Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0213/05.9BEFUN
Data do Acordão:01/11/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24053
Nº do Documento:SA1201901110213/05
Recorrente:A............
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ E OUTRO
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA FORMAÇÃO DE APRECIAÇÃO PRELIMINAR DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:

I. RELATÓRIO
A………… intentou, no TAF do Funchal, contra o Município de Santa Cruz, acção popular pedindo a declaração de nulidade, ou a anulação, dos despachos do Vereador da respectiva Câmara que aprovou o projecto de arquitectura da moradia que os Contra-interessados pretendiam erigir e que ordenou a emissão das respectivas licenças de construção e habitabilidade, alegando que os mesmos estavam feridos por vícios de violação de lei e de forma.

Indicou como Contra-interessados B………… e C…………

Aquele Tribunal julgou verificada a excepção de ilegitimidade activa e absolveu a Entidade Demandada e os Contra-interessados da instância.
Decisão que o Tribunal Central Administrativo Sul manteve.

É desse acórdão que a Autora vem recorrer (art.º 150.º/1 do CPTA).

II. MATÉRIA DE FACTO
Os factos dados como provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III. O DIREITO

1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto como «válvula de segurança do sistema» para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos, pois, se tais requisitos se verificam in casu socorrendo-nos para isso da matéria de facto seleccionada no Acórdão recorrido.

2. O TAF julgou verificada a excepção de ilegitimidade activa do Autor, com o seguinte discurso fundamentador:

Ora, face ao alegado, julga este Tribunal que o A. formulou pretensões destituídas de substanciação no núcleo de interesses previstos no âmbito do disposto no artigo 1.º da Lei n.º 83/95, de 31/08, ou que tutelem o referido núcleo de interesses a defender ou, sequer, demonstra a ofensa de interesses de toda a comunidade de cidadãos, na medida em que não alegou factos em ordem a concretizar que implicações negativas resultam para toda a comunidade que legitime a intervenção uti cives do A., nem a concretização de prejuízos para a comunidade por força dos despachos em crise. Antes ressalta que o próprio A. terá interesse pessoal na demanda.

É que incumbia ao A. caracterizar e concretizar in casu os interesses difusos que visa defender. É que, embora se compreenda que está em causa a defesa do urbanismo, ordenamento do território, ambiente e qualidade de vida …. não logra o Autor invocar ou caracterizar no que a violação desses direitos se projeta nos demais cidadãos, não decorrendo da sua alegação de que modo os cidadãos de Santa Cruz são afetados pela alegada ilegalidade urbanística, de que modo é que a sua qualidade de vida sai afetada ou em que medida a mesma provoca alterações ambientais que se repercutam negativamente no bem-estar e interesses de todos os membros da comunidade. De facto, o Autor nada alega sobre o que possa afetar, direta ou indiretamente, o direito à qualidade de vida dos cidadãos de modo que a tutela reclamada em juízo se redunde na salvaguarda de direitos que se refletem em toda a comunidade.

Não se vislumbra naquelas alegações qualquer interesse de toda a comunidade que legitime a intervenção uti cives do Autor, pois que a intervenção uti singuli está afastada por via da ação popular …... pelo que não é de reconhecer legitimidade ao A. para agir em juízo como Autor popular, nos termos das disposições conjugadas do artigo 1.º do ETAF e do artigo 9.º, n.º 2 do CPTA, conjugado com os artigos. 1.º, n.ºs 1 e 2, 2.º, n.º 1 e 12.º, n.º 1, da Lei 82/95, de 31/08.”.

Decisão que o TCA confirmou pelas razões que sumariou do seguinte modo:
“I Para o efeito da titularidade do direito de ação popular, prescreve o artigo 2.º da Lei nº 83/95, de 31/08, que são titulares do direito de acção popular “quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda”.
II. Tais interesses, enumerados no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição, no n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 83/95 e no n.º 2 do artigo 9º do CPTA são, de entre outros, a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais.
III. O objecto da ação popular é, antes de mais, a defesa de interesses difusos, pois sendo interesses de toda a comunidade, deve reconhecer-se aos cidadãos uti cives e não uti singuli, o direito de promover, individual ou associadamente, a defesa de tais interesses.
IV. A atribuição desta legitimidade implica um significativo reforço do papel dos tribunais na tutela dos direitos difusos, pois quando essa mesma legitimidade é atribuída a cidadãos e a organizações, o tribunal tem de verificar a adequação da representação reclamada.
V. Não pode o interesse difuso ser confundido com qualquer outro interesse, como seja, o interesse público.
VI. Apesar de alguma coincidência, os interesses públicos são os interesses gerais de uma colectividade e os interesses difusos são aferidos pelas necessidades efetivas que por eles são ou deviam ser satisfeitas aos membros de uma colectividade.
VII. A mera alegação do interesse da defesa da legalidade urbanística, assente na violação das normas legais e regulamentares, por edificação de construção que alegadamente ofende as normas aplicáveis ao loteamento urbano e demais vinculações legais aplicáveis, não permite fundar a existência de um interesse difuso a tutelar através da ação popular.
VIII. Não se mostrando caracterizada a defesa de interesses de toda a comunidade, por nada ser dito sobre o modo como a alegada violação do interesse urbanístico se projeta nos demais cidadãos ou o modo como é a coletividade afetada pela alegada ilegalidade urbanística, não se mostra sustentada a qualidade de que o Autor se arroga, de ser Autor popular.
IX. O princípio do contraditório exige que a parte afetada pela decisão a proferir tenha a oportunidade de conhecer e se pronunciar sobre a questão em causa, mas não impõe que seja notificado de todos os fundamentos ou argumentos em que baseará a decisão a proferir pelo Tribunal.
X. Considerando o fundamento que determinou a absolvição da instância, relativo à falta de legitimidade ativa como Autor popular, não se impunha a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, por não estar em causa matéria que pudesse ser aperfeiçoada pelo Autor, nenhuma imperfeição se detectando ao nível do articulado da parte.
XI. A questão coloca-se ao nível na própria condição em que o Autor se apresenta em juízo, em face do objecto da causa e dos direitos e interesses que são discutidos, não assistindo legitimidade ativa aos cidadãos para a defesa de interesses públicos ou em defesa da legalidade objetiva, mas apenas de interesses difusos e estes não se configuram em juízo.”

3. A única questão suscitada nesta revista é a da legitimidade do Autor para intentar a presente acção popular, questão a que as instâncias deram resposta negativa com uma fundamentação muito semelhante.
Com efeito, tanto o TAF como o TCA consideraram que o Autor era parte ilegítima não só por não ter alegado que a construção licenciada e, depois, construída lesava os interesses da comunidade como por não ter indicado de forma clara e explícita qual o direito cuja protecção o obrigava a litigar. Deste modo, e pese embora se entender que o Autor litigava em defesa do urbanismo, certo era que não lograra demonstrar em que medida a violação desse direito se projectava nos demais cidadãos. Ao que acrescia que o Autor nada alegara sobre o que podia afectar, directa ou indirectamente, o direito à qualidade de vida dos cidadãos, ou sequer, do ordenamento do território de modo que a tutela reclamada em juízo redundasse na salvaguarda de direitos que se reflectiam em toda a comunidade.
Ora, não se evidencia que as instâncias a tenham decidido mal uma vez que o seu julgamento foi feito com uma adequada ponderação da matéria alegada na petição inicial e das leis em vigor.
Por outro lado, como é manifestamente evidente, essa questão não tem o relevo jurídico e social que a Recorrente lhe atribui.
Nesta conformidade, não estão preenchidos os requisitos de admissão de revista.
Termos em que acordam em não admitir a revista.
Custas pelo recorrente.
Porto, 11 de Janeiro de 2019. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – São Pedro.