Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:044/11
Data do Acordão:05/04/2011
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:CASIMIRO GONÇALVES
Descritores:GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
IRS
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
Sumário:O nº 1 do art. 240º do CPPT deve ser interpretado no sentido de abranger não só os credores que gozem de garantia real, "stricto sensu", como também aqueles a que a lei substantiva confere causas legítimas de preferência, como é o caso dos privilégios creditórios.
Nº Convencional:JSTA000P12841
Nº do Documento:SA220110504044
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:E... E OUTRO
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
RELATÓRIO
1.1. A Fazenda Pública interpõe recurso da sentença proferida pelo TAF de Aveiro nos autos de verificação e graduação de créditos que ali correm termos por apenso à execução fiscal nº 0094200701003879 e apensos instaurada contra A…, e revertida contra B…, por dívidas de IVA do ano 2004 e juros de mora.
1.2. A recorrente termina as alegações formulando as conclusões seguintes:
1. Os créditos de IRS de 2007 e 2008 reclamados pela Fazenda Pública beneficiam de privilégio creditório imobiliário geral, encontrando-se abrangidos pelos três anos anteriores ao da penhora, nos termos do artigo 111º do CIRS.
2. O privilégio creditório consiste na faculdade que a lei substantiva concede a certos credores, em atenção à causa do crédito, de serem pagos com preferência em relação a outros.
3. O facto de o privilégio creditório imobiliário geral ser uma mera preferência de pagamento, não implica o afastamento do crédito que dele beneficia, da reclamação e graduação no lugar que lhe competir.
4. A admissão ao concurso de credores constitui a razão de ser da atribuição do privilégio creditório.
5. Exigir a esse credor que, para fazer valer o privilégio, obtivesse penhora, seria deixar sem sentido útil o referido artigo 111° do CIRS, pois, nesse caso, o seu crédito passaria a dispor de garantia real, sendo-lhe inútil o privilégio.
6. De harmonia com o entendimento jurisprudencial largamente maioritário do STA o artigo 240°, nº 1 do CPPT deve ser interpretado amplamente no sentido de abranger não apenas os credores que gozem de garantia real stricto senso, mas também aqueles a quem a lei atribui causas legítimas de preferência, nomeadamente os privilégios creditórios imobiliários, ainda que não especiais (cfr. a título de exemplo, os Acórdãos do STA de 08/09/2010, processo 0118/09, de 12/11/2009, processo nº 919/09 e de 17/06/2009, processo nº 0432/09 e de 18/05/2005, processo nº 612/04).
7. Ao não admitir os créditos de IRS relativos aos exercícios de 2007 e 2008, reclamados pela Fazenda Pública, a douta sentença recorrida incorreu em erro de direito na interpretação e aplicação das normas constantes nos artigos 240°, nº 1 e 246° do CPPT e no artigo 111º do CIRS.
Termina pedindo o provimento do recurso e a revogação da sentença a substituir por outra que admita, reconheça e gradue tais créditos no lugar que lhe competir.
1.3. Não foram apresentadas contra-alegações.
1.4. O MP não emitiu Parecer (cfr. fls. 261 verso).
1.5. Corridos os vistos legais, cabe decidir.
FUNDAMENTOS
2. Na sentença recorrida julgaram-se provados os factos seguintes:
1. A execução corre por dívidas de IVA do ano de 2004 e juros de mora correspondentes – cfr. fls. 1 e 2 do Processo de Execução Fiscal apenso aos autos;
2. No âmbito do Processo de Execução Fiscal 0094200701003879, pela Ap. 4229 de 14.07.2009 foi registada penhora sobre o prédio rústico sito no ..., freguesia e concelho de Penamacor, inscrito na matriz predial sob o artigo 103, secção BL e descrito na Conservatória do Registo Predial de Penamacor sob o nº 3326, garantindo a quantia exequenda de € 7.037,99 – cfr. certidão da Conservatória do Registo Predial de Penamacor de fls. 57 e seguintes do Processo de Execução Fiscal apenso aos autos;
3. Sobre o imóvel descrito em 2. encontra-se ainda registada, pela Ap. 1 de 03.07.2001, a favor da C…, CRL, hipoteca voluntária garantindo o montante máximo de 20.550.000$00 (€ 102.502,97) – cfr. certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial de Penamacor a fls. 57 e seguintes do Processo de Execução Fiscal apenso aos autos;
4. Por Ap. 3 de 28.12.2007, sobre o imóvel descrito em 2., foi registada penhora, determinada no âmbito do Processo 1183/06.1TBILH, como garantia da quantia exequenda de € 10.689,25, onde é exequente/credor D… – cfr. certidão supra identificada;
5. Por Ap. 4 de 07.07.2008, sobre o imóvel descrito em 2., foi registada penhora, determinada no âmbito do Processo 39/08.8TBILH do 2° Juízo do Tribunal Judicial de Ílhavo, como garantia da quantia exequenda de € 16.187,38, onde é exequente/credor a E…, CRL – cfr. a certidão supra identificada;
6. Por Ap. 3 de 07.11.2008, sobre o imóvel descrito em 2., foi registada penhora, determinada no âmbito do Processo de Execução Fiscal 0108200701026984, como garantia da quantia exequenda de € 59.639,82, relativa a dívidas de IRS – cfr. certidão supra identificada;
7. Por Ap. 6 de 17.11.2008, sobre o imóvel descrito em 2., foi registada penhora, determinada no âmbito do Processo Executivo 86/08.0 TBAVR, do 3° Juízo do Tribunal Judicial de Aveiro, como garantia da quantia exequenda de € 230.809,07, onde é exequente/credor, a E…, CRL – cfr. certidão supra identificada.
3. Atendendo a esta factualidade a sentença recorrida procedeu, além do mais, à graduação dos créditos reclamados, mas não julgou reconhecidos, nem consequentemente graduou, os créditos relativos a IRS, dos anos de 2007 e 2008, por considerar que o privilégio imobiliário geral previsto no art. 111º do CIRS não constitui uma garantia real.
A recorrente, por seu lado, apoiando-se na jurisprudência deste STA, entende que o nº 1 do art. 240º do CPPT deve ser interpretado em termos amplos, no sentido de abranger não apenas os credores que gozam de garantia real stricto sensu mas também aqueles a que a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, nomeadamente, privilégios creditórios.
A questão controvertida e que importa decidir é, portanto, a de saber se o crédito de IRS reclamado pela FP, relativo aos anos de 2007 e 2008, deve ou não ser reconhecido e graduado.
Vejamos.
4.1. O art. 111º do CIRS dispõe:
«Para pagamento do IRS relativo aos três últimos anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente.»
Por sua vez, o nº 1 do art. 240º do CPPT dispõe que podem reclamar os seus créditos no prazo de 15 dias após a citação nos termos do artigo anterior os credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados.
E o art. 246º do mesmo Código manda aplicar na reclamação de créditos as disposições do CPC, mas sendo admissível apenas a prova documental.
4.2. A questão a decidir passa, essencialmente, pela interpretação do nº 1 do transcrito art. 240º do CPPT, em termos de saber se tal normativo deve ser interpretado em sentido amplo, de modo a terem-se por abrangidos na letra da lei não apenas os credores que gozam de garantia real, mas também aqueles a quem a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, designadamente, privilégios creditórios, ou se, pelo contrário, deve interpretar-se em sentido estrito, de modo a terem-se ali abrangidos apenas os credores que gozam de uma verdadeira garantia real, que atribua ao seu titular um direito de sequela.
Trata-se, aliás, de questão que tem sido amplamente apreciada e decidida por este STA, com orientação largamente maioritária, que também aqui perfilhamos, no sentido de que «o nº 1 do artigo 240º do CPPT deve ser interpretado amplamente, no sentido de abranger não só os credores que gozam de garantia real “stricto sensu”, mas também aqueles a quem a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, como é o caso dos privilégios creditórios».
A propósito, escreve-se no acórdão desta Secção do STA, de 12/1/2011, rec. nº 725/10, em que o presente relator interveio como adjunto:
O «… legislador fiscal determinou a execução de bens individualizados do património do executado para satisfação do crédito do exequente, permitindo todavia aos credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados que reclamassem os seus créditos na execução. É o que resulta do disposto no artigo 240º, nº 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em consonância com o artigo 865º do Código de Processo Civil no respeitante à execução comum.
Mas, para alguma doutrina, direitos reais de garantia em sentido próprio serão apenas a penhora, o penhor, a hipoteca, o direito de retenção e a consignação de rendimentos. Já quanto aos privilégios creditórios, que o artigo 733º do Código Civil define como «a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros», não há unanimidade, entendendo alguns que não serão verdadeiros direitos reais de garantia, mas qualidades do crédito, atribuídas por lei em atenção à sua origem.
Praticamente unânime é o entendimento quanto aos privilégios gerais: estes não são qualificáveis como direitos reais de garantia. Em todo o caso, há, na doutrina, como na jurisprudência, concordância quanto a que os privilégios creditórios conferem preferência sobre os credores comuns. Nos termos do artigo 111º (antes artigo 104º) do Código do IRS, para o pagamento de IRS relativo aos três últimos anos a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou de acto equivalente.
Gozando o crédito reclamado de privilégio imobiliário, não preferindo embora aos credores com garantia real, não deixa, por isso, de poder ser reclamado e graduado no lugar que lhe competir. Neste sentido se têm pronunciado quer o Supremo Tribunal Administrativo quer o Supremo Tribunal de Justiça, em inúmeros acórdãos. Aliás, assim o impõe a unidade do sistema jurídico, pois não faria sentido que a lei substantiva estabelecesse uma prioridade no pagamento do crédito e a lei adjectiva obstasse à concretização da preferência, impedindo o credor de acorrer ao concurso. Exigir a esse credor que, para fazer valer o privilégio, obtivesse penhora ou hipoteca, seria deixar sem sentido útil o privilégio, pois nesse caso o crédito passaria a dispor de garantia real, sendo-lhe inútil o privilégio legal. Assim, afigura-se dever o artigo 240º, nº 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário ser interpretado no sentido de abranger não apenas os credores que gozam de garantia real, stricto sensu, mas também aqueles a quem a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, designadamente, privilégios creditórios – cf. neste sentido, quase textualmente, o acórdão do Pleno desta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 18-5-2005, no recurso nº 612/04, o qual, por sua vez, seguiu o acórdão do Pleno também desta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 13-4-2005, no recurso nº 442/04, a confirmar os acórdãos fundamento desta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 2-7-2003, e de 4-2-2004, proferidos respectivamente nos recursos nº 882/03, e nº 2078/03».
E no mesmo sentido podem ver-se, ainda, entre outros, os acs. desta Secção do STA, 12/11/09, rec. nº 919/09, de 18/11/09, rec. nº 920/09, de 27/1/10, rec. nº 01201/09 e de 12/2/10, rec. nº 1035/09.
Ora, considerando o disposto no nº 3 do art. 8º do CCivil e porque não vemos motivo para divergir deste entendimento, havemos de concluir que o crédito em causa deve ser reconhecido e graduado no lugar que lhe couber, ou seja, no caso, logo a seguir aos créditos garantidos por hipoteca.
DECISÃO
Nestes termos acorda-se em, dando provimento ao recurso, revogar a sentença na parte em que vem recorrida e, julgando reconhecido o crédito reclamado pela Fazenda Pública referente a IRS dos anos de 2007 e 2008, proceder à respectiva graduação no lugar que lhe compete, ficando, assim, a graduação na forma seguinte e saindo as custas precípuas do produto do bem penhorado:
1º - Os créditos reclamados pela Fazenda Pública, referentes a IMI de 2008, bem como os juros que lhes correspondam;
2º - O crédito reclamado pela E…, CRL, que se encontra garantido por hipoteca, até ao limite do seu valor;
3º - Os créditos reclamados pela Fazenda Pública, referentes a IRS dos anos de 2007 e 2008 e respectivos juros, que goza do privilégio imobiliário estabelecido no art. 111º do CIRS;
4º - O crédito exequendo no âmbito do Processo Executivo 1183/06.1TBILH, Reclamado por D…, bem como os juros e despesas correspondentes, sempre até ao limite da penhora;
5º - O crédito exequendo no âmbito do Processo Executivo 39/08.8TBILH, reclamado pela E…, CRL, bem como os juros e despesas correspondentes, sempre até ao limite da penhora registada;
6º - O crédito exequendo no âmbito do Processo Executivo 86/08.0TBAVR, reclamado pela E…, CRL, bem como os juros e despesas correspondentes, sempre até ao limite da penhora registada;
7º - Havendo remanescente, os créditos exequendos, referentes a IVA do ano de 2004, bem como os juros que lhe correspondam, sempre até ao limite da penhora.
Sem custas.
Lisboa, 4 de Maio de 2011. – Casimiro Gonçalves (relator) – Brandão de Pinho – Isabel Marques da Silva.