Constituição, artigo 5.º, n.º 1 - “autonomia fiscal”- Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei n.º 13/91, de 5 de Junho.
II - As Regiões Autónomas podem criar impostos vigentes apenas para a Região, definido as respectivas incidência, taxa, liquidação, cobrança, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes. Tais impostos terão que incidir sobre matéria não objecto da incidência prevista para qualquer dos impostos de âmbito nacional, caducando em caso de, posteriormente, serem criados outros semelhantes de âmbito nacional.
III - O poder tributário próprio das Regiões Autónomas tem por finalidade adaptar do sistema fiscal nacional às especificidades regionais, e as Assembleias Legislativas têm também competência para lançar adicionais, até ao limite de 10% sobre a colecta dos impostos em vigor nas Regiões Autónomas, sem disporem, contudo, de competência para retirarem benefícios fiscais concedidos pelo governo Central com autorização legislativa a nível nacional.
IV - A criação, revogação ou derrogação de benefícios fiscais obedece ao princípio da legalidade fiscal pelo que em face do artigo 103.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa a sua criação, e consequentemente, também a sua revogação ou derrogação, estão, também, sujeitas à reserva de lei formal.
Nº Convencional:JSTA000P23808
Nº do Documento:SA220181107046/15
Data de Entrada:12/02/2016
Recorrente:A...., LDA
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Aditamento:
Texto Integral:
RECURSO JURISDICIONAL
DECISÃO RECORRIDA - Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada
. 28 de Junho de 2016.


Julgou improcedente a impugnação.

Acordam nesta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:


A………...……., LD.ª, no processo de impugnação judicial n.º 46/15.4BEALM que deduziu na sequência do despacho de indeferimento proferido, por delegação, pela Chefe de Divisão de Gestão e Assistência Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, no âmbito do processo de reclamação graciosa n.º 2224201404003292, relativo ao ato de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) do exercício de 2013, veio interpôr o presente recurso da sentença supra referida, tendo, para esse efeito formulado, a final da sua alegação, as seguintes conclusões:

1. A douta sentença recorrida julgou totalmente improcedente a impugnação judicial deduzida na sequência do despacho de indeferimento proferido, por delegação, pela Chefe de Divisão de Gestão e Assistência Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, a Exma. Senhora Dr.ª B………., no âmbito do processo de reclamação graciosa n.º 2224201404003292, relativo ao ato de autoliquidação de IRC do exercício de 2013;

2. A sentença recorrida padece de vício de nulidade, por omissão de pronúncia [cf. artigo 125.º, n.º 1, do CPPT e artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, aplicável ex vi artigo 2.º do CPPT], na medida em que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a taxa de justiça devida pelo impulso processual em apreço, como requerido pela Recorrente mediante requerimento apresentado em 13.04.2015;

3. Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento de direito na apreciação e aplicação do princípio da legalidade fiscal, no que concerne ao Despacho n.º 46/2010, de 18.08.2010, da Secretaria Regional do Plano e Finanças;

4. O Tribunal a quo considerou que o aludido Despacho não é desconforme com a CRP, porquanto o regime da derrama regional também o não é, acrescentando, neste ponto, que não há tributação apenas pelo Despacho;

5. Ora, embora não haja tributação em sede derrama regional apenas por meio do Despacho n.º 46/2010, este Despacho introduziu uma disciplina inovatória em sede de benefícios fiscais aplicáveis à derrama regional, a qual fundamentou o indeferimento da reclamação graciosa;

6. Com efeito, o Despacho sob análise prescreve que a derrama regional não é aplicável às entidades a operar na ZFM que beneficiem de um dos regimes de auxílios de Estado previstos no EBF;
7. Ora, a criação, revogação ou derrogação de benefícios fiscais obedece ao princípio da legalidade fiscal [cf. artigo 165.º, n.º 1, alínea i), artigo 103.º, n.º 2, ambos da CRP, artigo 8.º, n.º 1, da LGT];

8. Tem entendido a doutrina e a jurisprudência que o princípio da legalidade assume duas dimensões fundamentais: a primeira delas é a consagração do princípio da reserva de lei formal (que exige que a disciplina e os elementos essenciais dos impostos constem de diploma legislativo) e a segunda é o princípio da tipicidade dos impostos (que impõe que toda a disciplina conste de diploma legislativo (cf. acórdão n.º 85/2014 do Tribunal Constitucional);

9. Embora os benefícios fiscais não se incluam nos elementos essenciais do imposto, é inequívoco, em face da literalidade do artigo 103.º, n.º 2, da CRP, que a sua criação, e por decorrência também a sua revogação ou derrogação, estão também sujeitas à reserva de lei formal;

10. E tal exigência encontra, desde logo, justificação no facto de os benefícios fiscais introduzirem desvios ao princípio da legalidade;

11. Tendo em consideração que o Despacho n.º 46/2010 da Secretaria Regional do Plano e Finanças cria e disciplina um benefício fiscal em sede de derrama regional, o qual está sujeito à reserva de lei formal, é manifesta a sua desconformidade com princípio constitucional da legalidade tributária de reserva de lei formal, o que desde já invoca para os devidos efeitos, não podendo, por esta razão, manter-se o decidido pelo Tribunal a quo;
12. O Tribunal a quo incorreu outrossim em erro de julgamento de direito no que concerne à aplicação do aditamento constante do artigo 16.º, n.º 2, do Decreto Legislativo Regional n.º 2/2011/M, de 10 de janeiro, ao ano de 2013;

13. Com efeito, parece ter entendido o Tribunal recorrido que o intérprete deve descurar a letra da lei e substituindo-se ao legislador "aditar", ele próprio, um n.º 4 ao artigo 6.º do Decreto Legislativo Regional n.º 14/2010/M, de 5 de agosto, criando, por via da interpretação da lei, um benefício fiscal em sede de derrama regional, cuja vigência seria prorrogada pelos sequentes Orçamentos da Região Autónoma da Madeira;

14. No entanto, não pode este entendimento proceder, porquanto resulta de uma incorreta aplicação das regras de interpretação da lei;

15. Em face das regras interpretativas da lei (cf. artigo 11.º da LGT e artigo 9.º do CC) na interpretação da lei deve o intérprete, em primeira linha, observar o elemento literal (i.e., o texto normativo) e só depois os chamados elementos lógicos, quais sejam, o elemento racional ou teleológico, o elemento histórico e o elemento sistemático;

16. O elemento literal é, pois, o ponto de partida da interpretação assumindo, de acordo com a doutrina e jurisprudências, (i) uma função negativa ou de exclusão, que consiste em eliminar os sentidos que não tenham apoio na letra da lei; e (ii) uma função positiva ou de seleção, que consiste em favorecer o sentido técnico-jurídico;

17. De facto, a letra da lei é um elemento irremovível da interpretação, não podendo em circunstância alguma, quer seja por lapso ou incúria do legislador, ser afastado, como pretende - erradamente - o Tribunal recorrido;
18. Deste modo, é evidente que o entendimento do Tribunal a quo não se coaduna com os sobreditos princípios subjacentes à boa interpretação das leis, porquanto faz tábua rasa do elemento literal;

19. Ora, verificando-se um lapso de escrita do legislador, tal lapso deveria ter sido objeto de retificação expressa, mediante declaração de retificação (cf. o artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 74/98, de 7 de novembro);

20. Todavia, não o foi, nem a referência contida no Decreto Legislativo Regional n.º 5/2012/M, de 30 de Março, pode ser entendida como tal, como pretende o Tribunal a quo;

21. Parece o Tribunal o quo defender, na verdade, uma interpretação corretiva da lei;

22. Contudo, no caso vertente, tal interpretação não é admissível, porquanto como se viu supra não encontra na letra da lei qualquer suporte;

23. Acresce que não pode o intérprete, por via da interpretação, substituir-se a uma fonte de direito, qual seja, a lei.

24. Deste modo, não pode concordar-se com a conclusão a que se chegou na sentença recorrida, impondo-se a conclusão de que o artigo 16.º, n.º 2, do Decreto Legislativo Regional n.º 2/2011/M, de 10 de janeiro, não alterou o regime da derrama regional, consagrado nos artigos 3.º a 6.º do Decreto Legislativo Regional n.º 14/2010/M, de 5 de Agosto, e por essa razão a sua vigência não foi prorrogada para o ano de 2013, não sendo assim aplicável a sua disciplina in casu;

25. Esta é, com efeito, o entendimento que melhor se coaduna com os princípios constitucionais da legalidade e da confiança e segurança jurídica;

26. Considerou o Tribunal a quo que no caso vertente não se mostra afrontado o princípio da anualidade;

27. Ora, o Orçamento da Região Autónoma da Madeira está sujeito à regra da anualidade (cf. artigo 2.º, n.º 1, da Lei de Enquadramento Orçamental da Região Autónoma da Madeira, aprovada pela Lei n.º 28/92, de 1 de setembro), o que quer dizer que o orçamento deve referir-se a um período temporal de um ano que corresponde ao ano civil, ou seja, o orçamento vigorará do dia 1 de janeiro ao dia 31 de dezembro, findo o qual caducará;

28. No caso sub judice, o benefício fiscal consubstanciado na exclusão do pagamento de derrama regional para as entidades licenciadas a operar na ZFM abrangidas pelos regimes de auxílios de Estado foi introduzido no regime da derrama regional mediante aditamento ao Orçamento Retificativo para 2010 que teve lugar em 2011, ou seja, já após aquele ter caducado;

29. Apesar de os regimes previstos em determinado orçamento poderem ser prorrogados para vigorar em anos sequentes, não podem, no entanto, ser alterados mediante aditamento ao diploma legislativo já caducado;

30. De facto, pretendendo o legislador introduzir a exclusão de derrama regional para as entidades licenciadas a operar na ZFM devê-lo-ia ter feito expressamente na norma de renovação do regime de derrama regional constante dos Orçamentos da Região Autónoma da Madeira para os anos de 2011 e seguintes, e não através de uma alteração legislativa ao Orçamento Retificativo da Região Autónoma da Madeira para o ano de 2010, já após este ter caducado.

31. Pelo que, não pode obviamente concordar-se com o decidido pelo Tribunal a quo;

32. Por fim, não pode a Recorrente manifestamente conformar-se com o decidido pelo Tribunal a quo quanto à não violação do princípio da legalidade fiscal pelo Decreto Legislativo Regional n.º 14/2010/M, na redação conferida pelo Decreto Legislativo Regional n.º 2/2011/M, porquanto não compatibilizou o poder legislativo tributário da Região Autónoma com o poder legislativo da Assembleia da República e do Governo;

33. Considera o Tribunal a quo que a Região Autónoma da Madeira dispõe de poder tributário próprio e, ainda, do poder de adaptar o sistema fiscal nacional às especificidades regionais e que, por essa razão, o regime da derrama regional não é desconforme com a CRP;

34. Neste ponto, impõe-se, em primeiro lugar, esclarecer que em momento algum a Recorrente questionou a existência do poder tributário da Região Autónoma da Madeira, sendo, ademais, assente a existência de tal poder;

35. O que a Recorrente questionou e questiona é a alteração introduzida pelo artigo 16.º, n.º 2 do Decreto Legislativo Regional n.º 2/2011/M, de 10 de janeiro, quando interpretada, como parece defender a administração tributária, no sentido de derrogar tacitamente a isenção de impostos extraordinários prevista no artigo 7.º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 165/86, de 26 de junho;

36. É que, no entender da Recorrente está constitucionalmente vedada a derrogação ou revogação, por Decreto Legislativo Regional, de um benefício fiscal criado por Decreto-Lei autorizado do Governo, o que quer dizer que, o referido benefício não poderá ter-se por derrogado por força da alteração introduzida pelo artigo 16.º, n.º 2 do Decreto Legislativo Regional n.º 2/2011/M, de 10 de janeiro;

37. A CRP reservou à Assembleia da República e ao Governo, mediante autorização legislativa, o poder legislativo para criar impostos e dispor sobre a totalidade da sua disciplina jurídica (cf. artigos 165.º, n.º 1, alínea i), 198.º, n.º 1, alínea b), e artigo 103.º, n.º 2, todos da CRP);

38. A reserva relativa da Assembleia da República para criar impostos inclui a competência para modificar, derrogar ou revogar qualquer aspeto da sua disciplina jurídica, designadamente a incidência subjetiva e objetiva, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes;

39. Pelo que, é, pois, matéria de reserva relativa da competência da Assembleia da República a revogação ou derrogação, expressa ou tácita, de um benefício fiscal criado por Lei ou por Decreto-Lei autorizado;

40. Assim, sendo um benefício fiscal criado por Lei da Assembleia da República ou por Decreto-Lei autorizado do Governo, como sucede in casu, a competência para a sua revogação ou derrogação está reservada pela CRP a estes órgãos de soberania;

41. Por esta razão, não pode a Assembleia Legislativa Regional derrogar um benefício fiscal criado por Decreto-Lei autorizado do Governo;
42. Este entendimento, contrariamente ao que perpassa da sentença recorrida, em nada colide com o poder tributário próprio da Região Autónoma da Madeira.

43. A Região Autónoma da Madeira dispõe, de facto, de poder tributário próprio (cf. artigo 227.º, n.º 1, alínea i), da CRP e do artigo 107.º do Estatuto Político e Administrativo da Região Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei n.º 13/91, de 5 de junho e artigo 107.º do Estatuto Político e Administrativo da Região Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei n.º 13/91, de 5 de junho);

44. No entanto, o poder tributário das regiões autónomas, no segmento normativo/legislativo, não é absoluto, encontrando-se limitado, no que ora releva, pelas matérias reservadas aos órgãos de soberania;

45. De acordo com o disposto no artigo 227.º, n.º 1, da CRP, as regiões autónomas não podem legislar sobre matéria reservada aos órgãos de soberania;

46. Está, portanto, excluída do âmbito da competência legislativa regional as matérias taxativamente reservadas à competência da Assembleia da República (cf. artigos 161.º, 164.º e 165.º da CRP), salvo autorização conferida por este órgão de soberania quanto a determinadas matérias de reserva relativa (cf. Acórdão n.º 578/2014 do Tribunal Constitucional);

47. Pelo que, o poder tributário próprio não pode sobrepor-se ao poder legislativo tributário da Assembleia da República e do Governo;
48. Dito de outro modo, as regiões autónomas não podem revogar ou derrogar impostos criados por Lei da Assembleia da República ou Decreto-Lei autorizado do governo, nem tão-pouco, no que ora releva, revogar ou derrogar, expressa ou tacitamente, qualquer benefício fiscal criado por estes órgãos de soberania;

49. Assim, se interpretada a alteração introduzida pelo artigo 16.º, n.º 2 do Decreto Legislativo Regional n.º 2/2011/M, de 10 de janeiro, no sentido de derrogar a isenção de impostos extraordinários prevista no artigo 7.º, alínea e) do Decreto-Lei n.º 165/86, de 26 de junho, a mesma será inconstitucional por violação do disposto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea i) e no artigo 227.º, n.º 1, alínea b) ambos da CRP, o que desde já se invoca para os devidos efeitos legais;

50. Em face do exposto, resulta, pois, evidente que o Tribunal a quo não logrou compatibilizar devidamente o disposto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea i), 227.º, n.º 1, alínea b) e alínea i), ambos da CRP, incorrendo, pois, em erro de julgamento de direito;

51. E, nem sequer se invoque, que na situação em apreço se está perante o exercício de um poder / dever de adaptação do sistema fiscal nacional às especificidades regionais;

52. Com efeito, o poder / dever de adaptar o sistema às especificidades regionais, tem em vista corrigir as desigualdades provocadas pela insularidade, e não inclui a revogação tácita, sem mais, de um benefício fiscal criado por Decreto-Lei autorizado do Governo;

53. Tendo presente todo o exposto, não pode a Recorrente conformar-se com a conclusão alcançada pelo Tribunal a quo quanto à não aplicação da isenção de impostos extraordinários prevista no artigo 7.º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 165/86, de 26 de junho;
54. Não obstante, ainda que se entendesse que o aditamento do n.º 4 ao artigo 16.º do Decreto Legislativo Regional n.º 14/2010/M, de 5 de agosto, pelo artigo 16.º, n.º 2, do Decreto Legislativo Regional n.º 2/2011/M, de 10 de janeiro, era aplicável à data a que os factos se reportam, o que apenas a benefício de raciocínio se concebe, sem conceder, sempre se dirá que tal preceito legal tem natureza meramente interpretativa;

55. Nos termos da alínea e) do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 165/86, de 26 de junho, as entidades licenciadas a operar na ZFM estão isentas de impostos extraordinários, o que quer dizer que, sendo a derrama regional um imposto extraordinário todas as entidades licenciadas estariam isentas;

56. Todavia, tendo em vista dissipar eventuais dúvidas quanto à aplicação daquela isenção de impostos extraordinários à derrama regional, o legislador terá optado por prever expressamente no regime da derrama regional a isenção aplicável às entidades que beneficiem dos regimes de auxílio de Estado, consagrados no EBF, embora como supra referido, mercê de incorreta técnica legislativa ou lapso do legislador, tal preceito legal não tenha sido aditado ao regime da derrama regional;

57. No entanto, da circunstância de o legislador ter expressamente consagrado naquele preceito legal aditado as entidades que beneficiem dos regimes de Estado, não poderá concluir-se que pretendeu derrogar tacitamente a isenção prevista no Decreto-Lei para as demais entidades;

58. De facto, caso fosse essa a intenção do legislador, certamente que o teria referido;
59. De acordo com o artigo 7.º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 165/86, de 26 de junho, as entidades instaladas na ZFM beneficiam de isenção de impostos extraordinários sobre os lucros;

60. Atentas as características da derrama regional é, pois, evidente que configura um imposto extraordinários sobre lucros nos termos e para os efeitos daquele preceito legal;

61. Em primeiro lugar, a derrama configura um imposto sobre os lucros;

62. Com efeito, a derrama regional é um imposto que incide sobre parte do lucro tributável sujeito e não isento de IRC, apurado pelos sujeitos passivos com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável na Região Autónoma da Madeira, não se confundindo, no entanto, com o IRC;

63. De facto, apesar de comungar da mesma base da incidência a derrama regional, à semelhança da derrama municipal e da derrama estadual, é um imposto autónomo face ao IRC;

64. Em segundo lugar, a derrama regional é um imposto extraordinário;

65. No âmbito da tipologia dos impostos são considerados impostos extraordinários aqueles: i) cujo objetivo primordial seja a obtenção de receitas para fazer face a necessidades orçamentais extraordinárias; e ii) cuja a vigência seja limitada por determinado período do tempo que, contudo, poderá ser renovável.

66. Ora, a derrama regional reúne as mencionadas caraterísticas, uma vez que foi criado por força da necessidade de receitas fiscais adicionais para fazer face aos prejuízos causados pela tempestade que assolou a ilha da Madeira em 20.02.2010 e tem natureza temporária, não obstante a sua vigência ter sido prorrogada;

67. Em face de todo o exposto, não pode, pois, manter-se a sentença recorrida, devendo o presente recurso ser julgado procedente.


Requereu que seja o presente recurso ser julgado procedente, por provado, com a consequente revogação da sentença recorrida e, nessa medida, julgada procedente a impugnação judicial.

Formulou, ainda o seguinte pedido:
Sendo o valor do recurso superior a € 275.000,00 e verificando-se os pressupostos estabelecidos no n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais, requer-se que sejam os Recorridos dispensados do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

Não foram apresentadas contra-alegações.
O Magistrado do Ministério Público pronunciou-se pela procedência do recurso por entender verificada a alegada nulidade da sentença recorrida, por omissão de pronúncia.

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
1. A sociedade comercial por quotas sob a firma A…………, LDA., por despacho de 08/11/2000, obteve a licença n° 06575, para operar na Zona Franca da Madeira (cfr. doc. junto a fls. 23 do processo instrutor junto aos autos);
2. A sociedade comercial por quotas sob a firma A………, Ld.ª em 07/01/2010 procedeu à alteração da sua sede tendo passado esta para a Av. ………, nº……., ………….., Funchal (cfr. doc. junto a fls. 95 a 96 dos autos);
3. Em 30/12/2011, foi efectuado um Averbamento na Licença identificada no ponto 1, do qual consta o seguinte: “Alteração do regime fiscal sem prejuízo do disposto na Resolução n° 1374/2010, do Conselho de Governo da região Autónoma da Madeira de 10 de Novembro, bem como da aplicação dos demais benefícios fiscais previstos para entidades autorizadas a operar na Zona Franca da Madeira, a sociedade integra, a partir de 1 de Janeiro de 2012, o regime geral de tributação em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas.” (cfr. doc. junto a fls. 28 do processo instrutor junto aos autos);
4. Em 28/04/2014 foi deliberado pela Assembleia Geral Extraordinária foi deliberado alterar a sede social para a ……………, no concelho do Seixal (cfr. doc. junto a fls. 32 e 33 do processo instrutor junto aos autos);
5. Em 02/05/2014 foi registada a alteração da sede da Impugnante para a Avenida ………………..,, …………….. (cfr. doc. junto a fls. 97 dos autos);
6. Em 30/05/2014 a sociedade comercial por quotas sob a firma A………….., LDA., procedeu à entrega da sua declaração Modelo 22 de IRC referente ao exercício de 2013 (cfr. doc. junto a fls. 44 a 51 do processo instrutor junto aos autos);
7. Na declaração identificada no ponto anterior no quadro 3 — Regimes de Tributação dos Rendimentos — indicou estar enquadrada no Regime Geral e Redução de Taxa (cfr. doc. junto a fls. 44 do processo instrutor junto aos autos);
8. A Impugnante declarou, no campo 778 do quadro 7 da declaração identificada no ponto a um Lucro Tributável de € 25.486.263,57 (cfr. doc. junto a fls. 44 a 51 do processo instrutor junto aos autos);
9. A Impugnante inscreveu no quadro 10, campo 373 — “Derrama estadual (art. 87° -A)” — a quantia de € 1.079.313,18 (cfr. doc. junto a fls. 44 a 51 do processo instrutor junto aos autos);
10. Na mesma Declaração de Rendimentos, a Impugnante juntou o Anexo D, respeitante a benefícios fiscais, na qual indicou, no Quadro 06, ser entidade licenciada na Zona Franca da Madeira, desde 01.01.2012 (cfr. doc. junto a fls. 44 a 51 do processo instrutor junto aos autos);
11. A Impugnante deduziu reclamação graciosa do acto de autoliquidação de derrama (cfr. doc. junto a fls. 3 do processo instrutor junto aos autos);
12. Por despacho de 14/11/2014 foi indeferida a reclamação identificada no ponto anterior (cfr. doc. junto a fls. 70 do processo instrutor junto aos autos);

Questões objecto de recurso:
1- Nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
2- violação do princípio da legalidade fiscal pelo Decreto Legislativo Regional n.º 14/2010/M, na redação conferida pelo Decreto Legislativo Regional n.º 2/2011/M


1- Nulidade da sentença por omissão de pronúncia

O primeiro dos fundamentos do recurso é a omissão de pronúncia por a sentença recorrida ter deixado de apreciar a questão de constitucionalidade do artigo 2.° n.º 2 do DL 55/2008, de 26 de Março.
Verifica-se nulidade da sentença com fundamento em omissão de pronúncia quando o Tribunal deixe de se pronunciar sobre uma das questões que lhe foram colocadas pelas partes, com enquadramento no então art.º 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil e 125.º n.º 1 do Código de Processo e Procedimento Tributário.
Em causa estava a ausência de decisão de um requerimento intercalar relativo ao pagamento da taxa de justiça.
Os autos foram remetidos ao tribunal recorrido para suprimento da falta de decisão sobre tal questão que foi decidida e se mostra ultrapassada.
2- violação do princípio da legalidade fiscal pelo Decreto Legislativo Regional n.º 14/2010/M, na redação conferida pelo Decreto Legislativo Regional n.º 2/2011/M

A sentença recorrida considerou que não se verificava qualquer inconstitucionalidade por violação do princípio da legalidade fiscal relativamente ao regime jurídico da derrama constante do Decreto Legislativo Regional n.º 14/2010/M, na redação conferida pelo Decreto Legislativo Regional n.º 2/2011/M.
Seguindo o percurso que desenvolveu, até onde ele nos parece correcto reafirmamos que:
«Começa a Impugnante por alegar que o referido despacho, ao contemplar um benefício fiscal consubstanciado na exclusão de tributação de derrama regional para as entidades licenciadas a operar na Zona Franca da Madeira, abrangidas pelos regimes de auxílios do Estado previstos nos artigos 33°, 35° e 36° do EBF, não se pode entender que exclui ou derroga essa isenção para as entidades não abrangidas pela isenção prevista.

Defende que tal entendimento se encontra ferido do vício de violação de lei por violação, defendendo ainda que o despacho em causa se encontra ferido de inconstitucionalidade orgânica. (…)
Para nos pronunciarmos sobre a constitucionalidade ou não do diploma em causa teremos de nos socorrer do disposto na Constituição da República, nomeadamente no que toca à competência para legislar em matéria tributária.

De facto, desde logo o artigo 103° da CRP estabelece que:

“(...) 2. Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes.

3. Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei".

Assim sendo imperioso se torna indagar a qual, dentro dos órgãos do Estado, cabe a tarefa de legislar em matéria tributária.

Para tanto, e lançando mão do disposto no art. 165°, sob a epígrafe "Reserva relativa de competência legislativa", o seu n° 1, e mais concretamente a sua alínea i) determinam que compete à Assembleia da República, sem prejuízo de autorização ao Governo, a "Criação de impostos e sistema fiscal e regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas"

Significa isto que a Assembleia da República pode autorizar o Governo, mediante uma lei de autorização legislativa, a legislar sobre matéria tributária,
devendo para tanto obedecer aos termos enunciados nos n.ºs 2 a 5 do mesmo artigo 165° da CRP.

Estamos aqui perante uma reserva de lei formal concedida pela CRP à Assembleia da República.

Apesar da consagração de reserva de competência legislativa atribuída, em matéria fiscal, à Assembleia da República, a CRP reconhece às regiões autónomas o exercício de um poder tributário próprio, nos termos da lei, bem como a adaptação do sistema fiscal nacional às especificidades regionais, nos termos de lei-quadro da Assembleia da República, nos termos da alínea i), do n° 1 do art. 227° da CRP.

De facto, este preceito possibilita a cada uma das Assembleias Legislativas Regionais, e passo a citar: "Exercer poder tributário próprio, nos termos da lei, bem como adaptar o sistema fiscal nacional às especificidades regionais, nos termos de lei-quadro da Assembleia da República".

Em consequência, o n° 1 do art.º 232° da CRP, atribui à Assembleia Legislativa da região autónoma, nomeadamente, a competência de "adaptação do sistema fiscal nacional às especificidades da região", nos termos da autonomia legislativa da região autónoma consagrada no respectivo estatuto político-administrativo que não estejam reservadas aos órgãos de soberania.

Importa ainda trazer à colação o disposto no n.º 1 do art. 5.º do Estatuto Político-administrativo da Região Autónoma da Madeira (RAM), estabelecido pela Lei n.º 13/91, de 5 de Julho, (na redacção dada pela Lei n° 130/99, de 21 de Agosto e da Lei n° 12/2000, de 21 de Junho), que determina o seguinte:

"A autonomia política, administrativa, financeira, económica e fiscal da Região Autónoma da Madeira não afecta a integridade da soberania do Estatuto e exerce-se no quadro da Constituição e deste Estatuto".

O art. 134° mesmo diploma (EPA da RAM), estabelece como princípios gerais que:
"As competências tributárias atribuídas aos órgãos de governo próprio da Região exercem-se no respeito pelos limites constitucionais, no quadro deste Estatuto e da lei, tendo em conta:

a) Que a determinação normativa regional da incidência da taxa dos benefícios fiscais e das garantias dos contribuintes, nos termos dos artigos seguintes, será da competência da Assembleia Legislativa Regional mediante decreto legislativo regional:

b) Que o sistema fiscal regional deve adaptar-se às especificidades regionais, quer podendo criar impostos vigentes apenas na Região quer adaptando os impostos de âmbito nacional às especificidades regionais;

c) Que as cobranças tributárias regionais, em princípio, visarão a cobertura das despesas públicas regionais;

d) Que a estruturação do sistema fiscal regional deverá incentivar o investimento na Região e assegurar o seu desenvolvimento económico e social."

Ou seja, este preceito encontra-se em perfeita sintonia quer com a CRP, quer com o art. 5° do mesmo Estatuto.

Deste modo e no que concerne à competência legislativa regional, em matéria fiscal, esta é exercida pela Assembleia Legislativa Regional, nos termos da alínea f) do n.º 1 do art. 37° do Estatuto, da qual dimanam Decretos Legislativos. Ainda de acordo com este preceito a Assembleia Legislativa Regional tem o poder de criar e regular impostos, vigentes apenas na Região, definindo a respectiva incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes, nos termos da alínea a) do n.º 2, do art. 135° do Estatuto.

Estabelecido assim o quadro constitucional, cumpre verificar o que aconteceu com o diploma em análise.

A Assembleia Legislativa Regional da RAM criou a derrama regional, nos termos dos artigos 3° a 6° do Decreto Legislativo Regional n.º 14/2010/M, de 5 de agosto, ao abrigo dos preceitos supra citados, o qual produziu efeitos a partir de 01.07.2010, data de entrada em vigor da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho, nos termos do n° 2 do art. 17° do supra identificado Decreto Legislativo Regional n° 14/2010/M, de 5 de Agosto.

Do cotejo do regime derrama regional estabelecido no art..º 4.° a 6.° do Decreto Legislativo Regional n.º 14/2010/M, de 5 de agosto, com o regime de derrama estadual consagrado no art.º 2.° da Lei n° 12-A/2010, de 30 de Junho, que aditou no Código de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas os artigos 87°-A, 104°-A e 105°-A, (os quais entraram em vigor em 01.07.2010, nos termos do art. 20° da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho), verifica-se que aquele regime, na sua origem, é o decalque perfeito do regime da derrama estadual (aprovado pela Assembleia da República).

Tal como aconteceu com a derrama estadual, prevista no art. 87°-A do CIRC, o pagamento da derrama regional passou a ser devido para o período de 2010, nos termos dos n.º 1 e 2 do art. 6° e do n. 2 do art. 17°, todos do Decreto Legislativo Regional n.º 14/2010/M».
Concluiu a sentença recorrida, acertadamente, «nenhuma violação ocorre do disposto na CRP uma vez que esta Derrama regional mais não é do que uma "cópia" da derrama estadual criada pela Assembleia da República e que foi adaptada pela Assembleia Regional.».
Em 2011, o n.º 2 do art. 16. do Decreto Legislativo Regional n.º 2/2011/M, de 10 de Janeiro, aditou o n.º 4 ao art. 6.° do Decreto Legislativo Regional n.º 14/2010/M, de 5 de Agosto, que estabeleceu o seguinte:
"Excluem-se da aplicação da presente norma as entidades licenciadas a operar na Zona Franca da Madeira, que beneficiem quer do regime de isenção do artigo 33.º do Estatuto dos benefícios Fiscais, quer dos regimes de redução de taxa de IRC previstos nos artigos 35.º e 36.º do mesmo diploma".
O n° 1 do art. 17° do Decreto Legislativo Regional n.º 42/2012/M, de 31 de Dezembro, diploma que aprovou o Orçamento da Região Autónoma da Madeira para 2013 estabeleceu que:

«Ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 37° do Estatuto político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei n.º 13/91, de 5 de Junho, e revisto pela Lei n° 130/99, de 21 de Agosto, com as alterações previstas na Lei n.º 12/2000, de 21 de Junho, conjugados com o n.º 1 do artigo 56° da Lei Orgânica n° 1/2010, de 29 de Março, e dos artigos 87°-A e 105-A do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-8/88, de 30 de Novembro, com as adaptações previstas nos artigos 4°, 5° e 6° do Decreto Legislativo Regional n° 2/2011/M, de 10 de Janeiro e n° 2 do artigo 15° do Decreto Legislativo Regional n° 5/2012/M, de 30 de Março, mantem-se em vigor para a Região Autónoma da Madeira a derrama regional». Deste modo, dúvidas não há de que estava em vigor em 2013 o regime de derrama regional.
Todavia, como indicamos, o n.º 2 do art. 16.° do Decreto Legislativo Regional n.º 2/2011/M, de 10 de Janeiro, aditou o n.º 4 ao art. 6.° do Decreto Legislativo Regional n.º 14/2010/M, de 5 de Agosto, que foi mantido em vigor em 2012 e 2013, estabeleceu que se:
"Excluem-se da aplicação da presente norma as entidades licenciadas a operar na Zona Franca da Madeira, que beneficiem quer do regime de isenção do artigo 33.º do Estatuto dos benefícios Fiscais, quer dos regimes de redução de taxa de IRC previstos nos artigos 35.º e 36.º do mesmo diploma".
Esta norma, no local em que foi inserida, sem que tenha havido qualquer rectificação que permita concluir que se refere ao art.º 6.º e não ao art.º 16, como refere do diploma tem que entender-se referida a matéria de indemnizações compensatórias, aqui não em questão.
Mas, mesmo que assim não fosse e este dispositivo legal fosse o n.º 4 do art.º 6.º do Decreto Legislativo Regional n.º 14/2010/M, de 5 de Agosto, como pretende a sentença recorrida, não poderia ele fundamentar a improcedência da impugnação porque carecia a Assembleia Regional da Madeira de competência para retirar um benefício que fora concedido pelo legislador nacional.
O poder tributário da região autónoma permite-lhe criar impostos regionais e adaptar às especificidades da região a tributação nacional com vista a fomentar o desenvolvimento regional, mas não lhe permite revogar leis da República no sentido de retirar benefícios fiscais que são concedidos por lei nacional aos cidadãos, mesmo aos que tenham sede na Região Autónoma da Madeira. Dentro da Região é possível conceder benefícios fiscais de que os nacionais não residentes na Região não podem beneficiar, mas não cabe na competência legislativa da Região Autónoma retirar benefícios fiscais concedidos pela lei da República, excepto se para tal expressamente autorizada por diploma da Assembleia da República, o que aqui se não verifica.
As Regiões Autónomas são pessoas colectivas territoriais, dotadas de personalidade jurídica de direito público, com autonomia financeira, e são titulares da prerrogativa de exercer poder tributário próprio, nos termos da lei, bem como de adaptar o sistema fiscal nacional às especificidades regionais, nos termos de lei-quadro da Assembleia da República -[artigo 227.º, n.º 1, alínea i), da Constituição, artigo 5.º, n.º 1 - “autonomia fiscal”- Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei n.º 13/91, de 5 de Junho.
As Regiões Autónomas podem criar impostos vigentes apenas para a Região, definido as respectivas incidência, taxa, liquidação, cobrança, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes. Mas tais impostos terão que incidir sobre matéria não objecto da incidência prevista para qualquer dos impostos de âmbito nacional, caducando mesmo no caso de serem posteriormente criados outros semelhantes de âmbito nacional. O poder tributário próprio das Regiões Autónomas tem por finalidade adaptar do sistema fiscal nacional às especificidades regionais, e as Assembleias Legislativas têm também competência para lançar adicionais, até ao limite de 10% sobre a colecta dos impostos em vigor nas Regiões Autónomas, sem disporem, contudo, de competência para retirarem benefícios fiscais concedidos pelo governo Central com autorização legislativa a nível nacional.
Para além desta racionalidade do sistema fiscal, na sua veste de adaptação à especificidade de cada região, existe uma barreira de ordem constitucional - artigo 165.º, n.º 1, alínea i), artigo 103.º, n.º 2, ambos da Constituição da República Portuguesa - que estabelece que só assim pode ser na medida em que não é conferido pela Constituição da República Portuguesa qualquer poder às Regiões Autónomas de derrogar um benefício fiscal criado por Decreto-Lei autorizado do Governo.
A criação, revogação ou derrogação de benefícios fiscais obedece ao princípio da legalidade fiscal pelo que em face do artigo 103.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa a sua criação, e consequentemente, também a sua revogação ou derrogação, estão, também, sujeitas à reserva de lei formal.
Como pode ler-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 165/86, de 26 de Junho,
«A especial situação geográfica da Madeira e as características bem específicas da sua economia levaram o Governo a autorizar, nos termos do Decreto-Lei n.º 500/80, de 20 de Outubro, a criação de uma zona franca na Região Autónoma da Madeira.
O objectivo fulcral que se teve em vista foi o de promover e captar novos investimentos, voltados para o desenvolvimento económico e social da Região, tendo por isso o Governo deliberado, nos termos do Decreto Regulamentar n.º 53/82, de 23 de Agosto, que na referida zona franca poderão ser autorizadas todas as actividades de natureza industrial, comercial ou financeira.
Dentro desta linha de orientação, o Governo propôs e obteve da Assembleia da República autorização legislativa para rever os benefícios fiscais a conceder às empresas que se instalem nas zonas francas já criadas, o que ora se faz, em conjugação com outros benefícios cuja atribuição visa iguais propósitos.
Na concepção do esquema de incentivos agora consagrado teve-se já em consagração o atraso económico de ajuda à instalação de empresas definido em termos compatíveis com o disposto no n.º 3 do artigo 92º do Tratado de Roma e vocacionado para o desenvolvimento regional e para a melhoria das condições de concorrência por parte das empresas que se instalem na zona franca da Madeira.»
O art.º 1.º deste diploma é muito claro ao estabelecer como objectivos que «Para promoção e captação de investimentos na zona franca da Madeira poderão ser concedidos benefícios fiscais e financeiros de âmbito regional, com os seguintes objectivos:
a) Promover a instalação de novos projectos de investimento;
b) Atrair e fixar factores de produção;
c) Apoiar o arranque e a estabilização das empresas instaladas».
O art.º 7.º deste diploma, regulando expressamente os benefícios fiscais de que gozarão as empresas já instaladas na Zona Franca da Madeira, na alínea e) estabeleceu que estas beneficiarão de Isenção de impostos extraordinários sobre lucros e despesas. Assim, o n.º 2 do art. 16.° do Decreto Legislativo Regional n.º 2/2011/M, de 10 de Janeiro, aditou o n.º 4 ao art. 6.° do Decreto Legislativo Regional n.º 14/2010/M, de 5 de Agosto, ao estabelecer que se:
"Excluem-se da aplicação da presente norma as entidades licenciadas a operar na Zona Franca da Madeira, que beneficiem quer do regime de isenção do artigo 33.º do Estatuto dos benefícios Fiscais, quer dos regimes de redução de taxa de IRC previstos nos artigos 35.º e 36.º do mesmo diploma" pretendeu introduzir uma restrição nos beneficiários da isenção de impostos extraordinários, em derrogação de lei da República sem que estivesse mandatada para esse efeito pelo que o referido normativo padece de inconstitucionalidade formal orgânica por afrontar o disposto no art.º 103.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, que impede a respectiva aplicação à recorrente.
A sentença recorrida fez, pois, uma errada interpretação dos limites do poder da Região Autónoma em sede de derrogação de benefícios fiscais concedidos por lei nacional a determinar a sua revogação.
Mostra-se prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas nos autos para além da dispensa do remanescente.


Dispensa de remanescente de taxa de justiça

Foi requerida a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça devida, em conformidade com o disposto no nº 7 do artigo 6º do RCP, por se tratar de causas de valor superior 275.000,00€. A procedência de tal pedido exige que a especificidade da situação o justifique atendendo, designadamente, à complexidade da causa e à conduta processual das partes e que o respectivo montante não se apresente manifestamente desproporcionado em face do concreto serviço prestado, para obstar à violação dos princípios constitucionais do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva, da proporcionalidade e da necessidade de uma taxa de justiça desprovida de limite máximo.
A complexidade da causa é manifesta, tratando-se da compatibilização entre os poderes da República e os poderes conferidos às Regiões Autónomas sem respaldo em anterior ponderação jurisprudencial das questões aqui resolvidas. Tendo em conta que o valor do remanescente ascenderá a 5049,00€, consideramos que, no caso concreto, tal montante não se apresente manifestamente desproporcionado em face do concreto serviço prestado, pelo que indeferimos o pedido de dispensa de remanescente formulado pela recorrente.



Deliberação
Termos em que acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida e, em substituição, julgar procedente a impugnação judicial, e indeferir o pedido de dispensa do remanescente da taxa de justiça.

Custas pela recorrida.

(Processado e revisto pela relatora com recurso a meios informáticos (art.º 131º nº 5 do Código de Processo Civil, ex vi artº 2º Código de Procedimento e Processo Tributário).

Lisboa, 7 de Novembro de 2018. - Ana Paula Lobo (relatora) - António Pimpão - Francisco Rothes.


Declaração de voto

Apesar de acompanhar a decisão constante do acórdão considero que deveriam ter nele sido analisadas, ainda as seguintes questões:
1- Inconstitucionalidade por violação do princípio da legalidade fiscal, na vertente de reserva de lei formal do Despacho n.º 46/2010, da Secretaria Regional do Plano e Finanças, datado de 18.08.2010, invocado pela administração tributária como fundamento do indeferimento da reclamação graciosa.
2- Aplicação do aditamento constante do artigo 16.º, n.º 2, do Decreto Legislativo Regional n.º 2/2011/M, de 10 de janeiro, no ano de 2013

Em causa nestes autos está a derrama regional – Região Autónoma da Madeira – cujo regime foi criado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 14/2010/M, de 5 de Agosto, que aprovou o Orçamento Retificativo para o ano de 2010. Importa, antes de mais verificar se ele se mantinha em vigor em 2013, data do acto de liquidação impugnado.
Este regime foi objecto de sucessivas prorrogações (cf. artigo 16.º, n.º 1, do Decreto Legislativo Regional n.º 2/2011/M, de 10 de Janeiro, artigo 15.º, n.º 1 do Decreto Legislativo Regional n.º 5/2012/M, de 30 de Março e artigo 17.º do Decreto Legislativo Regional n.º 42/2012/M, de 31 de Dezembro), mantendo-se em vigor em 2013.
A recorrente, inconformada com o acto de liquidação apresentou reclamação graciosa junto da administração tributária que a indeferiu.
O indeferimento da reclamação graciosa fundamentou-se no teor do Despacho n.º 46/2010, de 18 de Agosto, «cujo objeto versa precisamente a interpretação das normas que criam a derrama regional e sobre a sua excecionalidade, e sobre o seu impacto nas empresas licenciadas e a operar na Zona Franca da Madeira. Nesse sentido, dispõe o n.º 1 do diploma que: «A derrama regional, criada pelos artigos 3.º e seguintes do Decreto Legislativo Regional n.º 14/2010/M, de 5 de Agosto, não é aplicável às entidades licenciadas e a operar na Zona Franca da Madeira, que beneficiem quer do regime de isenção do artigo 33.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, quer dos regimes de redução de taxa de IRC previstos nos artigos 35.º e 36.º do mesmo diploma.” A Administração Tributária concluiu que a ora Recorrente está sujeita ao pagamento da derrama regional na medida em que, de acordo com o referido Despacho, a derrama regional apenas não é aplicável às entidades licenciadas a operar na ZFM que beneficiem de um dos regime de auxílios de estado previstos no Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF) e, no caso vertente, não obstante licenciada a operar na ZFM, a Recorrente não beneficiava de qualquer daqueles regimes.
O despacho em causa, que foi seguido pela Administração Tributária para indeferir a reclamação é uma mera interpretação do regime da derrama aqui em causa que se limita a interpretar diplomas legislativos que a recorrente considera inconstitucionais. Assim, porque tal interpretação se dirige à própria administração e não é relevante para a decisão do recurso, a doutrina interpretativa dele constante carece de qualquer interesse para dirimir o presente conflito dado que o valor dele, neste processo, depende de se afirmar ou infirmar a via interpretativa que adoptou, análise a que se procederá adiante.
A sentença recorrida entendeu estarmos face a um mero lapso de escrita porque o n.º 4 se deveria ter por aditado ao art.º 6.º e não ao artigo 16.º do Decreto Legislativo Regional n.º 14/2010/M. A correcção de tal lapso de escrita cabe, ainda nos poderes de interpretação dos textos legislativos constante do art.º 9.º do Código Civil, pelo que não enferma aquela do erro de julgamento que lhe vinha apontado.
A sentença recorrida entendeu estarmos face a um mero lapso de escrita porque o n.º 4 se deveria ter por aditado ao art.º 6.º e não ao artigo 16.º do Decreto Legislativo Regional n.º 14/2010/M.
Não acompanho a decisão que, nesta parte logrou vencimento, pelos seguintes fundamentos:
Importava definir se o tribunal pode dizer que está face a um mero lapso de escrita, que passa a rectificar, e deslocar o aditado n.º 4 do art.º 16.º, que ali não faz qualquer sentido para o não aditado art.º 6.º por este efectivamente versar sobre o regime da derrama regional.
Não foi até 2013 efectuada qualquer rectificação legislativa deste «lapso de escrita».
O art.º 16.º Decreto Legislativo Regional n.º 2/2011/M é do seguinte teor:
Artigo 16.º
Derrama regional
1 - Mantêm-se em vigor para a Região Autónoma da Madeira a derrama regional aprovada e regulamentada pelo Decreto Legislativo Regional 14/2010/M, de 5 de Agosto.
2 - É aditado o n.º 4 ao artigo 16.º do Decreto Legislativo Regional 14/2010/M, de 5 de Agosto, com a seguinte redacção:
«Artigo 16.º
[...]
1 - ...
2 - ...
3 - ...
4 - Excluem-se da aplicação da presente norma as entidades licenciadas a operar na Zona Franca da Madeira, que beneficiem quer do regime de isenção do artigo 33.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, quer dos regimes de redução de taxa de IRC previstos nos artigos 35.º e 36.º do mesmo diploma
No referido diploma legal não há uma menção expressa que enuncie quais os artigos ou diplomas que são alterados, limitando-se a ir indicando um a um os que sofrerão alteração.
Deparamo-nos com uma situação que há-de ser resolvida por aplicação do art.º 9.º do Código Civil:
«1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.».
Nesta tarefa de interpretação se não nos cingirmos à letra da lei, mas reconstituirmos a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, presumindo que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, no caso concreto, é patente que o legislador disse art.º 16.º, quando quereria dizer art.º 6. Mas estamos, deste modo a considerar um pensamento legislativo que não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, o que nos está vedado pelo n.º 2 do mesmo art.º 9.º. Para além disso a interpretação da lei tem como finalidade tornar claro o espírito do legislador e não criar normas, faculdade absolutamente vedada ao poder judicial estritamente vinculado a fazer aplicação das normas existentes aos casos concretos para dirimir os conflitos que lhe são presentes.
Não podemos achar que se trata de um mero lapso de escrita, uma coisa menor, ainda que seja porventura um lapso de escrita mas cuja correcção implica arredar de um benefício fiscal um número indeterminado de empresas e entidades -Excluem-se da aplicação da presente norma as entidades licenciadas a operar na Zona Franca da Madeira, que beneficiem quer do regime de isenção do artigo 33.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, quer dos regimes de redução de taxa de IRC previstos nos artigos 35.º e 36.º do mesmo diploma - sem que haja um texto legislativo, escrito sem lapsos, que o determine.
Os erros e gralhas dos diplomas legislativos corrigem-se, nos termos da lei, por via de rectificação legislativa levada a cabo pela entidade de que emanam esses actos legislativos e não por interpretação judicial.
A sentença recorrida ao professar entendimento diverso e dar por corrigido o lapso escrita no sentido de que o n.º 4 se adicionará ao art.º 6.º e não ao art. 16.º do referido diploma enferma, em meu entender de erro de julgamento por ter praticado indevidamente uma rectificação de um diploma legal.

Lisboa, 7 de Novembro de 2018.
Ana Paula Lobo.