Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02120/17.3BELRS
Data do Acordão:11/10/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:IMPOSTO DE SELO
TRESPASSE
Sumário:I - Só incide imposto do selo da verba 27.1 da TGIS sobre a constituição de capital social de uma sociedade em que se verifica que a entrada do sócio é realizada em espécie, mediante a transferência para a nova sociedade do património (ativo e passivo) que constitui o estabelecimento comercial do contribuinte, quando o mesmo integre a transmissão do direito de arrendamento urbano para fins não habitacionais.
II - A transmissão de um contrato de arrendamento de um corredor de acesso ao estabelecimento comercial transmitido é, pelo carácter secundário e acessório do “bem arrendado”, insuficiente e desadequado para caracterizar o negócio jurídico como um trespasse.
Nº Convencional:JSTA00071311
Nº do Documento:SA22021111002120/17
Data de Entrada:01/12/2021
Recorrente:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:FARMÁCIA A......., LDA.
Nº do Volume:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO JURISDICIONAL
Objecto:TRIBUNAL TRIBUTÁRIO DE LISBOA
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:IMPOSTO DE SELO
Legislação Nacional:Verba 27.1 da TGIS;
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

I - RELATÓRIO
1 – “Farmácia A………., Lda.”, com os sinais dos autos, impugnou no Tribunal Tributário de Lisboa o indeferimento do recurso hierárquico interposto da decisão de indeferimento da reclamação graciosa da liquidação de Imposto do Selo (guia n.º 80231033460).

2 – Por sentença de 6 de Março de 2020, o Tribunal Tributário de Lisboa julgou procedente a impugnação, anulou o acto de liquidação antes referido e condenou a Autoridade Tributária e Aduaneira à restituição do imposto pago indevidamente, acrescido de juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento indevido do imposto até à emissão da respectiva nota de crédito

3 – A Fazenda Pública, inconformada com o teor da sentença, vem interpor recurso para este Supremo Tribunal Administrativo, apresentando, para tanto, alegações que remata com as seguintes conclusões:
«[…]
a) Visa o presente recurso reagir contra a douta decisão que julgou a Impugnação Judicial procedente e, consequentemente, anulou o ato impugnado de liquidação de imposto do selo e condenou a AT ao pagamento de juros indemnizatórios

b) Salvo o devido respeito, a douta sentença enferma de erro de julgamento resultante da incorreta interpretação e aplicação do Direito, tendo, assim, violado a norma prevista no artigo 1.º, n.º 1 do Código do Imposto do Selo (Código IS) e na verba 27.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS).

c) Como será demonstrado de seguida, em rigor, é a douta decisão que incorre em erro judicativo por não ter interpretado corretamente o conceito “trespasse de estabelecimento comercial” previsto na verba 27.1 da TGIS.

d) Com efeito, a transmissão em causa nos autos configura um vero e próprio trespasse de estabelecimento comercial para efeitos da verba 27.1 da TGIS, estando, assim, sujeita a imposto do selo.

e) Considerou o tribunal a quo que a condição essencial para que se considere um verdadeiro trespasse é a transferência do direito ao arrendamento em relação ao local onde o mesmo se encontra a laborar e concluiu que o direito ao arrendamento de um corredor de três m2 não pode ser determinante da qualificação jurídica da transmissão em causa como trespasse e, muito menos, para efeitos de incidência de imposto do selo.

f) Não pode a Fazenda Pública concordar com tal entendimento pois conforme decorre da escritura de constituição da sociedade, a realização da entrada em espécie é efetuada mediante transmissão do estabelecimento comercial denominado Farmácia A…….., que inclui a totalidade do património afeto ao exercício da atividade empresarial do mesmo estabelecimento, não constando bens imóveis, nem direitos de arrendamento, exceto o direito de arrendamento relativamente a um pequeno corredor, com a área aproximada de três metros quadrados, que serve como acesso secundário ao estabelecimento que tem cerca de cento e vinte metros quadrados. (facto C da fundamentação de facto).

g) Encarando-se o estabelecimento como um bem indiviso, sem gomos discriminados, sem partes excluídas, sem distinção de elementos independentemente da eventual saliência de um deles, tendo as partes intervenientes no negócio tratado dele como único e indivisível, somos da opinião de que, contrariamente ao decido pelo tribunal a quo, a transmissão onerosa de um estabelecimento, acompanhada da transmissão de um contrato de arrendamento de um imóvel, ainda que seja “um pequeno corredor” “que serve como acesso secundário ao estabelecimento” deve ser qualificada como trespasse de estabelecimento comercial ou industrial, cabendo, assim, na previsão da norma de incidência da verba 27.1 da TGIS.

h) Pelo que, aceitando ainda o conceito de trespasse desenvolvido na sentença de que ora recorremos, deveria o tribunal a quo ter decidido que ocorrendo a transmissão de um contrato de arrendamento de um pequeno corredor que serve como acesso secundário ao estabelecimento é relevante para o preenchimento do conceito de trespasse desenvolvido, concluindo pela legalidade da liquidação de imposto do selo.

i) Assim, entende a Fazenda Pública que, decidindo como decidiu, o tribunal a quo não interpretou corretamente o conceito “trespasse de estabelecimento comercial”, violando a norma prevista no artigo 1.º, n.º 1 do Código do Imposto do Selo (Código IS) e na verba 27.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS).

j) Caso assim não se entenda, o que por mero exercício intelectual se concede, e sem prescindir,

k) Parece-nos igualmente que o tribunal a quo não adotou o conceito de “trespasse de estabelecimento comercial” mais rigoroso e conivente com o princípio da legalidade.

l) Se é certo que, classicamente, a doutrina defendia que o trespasse era caraterizado pela existência de um contrato de arrendamento tendo por objeto o estabelecimento comercial, atualmente é pacífico que pode existir trespasse de estabelecimento estável sem existir um direito de arrendamento do imóvel.

m) Conforme doutrina melhor identificada nas alegações e que se dá aqui por reproduzida, o regime plasmado para o trespasse no artigo 1112.º do Código Civil regula, apenas, os casos em que existe um contrato de arrendamento, não podendo a partir daí concluir-se ser esta a única hipótese de trespasse.

n) Com efeito, o artigo 1112.º do Código Civil regula a situação mais comum, facto que, ademais, era visível no pretérito Regime do Arrendamento Urbano, que regulava, em especial o arrendamento para comércio, máxime o artigo 115.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro.

o) Ora, mesmo sob a égide desse regime, tal preceito apenas regia os casos de trespasse aos quais estava acoplado um contrato de arrendamento, motivo pelo qual as asserções das páginas 17 e 18 da douta sentença enfermam de uma sinédoque, isto é, tomou-se a parte (regime do arrendamento urbano) pelo todo (trespasse em geral), para afastar do conceito de trespasse os casos em que não haja contrato de arrendamento tendo por objeto o imóvel onde está sito o estabelecimento.

p) A propósito da incidência de selo sobre o trespasse de estabelecimento escreveram Saldanha Sanches e Manuel Anselmo Torres (artigo constante a fls. 98 e ss. da reclamação graciosa): «…a delimitação da incidência de imposto do selo àquelas transmissões de estabelecimentos que incluam a transmissão do direito ao arrendamento não parece ter o mínimo de correspondência na letra da lei nem traduzir o pensamento legislativo. Antes pelo contrário, resultaria no tratamento desigual de contribuintes em situação substancialmente idêntica, o qual deve ter-se por contrário à intenção legislativa

q) A referida tese foi defendida pela Fazenda Pública em sede de Reclamação Graciosa e é a interpretação jurídica mais consentânea com a letra e espírito da lei, mas também a mais garantística dos princípios da legalidade e da igualdade entre contribuintes.

r) Como demonstram os exemplos melhor explanados em sede de alegações, a tese em crise determina que em situações de transmissão de estabelecimento comercial materialmente análogas, apenas haveria tributação num único caso, i.e., aquele em que haja contrato de arrendamento, situação eminentemente formal e sem aderência à realidade.

s) Efetivamente, este resultado é sinónimo de uma flagrante e manifesta violação de princípios basilares do sistema fiscal - o princípio da igualdade e o princípio da legalidade aos quais a AT está sujeita.

t) Face ao exposto, e atendendo ao teor da escritura de constituição da sociedade na parte respeitante à realização da entrada em espécie que é efetuada mediante a transmissão do estabelecimento comercial denominada FARMÁCIA A……… resulta que esta operação se subsume ao conceito de trespasse de estabelecimento comercial, estando sujeita à verba 27.1 da TGIS.

u) Por conseguinte, devia o tribunal a quo ter decidido que a operação em causa nos autos configura um trespasse de estabelecimento comercial para efeitos da verba 27.1 da TGIS e concluir pela legalidade da liquidação de Imposto do selo.

v) Com efeito, a sentença recorrida incorre em erro de julgamento, por violação de lei, quando anulou o ato impugnado por entender não estarem verificados os requisitos do trespasse de estabelecimento comercial, não respeitando a norma prevista artigo 1.º, n.º 1 do Código do Imposto do Selo (Código IS) e na verba 27.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS) devendo ser a mesma revogada e ser decidido pela legalidade da liquidação de Imposto do selo, aqui em causa

Nos termos supra expostos, e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que julgue a impugnação judicial totalmente improcedente.

PORÉM V. EX.AS DECIDINDO FARÃO
A COSTUMADA JUSTIÇA

[…]».


4 – A Impugnante e aqui Recorrida contra-alegou, sumariando as seguintes conclusões:

«[…]
a) O conceito de Trespasse não se encontra definido na lei, pelo que, tratando-se de um conceito de direito civil, nos termos do artigo 11.º, n.º 2 da LGT, o mesmo deverá ser interpretado, no ordenamento jurídico-tributário, no mesmo sentido do ramo de direito de onde é proveniente, sendo que, é entendimento unânime da jurisprudência, da doutrina e, bem assim, da Autoridade Tributária (em orientações administrativas publicadas), que apenas nas situações em que o arrendamento do estabelecimento comercial é transmitido se estará perante uma situação de aplicabilidade da verba 27.1 da TGIS. Os diplomas legais onde o Trespasse vem regulado foram alvo de alterações nos anos de 2019 e 2020, pelo que, não tendo o legislador alterado o referido conceito, deve o intérprete presumir que o legislador se exprimiu corretamente, nos termos do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil e, como tal, o conceito de Trespasse deverá ser restrito às situações em que se verifica a transmissão da posição de arrendatário;

b) A transferência onerosa da farmácia objeto dos presentes autos, está excluída de tributação em sede de Imposto do Selo, uma vez que não englobou transmissão de um direito de arrendamento sobre qualquer parte do estabelecimento comercial em causa – não havendo assim um trespasse subsumível à verba 27.1 da TGIS;

c) Para que se considere estar perante um trespasse, é necessário que o direito de arrendamento transmitido respeite ao local onde está sito o próprio estabelecimento comercial, e não a um qualquer imóvel, pelo que, constatando-se que o “pequeno corredor, com a área aproximada de três metros quadrados” não configura o local onde está situado o estabelecimento comercial, não houve, no caso concreto, um trespasse;

d) O “pequeno corredor, com a área aproximada de três metros quadrados” trata-se, efetivamente, de uma parte comum do imóvel onde o estabelecimento comercial está instalado, pelo que, tratando-se de uma parte comum, a Recorrida poderia, sempre, utilizar a mesma, na qualidade de comproprietária, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 1420.º e alínea c) do n.º 1 do artigo 1421.º, ambos do Código Civil;

e) Atendendo à evidente dicotomia patente na posição da Autoridade Tributária – por um lado, no âmbito do procedimento tributário e, bem assim, no âmbito das referidas informações vinculativas, que consideram que a transmissão da posição de arrendatário se afigura essencial para a existência de um Trespasse – é evidente que a Autoridade Tributária tinha dúvidas quanto ao alcance do conceito civilístico de Trespasse, pelo que, deveria a mesma ter-se abstido de tributar, ao abrigo do princípio in dubio contra fiscum;

f) A alegação aduzida pela Fazenda Pública está em clara contradição com própria doutrina emanada pela Autoridade Tributária que, nas informações vinculativas acima melhor referidas, pugna por um entendimento, nos termos do qual, o conceito de Trespasse não integra as situações em que, embora exista a transmissão do património de uma empresa, a mesma não seja acompanhada pela transmissão do direito de arrendamento do local onde se situa o estabelecimento;

g) Tendo a Autoridade Tributária revisto as suas orientações administrativas atendendo à jurisprudência dos tribunais superiores - como está adstrita nos termos do n.º 4 do artigo 68.º-A da LGT -, a posição defendida pela Fazenda Pública no presente Recurso quanto aos pressupostos do Trespasse configura um manifesto venire contra factum proprium;

h) Verificando-se que ato tributário objeto dos presentes autos é ilegal por erro imputável aos serviços, a Recorrida deverá ser reembolsada da quantia indevidamente paga (€ 99.696,95), acrescida dos respetivos juros indemnizatórios, desde a data do pagamento indevido do imposto, até ao efetivo e integral pagamento por parte da Autoridade Tributária;

i) Verifica-se, portanto, que a sentença recorrida não merece censura, devendo ser mantida na íntegra e, em consequência, ser negado provimento ao Recurso da Fazenda Pública.

Nestes termos, e nos mais de Direito que Vossas Excelências suprirão, deverá o presente Recurso ser dado como improcedente, por não provado e, em consequência, manter- se válida na ordem jurídica a sentença proferida pelo Tribunal a quo, tudo com as legais consequências.

Espera deferimento,

[…]».


5 - O Excelentíssimo Representante do MP junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Cumpre apreciar a decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO


1. De facto
A decisão recorrida deu como provada a seguinte factualidade concreta:
[…]
A. A Impugnante é uma sociedade unipessoal por quotas, constituída por escritura pública outorgada em 27/05/2007;
(cfr. Doc. 1 da petição inicial):
B. A Impugnante tem como objeto social o “comércio e indústria farmacêutica, farmácia e preparação de manipulados, compra, venda e revenda de drogas de uso medicinal, bem como a importação, exportação, compra, venda, e revenda de especialidades farmacêuticas, calçado, dermocosméticos, consumíveis médicos hospitalares, meios de e ou agentes auxiliares e ou complementares de diagnóstico, medicamentos homeopáticos, fitossanitários, nutrição, cosmética, perfumaria, esteticista, produtos destinados à higiene, profilaxia, puericultura, ortopedia e próteses. Compra, venda e revenda, a retalho e por grosso de produtos farmacêuticos, cosméticos e perfumes e prestação de serviços.”;
(cfr. Doc. 1 da petição inicial) a
C. Na escritura de constituição de sociedade foi declarado, designadamente, que “[t]em o capital social de um milhão, novecentos e cinquenta mil euros, representado por uma única quota de igual valor nominal, titulada em nome do sócio único B………., subscrito na modalidade de entrada em espécie, no valor de um milhão novecentos e quarenta e oito mil novecentos e noventa e cinco euros e quatro cêntimos, correspondente ao valor do estabelecimento comercial denominado FARMÁCIA A……….. e da entrada em dinheiro de mil e quatro euros e noventa e seis cêntimos. // DECLARARAM OS OUTORGANTES: // - Que a realização da entrada em espécie é efetuada mediante a transmissão do estabelecimento comercial denominada FARMÁCIA A………., sito na (…) que inclui a totalidade do património afeto ao exercício da atividade empresarial do mesmo estabelecimento, que se avalia em um milhão, novecentos e quarenta e oito mil novecentos e noventa e cinco euros e quatro cêntimos e inclui o Alvará de Farmácia número três mil quatrocentos e cinquenta e cinco, registado em cinco de Abril de mil novecentos e oitenta e dois em nome do sócio único B…….. pelo INFARMED – Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento, do Ministério da Saúde, conforme consta no relatório elaborado por Revisor Oficial de Contas independente, nos termos do artigo 28.º do Código das Sociedades Comerciais, de vinte e sete de Março de dois mil e sete (…) // Sob sua inteira responsabilidade, que do indicado património, já entregue à ora constituída sociedade, não constam bens imóveis, nem direitos de arrendamento, exceto o direito de arrendamento relativamente a um pequeno corredor, com a área aproximada de três metros quadrados, que serve como acesso secundário ao estabelecimento que tem cerca de cento e vinte metros quadrados. (…)”;
(cfr. Doc. 1 da petição inicial)
D. Foi emitida guia de pagamento de Imposto do Selo, em nome de “Farmácia A……….., Lda.”, com o n.º 80231033460, com o Código “327 – IS – Transferências onerosas de atividades ou de ex”, no valor de €97.499,75, referente ao período de 2009/Dezembro, com data limite de pagamento em 20/01/2010;
(cfr. fls. 7 do PAT)
E. Em 20/01/2010, foi enviado correio eletrónico para o endereço dscobrancas@dgci.min-financas.pt, com o seguinte teor “[v]imos por este meio pedir a anulação das guias n.º 80231032331 em nome de Farmácia A’……….., a guia n.º 80231033460 em nome de Farmácia A………, as quais já não conseguimos efetuar pela NET por já terem data de 15/12/2009 e a data limite de pagamento ser do dia 20/01/2010. Pelo motivo de não se ter chegado a efetuar qualquer transferência onerosos de transferência.”;
(cfr. fls. 44 do PAT)
F. A Impugnante foi citada, no âmbito do processo de execução fiscal n.º 1520201002030034, para proceder ao pagamento de Imposto do Selo, relativo à guia de pagamento n.º 80231033460, concernente ao ano de 2009, bem como dos respetivos juros de mora e custas do processo de execução fiscal, no valor total de €99.696,95;
(cfr. fls. 8 do PAT)
G. Em 05/03/2010, deu entrada nos serviços da Direção Geral de Contribuições e Impostos, requerimento, apresentado pela Impugnante, do qual consta, designadamente, o seguinte: “[p]or lapso, a ora Requerente solicitou a emissão de guia de pagamento n.º 80231033460, para liquidação de Imposto do Selo, que seria devido pela realização de uma operação de trespasse.// Tendo detetado tal lapso, e de acordo com as instruções transmitidas pelo Centro de Atendimento Telefónico da DGCI, a Requerente enviou um email à Direção Geral de Cobranças, no dia 20 de janeiro de 2010, a peticionar a anulação da guia de pagamento emitida, não obstante considerar que a mesma perderia a sua validade findo o prazo para pagamento nela indicado. // Porém, o Requerente não obteve qualquer resposta por parte da Direção Geral de Cobranças. // Nestes termos a Requerente acabou por ser citada, em 22 de fevereiro de 2010, relativamente à instauração do processo de execução fiscal n.º 1520201001010034, para cobrança coerciva do imposto do selo indicado na guia de pagamento n.º 80231033460, cuja anulação já havia requerido. (…)”;
(cfr. fls. 2 e 3 do PAT)
H. Em 18/03/2010, deu entrada nos serviços da DGCI, requerimento apresentado
I. pela Impugnante, no qual informava que, tendo procedido ao pagamento do valor de €99.696,95, em 16/03/2010, e uma vez que ainda se encontrava a decorrer o prazo de reclamação graciosa, iria apresentar um aditamento à reclamação apresentada em 05/03/2010;
(cfr. fls. 10 do PAT)
J. Em 26/03/2010, deu entrada, na Repartição de Finanças do Conselho de Loures, “aditamento à reclamação graciosa” previamente deduzida contra a guia de pagamento do Imposto do Selo n.º 80231033460, requerendo a anulação da referida guia de pagamento, com as demais consequências legais, nomeadamente a restituição do valor de €99.696,95, acrescida de juros indemnizatórios;
(cfr. fls. 14 a 34 do PAT)
K. Em 30/07/2010, no âmbito do procedimento de reclamação graciosa n.º 1520201004001516, foi proferida informação, da qual se retira o seguinte: “(…) Só que o legislador fiscal procurando alargar o espectro da tributação e deste modo cuidando de abarcar todas as operações realizadas pelos sujeitos passivos em território português emprega conceitos privilegiando a forma económica à forma jurídica, ou seja, fazendo o primado da substância pela forma. // (…) // Pelas razões acima expostas, revemo-nos nestas considerações. E não obstante o parecer que a Reclamante vem juntar aos autos a verdade é que não chegou ao nosso conhecimento qualquer informação vinculativa, circular ou ofício circulado, por conseguinte, qualquer orientação genérica que, no caso concreto, nos vincule a posição contrária. // (…) // Pelo que sou de parecer que deverá manter-se na totalidade o imposto constante da guia de pagamento n.º 80231033460 do período 2009.12, no montante total de €97.449,75, que a Reclamante submeteu à AT em 15/12/2009, devendo a pretensão da Reclamante ser INDEFERIDA.”;
(cfr. fls. 65 a 71 do PAT)
K. Sobre a informação referida na alínea antecedente recaiu, em 14/09/2010, despacho de concordância do Chefe de Divisão da Justiça Administrativa, da Direção de Finanças de Lisboa, que determinou a notificação da Reclamante para exercício do direito de audição prévia estabelecido no artigo 60.º da LGT;
(cfr. fls. 65 do PAT)
L. Da informação e do despacho referidos nas alíneas antecedentes foram a Impugnante e a respetiva Mandatária notificadas, através dos ofícios n.º 079861 e 079862, ambos de 14/09/2010, bem como para, querendo, exercer o direito de participação na decisão, na modalidade de audição prévia, no prazo de 15 dias;
(cfr. fls. 72 a 75 do PAT)
M. Em 06/10/2010, deu entrada, na Direção Distrital de Finanças de Lisboa, requerimento apresentado pela Impugnante, através do qual exerceu o direito de audição prévia no âmbito do referido procedimento de reclamação graciosa;
(cfr. fls. 76 a 84 do PAT)
N. Em 17/11/2010, foi exarada informação, no âmbito do procedimento de reclamação graciosa n.º 1520201004001516, no sentido do indeferimento da pretensão da, então Reclamante;
(cfr. fls. 102 a 110 do PAT)
O. Sobre a informação referida na alínea anterior recaiu despacho de concordância do Chefe de Divisão da Justiça Tributária da Direção de Finanças de Lisboa, de 23/11/2010, tendo sido determinado o indeferimento do pedido da Reclamante nos termos propostos;
(cfr. fls. 102 do PAT)
P. Da informação e do despacho referidos nas antecedentes alíneas O) e P) foram notificadas a Impugnante e a respetiva Mandatária, através dos ofícios com os n.ºs 108973 e 108974, ambos de 25/11/2010;
(cfr. fls. 111 a 114 do PAT)
Q. Em 27/12/2010, a Impugnante deu entrada, na Direção de Finanças de Lisboa, de requerimento de interposição de recurso hierárquico, da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra a liquidação de imposto do selo cobrada pela guia com o n.º 80231033460;
(cfr. fls. 2 a 23 do processo de recurso hierárquico)
R. Com data de 09/10/2014, no âmbito do procedimento de recurso hierárquico n.º 1520201010000041, foi exarada informação pela Direção de Serviços de Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas Imóveis, Imposto Selo, Imposto único de Circulação e Contribuições Especiais, da Autoridade Tributária e Aduaneira, a qual se dá por integralmente reproduzida, e da qual consta o seguinte: “


[IMAGEM]


(cfr. fls. 114 a 116 do processo de recurso hierárquico)
Sobre a informação referida na alínea antecedente recaiu despacho de concordância da Diretora de Serviços de Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas Imóveis, Imposto Selo, Imposto Único de Circulação e Contribuições Especiais, da Autoridade Tributária e Aduaneira, de 19/07/2017, determinando o indeferimento total do recurso hierárquico interposto com base nos fundamentos constantes da referida informação;
(cfr. fls. 114 do processo de recurso hierárquico)
S. Da informação referida na antecedente alínea S) foi o Mandatário da Impugnante notificado, através do ofício n.º 001391, de 25/07/2017.
(cfr. fls. 118 do processo de recurso hierárquico)


*
Factos não provados.
Não existem factos não provados, em face das possíveis soluções de direito, com interesse para a decisão da causa.
[…]».


2. Questões a decidir
A questão que cumpre apreciar no âmbito do presente recurso é apenas a de saber se existe erro de julgamento do Tribunal a quo ao considerar que não se pode subsumir à previsão do ponto 27.1 da TGIS o negócio jurídico descrito no ponto C da factualidade assente.


3. De direito
A Fazenda Pública não se conformou com a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que deu razão à Impugnante e considerou que não era subsumível ao disposto no ponto 27.1 da TGIS o negócio jurídico descrito no ponto C da factualidade assente.

Em causa estava saber se deveria ou não integrar-se na previsão normativa do ponto 27.1 da TGIS a transmissão de um estabelecimento comercial, o qual incluía a totalidade do património afecto ao exercício da actividade empresarial de farmácia, designadamente o Alvará de Farmácia, sendo que do património transmitido não constavam bens imóveis, nem direitos de arrendamento, excepto o direito de arrendamento relativamente a um pequeno corredor, com a área aproximada de três metros quadrados, que serve como acesso secundário ao estabelecimento, o qual tinha cerca de cento e vinte metros quadrados.

Segundo a tese defendida pela AT, o facto de se incluir no património a transmitir o direito ao arrendamento do referido corredor era suficiente para que a factualidade se pudesse subsumir no conceito de “trespasse de estabelecimento comercial”, previsto no mencionado ponto 27.1 da TGIS.

Já a decisão recorrida refutou este entendimento, considerando, essencialmente, que: i) o conceito de trespasse de estabelecimento comercial utilizado no ponto 27.1 da TGIS não se encontra definido no CIS e que, por essa razão, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 11.º da LGT se deve interpretar aquele instituto jurídico com o sentido que o mesmo tem no direito civil e comercial; ii) é actualmente pacifico na doutrina e na jurisprudência civilísticas que um trespasse pressupõe “a transmissão definitiva do estabelecimento em conjunto com o gozo do prédio onde o estabelecimento labora”; iii) a AT considera que só existe trespasse se existir a transmissão do direito ao arrendamento do prédio onde o estabelecimento labora, mas que, neste caso, o facto de o direito ao arrendamento transmitido se limitar ao de um corredor de acesso ao estabelecimento, não abrangendo o prédio onde o estabelecimento labora, não é suficiente para “desqualificar” ou “descaracterizar” o negócio como trespasse, o que não tem sentido; iv) o “corredor”, cujo direito ao arrendamento se transmitiu, é apenas um acesso secundário ao estabelecimento e, por isso, não pode ter-se como condição essencial ou necessária ao exercício da actividade, pelo que não é suficiente para caracterizar a existência de um trespasse.

A interpretação do direito formulada na sentença recorrida e a solução que verteu para a solução do caso não merecem reparo. Vejamos.

A Recorrente concorda com a interpretação de que o IS previsto na verba 27.1 da TGIS só será devida quando tenha lugar um trespasse e, para o efeito, afirma expressamente na fundamentação da sua decisão [v. ponto R da matéria de facto assente] que um negócio jurídico só se subsume àquele conceito se a transmissão do estabelecimento comercial integrar a transmissão do direito ao arrendamento urbano para fins não comerciais do espaço onde aquele estabelecimento labora.

E este é um pressuposto de facto que a Recorrente mobiliza no âmbito da sua interpretação e aplicação uniforme do direito, podendo ler-se na informação vinculativa emitida no proc. 2010003290 que “na situação de entrada de activos como sucede no caso em apreço, em que não se incluirá prédio ou parte de prédio objecto de arrendamento, não se verifica … a transmissão da posição do locatário independentemente da vontade do locador", constata-se que não está preenchido aquele requisito, logo, sobre a operação referida não incide imposto do selo da verba 27.1.” e na informação vinculativa emitida no proc. 2011002704 que “ Em face da lei atual deve entender-se que só incide imposto do selo da verba 27.1 da TGIS sobre a constituição/aumento de capital social de uma sociedade em que se verifica que a entrada de um ou mais sócios é realizada em espécie, mediante a transferência para a nova sociedade do património (ativo e passivo) que constitui o estabelecimento comercial do(s) contribuinte(s), quando o mesmo integre a transmissão do direito de arrendamento urbano para fins não habitacionais” [disponíveis em https://info.portaldasfinancas.gov.pt/].

Quer isto dizer que a AT apenas qualifica como trespasse para efeitos de tributação ao abrigo do ponto 27.1 da TGIS um contrato de constituição de sociedade [como o que está em causa aqui – ponto C da matéria de facto assente] em que a entrada de activos inclua o estabelecimento e o direito ao gozo do prédio onde este labora, ou seja, que inclua a transmissão do direito ao arrendamento (ou de outro direito que permita o gozo) do espaço de laboração do estabelecimento.

Assim, a questão que consubstancia o litígio dos autos é apenas a de saber – como bem inferiu o Tribunal a quo – se o contrato de arrendamento do corredor de acesso ao estabelecimento que aqui foi transmitido é, em si, suficiente para caracterizar o negócio jurídico como um trespasse.

E concordamos inteiramente com a interpretação alcançada no aresto recorrido de que esse contrato, pelo carácter secundário e acessório do “bem arrendado”, é insuficiente e desadequado para caracterizar o negócio jurídico como um trespasse. Com efeito, está em causa não o espaço onde o estabelecimento labora, cuja transmissão foi expressamente excluída [v. ponto C da matéria de facto assente], mas apenas um espaço secundário, de acesso ao espaço onde o estabelecimento labora, de tamanho reduzido (3m2) face à área onde o estabelecimento labora (120m2) e que tem natureza acessória, pois não é sequer a via de acesso principal ao espaço do estabelecimento.

Assim, cabe concluir, como concluiu o Tribunal Tributário de Lisboa, que a transmissão do direito ao arrendamento deste espaço não permite qualificar o negócio jurídico em causa como um trespasse, e, por isso, também não permite subsumi-lo à incidência do IS previsto na verba 27.1 da TGIS.

III - Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 10 de Novembro de 2021. - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) - Pedro Nuno Pinto Vergueiro – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia.