Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0172/22.3BCLSB
Data do Acordão:02/29/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
REQUISITOS
Sumário:
Nº Convencional:JSTA00071825
Nº do Documento:SA1202402290172/22
Recorrente:A...
Recorrido 1:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO

1. Relatório:
A... vem, nos termos do art.º 150º do CPTA, recorrer do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 13 de Abril de 2023, que na ACÇÃO por si intentada contra a FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL, sendo contrainteressada a B... SAD, negou provimento ao recurso interposto da decisão do Tribunal Arbitral do Desporto de Lisboa o qual, por seu turno, julgou, por unanimidade, improcedentes, por não provados, os pedidos por si formulados, nomeadamente:
a) Declarar-se que a Demandada se constituiu na obrigação de indemnizar a Demandante pelos danos sofridos com os factos narrados na p.i., nos termos dos artigos 483.º, n.º 1 e seguintes do CC, 1.º, 3.º, 7.º, 9.º e 10.º da Lei 67/2007, de 31 de dezembro, quer em sede patrimonial, quer não patrimonial.
b) Subsidiariamente, declarar-se que a Demandada se constituiu na obrigação de indemnizar a Demandante pelos danos sofridos com os factos narrados na p.i., nos termos dos artigos 483.º, n.º1 e seguintes do CC, e artigo 16.º, da Lei 67/2007, de 31 de dezembro, quer em sede patrimonial, quer não patrimonial.
c) Ser a Demandada, por qualquer das vias invocadas em III e IV da p.i. e constantes do peticionado em a) e b), condenada a pagar à Demandante a indemnização já apurada de 404.968,49 € (quatrocentos e quatro mil novecentos e sessenta e oito euros e quarenta e nove cêntimos), tudo acrescido de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral e efetivo pagamento, condenação que se pede com base no supra alegado nos artigos 257.º a 294.º desta p.i., tudo acrescido de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral e efetivo pagamento.
d) Ser a Demandada condenada a pagar à Demandante a indemnização pelas quantias alegadas nos artigos 295.º, 296.º e 297.º desta p.i., cujo valor exato não foi possível apurar com rigor e exatidão, cujo apuramento se relega para liquidação em execução de sentença, mas no que a Demandante deve ser condenada a pagar, tudo acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor desde a citação até integral e efetivo pagamento”.
*
Na respectiva acção o Tribunal Arbitral do Desporto decidiu:
a) Julgar totalmente improcedentes, por não provados, todos os pedidos peticionados pela Demandante e, em consequência, absolver a Demandada de todos os pedidos contra si formulados.
b) Determinar que as custas são da responsabilidade da Demandante, sendo que, atento o valor do processo de 404.968,49 euros (quatrocentos e quatro euros, novecentos e sessenta e oito euros e quarenta e nove cêntimos), se fixam no valor de 25.000,00 € (vinte e cinco mil euros) correspondentes aos honorários do coletivo de árbitros, acrescido de 4.500 € (quatro mil e quinhentos euros) correspondentes à taxa de arbitragem, e de 450,00 € (quatrocentos e cinquenta euros) correspondentes aos encargos administrativos, valores a que deverá acrescer IVA à taxa legal em vigor (cf. artigo 34.º, n.º2 do CPTA, artigos 76.º e 77.º da Lei 74/2013, de 6 de setembro e Portaria 314/2017, de 24 de outubro, que alterou a Portaria 301/2015, de 22 de setembro).”
Interposto recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, este negou provimento ao recurso jurisdicional, confirmando a decisão recorrida.
Deste aresto foi interposto o presente recurso de revista.
Na sua motivação de recurso o Recorrente – A... – concluiu
1.ª A recorrente não se conforma com o Acórdão proferido pelo douto Tribunal Central Administrativo do Sul, porquanto se considera que o Tribunal recorrido realizou uma menos correta interpretação e aplicação do direito ao caso concreto, como adiante se vai demonstrar.
2.ª Ora, no caso sub judice, e na temática sobre a qual a recorrente peticiona a apreciação deste Tribunal, entende-se estar em causa questão de elevada relevância jurídica e social, para além de que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
3.ª De facto, em discussão neste processo acabam por estar em causa zonas juridicamente importantes da responsabilidade civil, desde logo por atos ilícitos, constando da definição de ilicitude a referência à violação de normas e princípios constitucionais, e a referência aos deveres objetivos de cuidado, incluindo condutas omissivas.
Acaba assim por estar em discussão, no caso concreto, a usualmente designada culpa in vigilando (omissão dos deveres de vigilância), expressamente consagrada no n.º 3 do artigo 10.° do RRCEE, designadamente para saber se da parte da recorrida existiu alguma violação daquela norma, ou se não lhe era exigível outra atuação no sentido de evitar a violação das normas legais e regulamentares, e no sentido da defesa da verdade desportiva. Sabendo-se que a omissão de deveres de vigilância impostos por lei, regulamento, norma técnica ou dados da experiência pode referir-se a coisas, pessoas e atividades.
5.ª Em discussão no presente processo, e pese embora a convergência dos juízos firmados pelas instâncias, acaba também por estar outra matéria muito relevante no âmbito da responsabilidade civil, agora por factos lícitos, pois no caso concreto somos confrontados com uma questão jurídica que envolve complexidade já que respeitante aos contornos e pressupostos em que a pretensão indemnizatória se mostra deduzida pela recorrente, enquanto responsabilidade civil decorrente/emergente de situação de imposição de sacrifício por razões de interesse e salvaguarda de uma competição desportiva, existindo necessidade de apreciar e dilucidar os conceitos de indemnização pelo sacrifício, e de como compatibilizar a implementação de políticas desportivas de salvaguarda das competições, da regularidade das competições, com a limitação ou o sacrifício de outros direitos, designadamente, o direito à ética e verdades desportivas, conforme previsto aliás nos artigos 3° e seguintes da Lei de Bases da atividade física e do desporto, o direito à responsabilização das entidades públicas pelas omissões praticadas no exercício das suas funções, e os princípios da proporcionalidade e justiça, conforme previstos nos artigos 266° e sgs. do CRP.
6.ª Essa quaestio juris sob dissídio, prende-se pois com os pressupostos da responsabilidade fundada na indemnização pelo sacrifício de harmonia com o previsto no art. 16.° da Lei 67/2007, se esses estão preenchidos no caso concreto, e, em caso positivo, saber então qual a abrangência dos danos indemnizáveis.
7.ª Note-se que ao decidir substituir uma sanção disciplinar, uma sanção de derrota, por uma outra sanção, no fundo, o que a FPF faz é invocar uma impossibilidade lícita de executar uma decisão, o que faz porque — segundo alega - o tempo adequado para obter um efeito útil já passou, e o que faz para efeitos de salvaguarda das competições e dos seus interesses desportivos organizativos.
8.ª No mais, seja admissível a presente revista no âmbito da responsabilidade civil por factos ilícitos, ou seja - ao invés - admissível no âmbito da responsabilidade por factos lícitos, a verdade é que a relevância social do presente recurso é - também ela - incontestável, pois assume especial relevância social a forma como a comunidade olha para o fenómeno desportivo e para a verdade e ética desportiva, sendo incompreensível que se privilegiem os clubes incumpridores, que esses permaneçam nas divisões desportivas superiores, por existir regulamentação da FPF incapaz de executar as sanções, incapaz de suspender ou impedir a homologação de um jogo, e incapaz de compensar os clubes prejudicados pela inexecução daquelas decisões.
9.ª Admitir, como fez o TCA Sul, que o incumprimento normativo e regulamentar dos clubes, e que a inexecução das sanções disciplinares, não tem qualquer efeito, com a justificação de todos saberem “as regras do jogo" - ao arrepio do entendimento de toda a comunidade desportiva e das instâncias internacionais do Futebol - é fomentar este tipo de comportamentos o que se afigura gravíssimo do ponto de vista da repercussão social que este sentimento de impunidade e de inconsequência pode originar.
10.ª A falta de ação da Federação Portuguesa de Futebol para repor a verdade e éticas desportivas, constitui um convite à permanência e repetição do tipo de condutas em apreço, de adultério, de falsificação da documentação desportiva para efeitos de participação nas competições, o que potência e gera um total desrespeito pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem, disciplinam e gerem o futebol em Portugal.
11.ª Por fim, para além da jurisprudência mais atual sobre o assunto e que melhor se invocará no corpo das alegações, entende-se que o presente caso assumirá algum melindre e dificuldade, revelando-se dotado de complexidade, sendo muito importante obter a pronúncia dos Juízes do Supremo Tribunal de Justiça, até por uma questão de interpretação do direito e das decisões emitidas pelas diferentes instâncias, sendo certo que o tribunal a quo, salvo o devido respeito e salvo melhor entendimento, acaba por não avançar com uma interpretação cabal quanto às alegações da recorrente, limitando-se praticamente a reproduzir o decidido pelo TAD.
12.ª Por conseguinte, a melhor aplicação do direito funda-se na errada interpretação e aplicação, nomeadamente dos artigos 7°, n.º 3, 9º, números 1, 2 e 7, 10°, ns.° 2 e 3, e 16°, todos da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, e artigos 483°, 487°, 491°, 493°, 563°, 564° e 566°, todos do C.C.
13.ª A relevância jurídica das questões é fundamental, porquanto assume importância objetiva, perante uma plausível repetição, visto nela se verificar capacidade de expansão da controvérsia, já que suscetível de se projetar ou de ser transponível para fora do âmbito dos autos e para outras situações futuras indeterminadas, apresentando, assim, interesse para a comunidade jurídica. Daí que o presente recurso, a sua admissibilidade e apreciação, seja uma necessidade para uma melhor aplicação do direito, e seja ainda importante por uma questão de Justiça, Justiça que - na visão da recorrente - não está a ser feita.
Posto isto:
14.ª Como consta dos factos provados no Acórdão do TAD e do Acórdão recorrido a Contrainteressada B... foi condenada por ter feito constar na ficha técnica do jogo um agente desportivo não regularmente inscrito.
15.ª Com efeito, esse facto tem obrigatoriamente de ser do conhecimento da Demandada logo no dia em que o jogador é inscrito na ficha técnica desse jogo em específico, em competição organizada pela Demandada, pela Federação Portuguesa de Futebol. Assim como também é do conhecimento da demandada o momento em que a B... procede à substituição daquele exame médico desportivo, logo no dia 18 de Abril. E tudo por aplicação das seguintes disposições legais: artigo 8º do Decreto-lei nº 345/1999, alterado pelo DL nº 255/2012 de 29.11, Tabela 7 do Comunicado Oficial nº 1 (época 2017/2018), aplicável por via do disposto no artigo 58°, n.º 3, do Regulamento do Campeonato de Portugal, artigos 40°, nº 1, da Lei 5/2007, e 6º, nº 1 e 8º n°s 3, 4 e 5 do Decreto-Lei nº 345/99, artigos 6º, nº 1 e 8º n°s 3, 4 e 5 do Decreto-Lei n° 345/99, alterado pelo DL nº 255/2012 de 29.11., artigos 42.°, 42°, n° 3, als. e), f) e g), 42°, n° 4,42°, n° 5, e 44° todos do Regulamento do Campeonato de Portugal aplicável à data dos factos.
16.ª A Demandada FPF, conhecendo da inscrição do jogador AA, com a licença FPF n.º ...25, em 15 de Agosto de 2017, como jogador júnior, classe amadora, pela B... SAD, na época desportiva 2017/2018, conhecendo desde então do exame médico-desportivo do qual não consta qualquer autorização para que o mesmo possa competir em escalão superior, e conhecendo que no dia 15 de Abril de 2018, o jogador AA, com a licença FPF n° ...25, foi inscrito com o número ...0 na Ficha Técnica do jogo oficialmente identificado pelo n° 260.03.225, disputado entre o A... e a B... SAD, a contar para a 29ª jornada da série C do Campeonato de Portugal, da época desportiva 2017/2018, não atuou com os deveres de cuidado, fiscalização, vigilância, e outros, que se se lhe exigiam, designadamente zelando pela conformidade da documentação relativa a atos de inscrição de agentes desportivos, prevenindo a utilização fraudulenta dos mesmos nos jogos e competições, prevenindo as práticas que pudessem afetar a integridade dos jogos e/ou competições, prevenindo a violação dos Estatutos, Leis do Jogo, regulamentos, diretivas e decisões da FIFA, da UEFA e da FPF, mais envidando os seus melhores esforços para esse efeito e para o respeito dos princípios da ética, da lealdade e da verdade desportiva.
17.ª Como cabalmente se demonstrou, a inscrição do jogador em causa na ficha técnica do jogo e no jogo ocorrido em 15 de Abril de 2018 foi obrigatoriamente do conhecimento da Demandada naquele mesmo dia. E se não o foi, sempre teria de o ser, não agindo a demandada conforme se lhe exigia.
18.ª Pelo que a demandada não respeitou os princípios da ética e verdade desportiva, e nem agiu em conformidade, nomeadamente zelando pela conformidade da documentação relativa a atos de inscrição de agentes desportivos e participação em jogos de futebol; a demandada não preveniu a violação dos Estatutos, Leis do Jogo, regulamentos, diretivas e decisões da FIFA, da UEFA e da FPF, envidando os melhores esforços para que os mesmos fossem cumpridos pelos seus Sócios, e neste caso pela Cl, conforme Art° 2º, n° 5, dos Estatutos da F.P.F.; a demandada não atuou de modo a prevenir as práticas que pudessem afetar a integridade dos jogos e/ou competições ou, de algum modo, a prejudicar o futebol, conforme art° 2°, n° 8, dos Estatutos da F.P.F.; e a Demandada não defendeu os valores da ética, da lealdade, da verdade desportiva e do fairplay. - Art.° 3º, n° 3, dos Estatutos da F.P.F. - até porque lhe competia assegurar a conformidade das inscrições dos jogadores de acordo com os Regulamentos da F.P.F. e bem assim exercer o poder disciplinar nos melhores termos legais. - Art.° 5°, dos Estatutos da F.P.F.
19.ª Ao contrário do que expressamente entenderam os tribunais a quo, defendendo inexistir qualquer violação do dever de vigilância, a verdade é que, como se demonstra, a responsabilidade da demandada é por culpa na falta de vigilância das competições que organiza, a qual é ainda cruzada por culpa de serviço.
20.ª De facto, tendo em atenção os pressupostos em que assenta a responsabilidade civil extracontratual do Estado, entende a demandante que o facto voluntário foi concretizado de modo ilícito, existindo além do mais um desvalor formulado pela ordem jurídica, com violação de deveres jurídicos, conforme estabelece o n° 1 do artigo 9.° do RRCEE.
21.ª Com efeito, passaram a constar da definição de ilicitude a referência à violação de normas e princípios constitucionais e aos deveres objetivos de cuidado, incluindo condutas omissivas. Em matéria de omissões, até foi expressamente consagrada a usualmente designada culpa in vigilando (omissão dos deveres de vigilância), no n° 3 do artigo 10° do RRCEE, que já era há muito admitida pela doutrina e jurisprudência, estabelecendo-se, nessas situações uma presunção de culpa leve, que desonera o lesado da prova desse pressuposto da responsabilidade.
22.ª Acrescenta-se ainda que também existe ilicitude quando a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos resulte do funcionamento anormal do serviço, segundo o disposto no n° 3 do artigo 7° do mesmo diploma legal.
23.ª A referência à violação ilícita dos direitos e interesses legalmente protegidos também é feita por referência à violação de deveres de vigilância como bem o determina o artigo 10º da Lei 67/2007, de 31 de dezembro.
24.ª De todo o modo, a ilicitude sempre traduzirá uma qualificação do facto: o facto não é naturalisticamente ilícito, apenas adquirindo essa qualidade em face do contexto jurídico que o classifica. É precisamente o caso dos autos.
25.ª Ora, a definição dos deveres que a demandada estava obrigada a cumprir, enquanto organizadora e responsável pelas competições, é à responsabilidade civil, nos termos em que está concebida no RRCECE e no Código Civil.
26.ª Os deveres em causa correspondem a deveres de atenção/acompanhamento das atividades a ser desenvolvidas relativamente ao objeto da vigilância, que corresponde semanticamente a uma obrigação de vigiar, decorrente da previsão legal específica que consagra o dever; e a deveres de intervenção nos casos em que se verifique a iminência de ofensa de um direito de terceiro, que, uma vez consumado, pode redundar na aplicação do regime de responsabilidade civil constante dos artigos 483° e seguintes do Código Civil.
27.ª Poder-se-á assim definir o dever de vigilância legal como o dever de levar a cabo um conjunto de ações com vista a limitar riscos alheios ao próprio sujeito, através do acompanhamento de determinado objeto e de intervenção junto deste.
28.ª Foram estes deveres de vigilância que a Demandada não conseguiu cumprir, ou, pelo menos, não conseguiu ilidir a sua culpa presumida, pois a verdade é que nenhuma prova em contrário fez em relação às alegações da Demandante.
29.ª Ora, os atos são considerados ilícitos, nos termos do artigo 9° quando violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objetivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos (artigo 9.°, n° 1 do RRCEE), o que se verifica igualmente nas situações de funcionamento anormal do serviço (artigos 9.°, n° 2, e 7º, do RRCEE).
30.ª Quanto à culpa, a Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, estabelece uma presunção de culpa leve, quando sejam praticados atos jurídicos ilícitos (artigo 10.°, n° 2 do RRCEE), acrescendo ainda uma presunção de culpa, prevista no n° 3 do artigo 10.° do RRCEE, nos casos de incumprimento dos deveres de vigilância.
31.ª No caso, a demandada sempre admitiu como notória (expressão que consta do despacho de acusação proferido no âmbito do processo disciplinar) a alteração do conteúdo do exame médico-desportivo do jogador AA, tanto que no próprio Acórdão proferido pelo Conselho de Disciplina da FPF, no âmbito do Processo Disciplinar n.º ..., é referido que se “afigura evidente que os factos constantes dos pontos 19) e 20), que representam a perceção por simples análise ótica e à vista desarmada (como, aliás, aduzia o libelo acusatório), por um lado, das diferenças existentes entre o ficheiro “pdf” de fls. 9 e 10 e o original de fls. 276 e 276 verso, e, por outro, das semelhanças entre aquele “pdf” de fls. 9 e 10 e o “pdf de fls. 11 e 12, não constituem materialidade eme requeira a produção de prova pericial (...), antes decorrem do simples exame e confronto dos documentos juntos aos autos. Na verdade, estulto não será dizer-se que a única capacidade necessária e imprescindível para a aferição das diferenças sindicadas nos pontos 19) e 20), alcançadas por simples análise ótica e à vista desarmada, é a da visão, que não é exclusiva de peritos que pudessem ser nomeados para uma tal tarefa”,
32.ª Por sequela, sendo notória aquela falsificação do documento, a qual se percebe bastando apenas abrir os olhos, é patente que a demandada, por via dos deveres de fiscalização, vigilância, e outros, que lhe incumbiam, poderia ela própria ter percebido logo a irregularidade na utilização de jogadores da categoria júnior pela B..., no jogo que opôs, no dia 15 de abril de 2018, as equipas de futebol da Demandante e da B..., e com isso providenciar pela não homologação, ou suspensão da homologação daquele jogo.
33.ª No caso concreto, a Demandada não ilidiu a presunção de cumprimento que sobre ela impendia, desde logo porque para que se possa afastar aquela presunção não é suficiente que a FPF alegue que o período de tempo era insuficiente para impedir a homologação do resultado, ou que era insuficiente para impedir a utilização daqueles jogadores irregulares, até porque entre o dia ../../.... e o dia … passaram cerca de 8 dias, e em 8 dias podia a demandada, por exemplo, ter exercido as suas competências legais, aplicando as medidas provisórias adequadas, quer para salvaguardar o efeito útil da decisão final, quer para evitar a lesão grave e de difícil reparação dos interesses da Demandante e também dos interesses públicos envolvidos na organização das competições da FPF, tal como impunha o art.° 230°, n.º 1, do RD da FPF.
34.ª A Demandada não conseguiu fazer prova do cumprimento do concreto dever de assegurar permanentemente a regularidade e legalidade das competições que organiza.
35.ª É verdade que não poderá a Demandada assegurar em absoluto a regularidade das competições, e designadamente que certos e determinados clubes de futebol cometam infrações em prejuízo da verdade desportiva, mas tal não deve traduzir-se na condescendência com uma atuação que não seja claramente diligente e esforçada no sentido de garantir essa verdade e essa ética desportiva, pois é isso que se espera de uma Federação Desportiva de Futebol com utilidade pública.
36.ª A experiência acumulada pela Demandada, a apreciação do cumprimento do dever de diligência, segundo o padrão do “bom pai de família”, a que alude o art. 487°, n° 2, do CC, deve guindar-nos a um plano de elevada exigência, tendo em conta, além do mais, que a mesma exerce uma atividade lucrativa, devendo, por isso, mobilizar meios humanos, materiais e financeiros ajustados a evitar infrações semelhantes e que acabam por prejudicar clubes terceiros.
37.ª Com efeito, não resulta que a demandada, dentro dos elevados padrões de exigência no cumprimento a considerar, tenha esgotado todas as possibilidades que estavam ao seu alcance para, num plano de razoabilidade, aperceber-se da falsificação daqueles exames, daquela documentação, e promover a suspensão ou não homologação do resultado desportivo em causa.
38.ª Nestas circunstâncias, cremos que será a favor do lesado, e não da demandada, que a dúvida terá de resolver-se, de acordo com o disposto no artigo 350 do C.C..
39.ª Bastar-nos com a demonstração de que a FPF teria pouco tempo para agir, que teria pouco tempo para se aperceber da infração e evitar a homologação automática do resultado, seria abrir a porta para que uma mera aparência de vigilância, controlo e fiscalização fosse suficiente para libertar a Demandada de qualquer responsabilidade.
40.ª Dos elementos disponíveis, resulta que ficaram provados os pressupostos da responsabilidade civil que ao A. lhe competia provar, designadamente, o facto e os danos, bem como o respetivo nexo de causalidade entre ambos (art° 483° do CC).
Subsidiariamente. caso assim não se entenda:
41.ª É entendimento da recorrente que o caso concreto é de facto subsumível ao regime da responsabilidade civil extracontratual por atos/factos lícitos.
42.ª Ora, os atos e factos lícitos em causa estão já identificados pela recorrente na sua p.i.. Dessarte, foi a demandada que decidiu proceder à substituição da sanção, aplicada à Cl, de derrota no jogo oficialmente identificado pelo jogo n.º 260.03.225, disputado entre o A... e a B... SAD, a contar para a 29ª jornada da Série C do Campeonato de Portugal, época desportiva 2017/2018, pelo facto do resultado desportivo já estar homologado, e foi a demandada que decidiu executar a decisão disciplinar como executou, não ordenando a reintegração da demandante, nem iniciando qualquer procedimento nesse sentido...
43.ª E não é só a opção regulamentar da FPF que está em causa, é também a opção que a R. tomou em tramitar o procedimento como tramitou, em decidir como decidiu e em executar a decisão disciplinar como a executou.
44.ª Opções alheias à recorrente, devendo a recorrida arcar com as consequências por essas opções, pois, não fosse isso, a recorrente teria continuado a competir no Campeonato de Portugal, ou teria sido reintegrada.
45.ª Os atos estão identificados, assim como estão já na sentença e Acórdão recorridos justificados o nexo de causalidade e a satisfação do interesse público.
46.ª De facto, na Contestação apresentada no âmbito do presente processo, a demandada confessou, nos artigos 43°, ii), e 163° daquele articulado, que agiu assim para salvaguardar a estabilidade das competições, e que se assim não o fizesse “tal colocaria em sério risco a estabilidade da competição”, o que vem no seguimento do preceituado no artigo 13°, n.º 2, do RD da FPF.
47.ª Também a questão do prejuízo especial e anormal nos parece lapidar, na medida em que a demandada prejudicou muito o A..., alterando irreversivelmente as condições financeiras e desportivas do clube, com perda de receitas, patrocínios, lucros, contratos, oportunidades de negócios, em valores muito avultados, e que acima se propõem dar como provados.
48.ª O prejuízo especial que foi imposto à recorrente não foi imposto à generalidade das pessoas, mas sim a entidade certa e determinada em função de uma relativa posição específica; sendo que os prejuízos anormais que a recorrente sofreu e se encontra a sofrer não são inerentes aos riscos normais da vida em sociedade. Também foi a recorrente que foi colocada em situação desigual em relação aos demais clubes, já que foi ela que desceu de divisão e não “...os demais clubes em competição.’’
49.ª Apelando-se a recorrente à aplicação da seguinte jurisprudência: Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 21,01.03, proferido no recurso 990/02, Acórdão do STA, de 9,12.08, proferido no recurso 1088/02, Acórdão do TCAN, em 10/12/2010, in proc. 152/04.
50.ª Quanto à imprevisibilidade e desconhecimento do sacrifício como condição para a obrigação de indemnização, diga-se que jamais a recorrente, no início da época, ou mesmo na 29.ª jornada, iria prever a aplicabilidade do artigo 13°, n.º 3, e 29° e n.º 2 do RD da FPF para a época 2017/2018, sendo certo que a conclusão do tribunal a quo não se firma em qualquer jurisprudência ou doutrina.
51.ª No caso o tribunal a quo deveria ter determinado a indemnização por todos os danos emergentes especiais e anormais, patrimoniais e não patrimoniais, permitindo uma adequação da indemnização à situação concreta.
Ou seja,
52.ª O Tribunal a quo violou as seguintes normas legais: artigo 8° do Decreto-lei n.º 345/1999, alterado pelo DL n.º 255/2012 de 29.11, Tabela 7 do Comunicado Oficial n.º 1 (época 2017/2018), artigos 42°, 44°, 57°, números 1, 3 e 5, 58°, n.º 3, ambos do Regulamento do Campeonato de Portugal, artigos 40°, n.º 1, da Lei 5/2007, e 6°, n,° 1, 7º, n. 3, e 8º n°s 3, 4 e 5 do Decreto-Lei n.º 345/99, alterado pelo DL n.º 255/2012 de 29.11; artigos 3º, 4°, 5°, 6º, 7°, 8°, 9°, 10° e 13°, todos do CPA; artigos 2°, números 5 e 8, 3°, n. 3, 5°, e 8º, n. 2, todos dos Estatutos da F.P.F.; artigos 6°, números 1, 2 e 3, 7º, números 3 e 4, 13°, e 15°, n.º 3, 29°, 78°, 91°, 215°, números 1 e 2, 217°, n.º 1, 222°, n. 1, alíneas a) e b), e números 2, 3 e 4, 223°, 230°, números 1 e 2, 232°, n.º 1, 237°, 241°, 245°, e 249°, números 1, 2 e 3, 255°, n.º 1, todos do Regulamento Disciplinar da FPF aplicável à data, e ainda os artigos 43°, n.º 1, 52°, n.º 1, do RJFD, artigo 15° do Regimento do CD, publicado pelo CO da FPF N° 188, com data de 2018/01/09, artigos 20° da CRP, artigos 7º, n.º 3, 9º, números 1, 2 e 7, 10°, ns.° 2 e 3, todos da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, e artigos 483°, 487°, 491° e 493° do C.C.
53.ª Ou caso assim não se entenda, sempre se diga que o tribunal a quo violou, por erro e interpretação, as seguintes normas legais: 483°, 563°, do CC e 16° da Lei 67/2007.
Finalmente,
54.ª Ainda que o tribunal a quo não tenha dado como procedente a impugnação da matéria de facto operada pela recorrente, a verdade é que as instâncias são pacíficas num ponto: a recorrente sofreu prejuízos efetivos com a descida de divisão, ainda que não seja possível fixar com exatidão o montante dos danos patrimoniais sofridos.
55.ª Não sendo possível fixar com exatidão o montante dos danos patrimoniais que resultariam da execução da sanção de derrota da B..., então a indemnização tem de ser fixada com recurso à equidade.
56.ª A aqui recorrente goza de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, conforme Despacho proferido pelo ISS, Ref.ª ...22..., com data de 06/07/2022. - Cfr. Doc. 1
Nestes termos e nos melhores de direito, deve a decisão recorrida nas parte aqui impugnadas ser revogada, substituindo-a por outra que determine a procedência do presente recurso, conforme alegado e concluído, seguindo-se os demais termos legais, assim se fazendo a costumada e boa JUSTIÇA.»
1.6. A recorrida – Federação Portuguesa de Futebol – contra-alegou, concluindo como segue:
«1. O Recorrente vem interpor recurso do tem por objeto o Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, proferido em 13 de Abril de 2023, que julgou, por unanimidade, improcedentes, por não provados, todos os pedidos peticionados pelo Recorrente, designadamente o direito a uma fixação fixada nos termos melhor descritos infra, em virtude de uma alegada decisão ilícita do Conselho de Disciplina, corroborada pelo Conselho de Justiça, ambos da aqui Recorrida;
2. Entende o Recorrente que a decisão recorrida deve ser revogada, porquanto se verifica erro de interpretação e aplicação do direito ao caso concreto;
Sem razão, senão vejamos,
3. Dispõe o artigo 150.º do CPTA que apenas são recorríveis para o STA, “decisões proferidas em segunda instância pelo TCA, quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”;
4. Mais dispõe o artigo 150.º, n.º 2 que “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista”;
5. O Recorrente pretende fazer deste recurso de revista e do STA uma terceira (ou quarta, se tivermos em consideração a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina e pelo Conselho de Justiça da Recorrida) instância de apreciação deste caso, o que, como se sabe, não é possível;
6. O STA não pode ser chamado a pronunciar-se sobre todas as questões que lhe são colocadas, mas apenas quando a sua intervenção seja necessária para uma melhor aplicação do direito;
7. A questão em apreço não é suscetível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros, ao contrário do que alega o Recorrente, pelo que, não se trata de questão com relevância social fundamental, porquanto não está em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, pelo que, não se vislumbra que a decisão deste STA extravase os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio;
8. Não se olvide que as duas instâncias (TAD e TCAS), que se pronunciaram sobre o que se discute nos autos, foram unânimes em considerar improcedentes todos os pedidos formulados pelo Recorrente, não se verificando qualquer divisão de correntes jurisprudenciais que potenciem a incerteza e instabilidade na sua resolução que imponha a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas, até porque, diga-se, não se verifica – nem o Recorrente demonstra, como lhe competia – que tais instâncias tenham tratado a matéria em crise nos autos de forma errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente inútil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema;
9. Além de se tratar de matéria que não assume qualquer complexidade – responsabilidade civil extracontratual do Estado – o que se discute nos presentes autos é também e acima de tudo, uma questão de prova que o Recorrente não logrou fazer, tanto mais que, o Tribunal a quo, por diversas vezes o afirma;
10. Se o que está em causa é a responsabilidade da Recorrida, por força do Regime Jurídico da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e se o Recorrente nem sequer logrou provar os danos que alegadamente tal conduta lhe provocou, toda a discussão que se possa querer ter neste STA é estéril, porquanto, reitere-se, esta instância não pode, nem discutirá questões de prova;
11. Nenhuma das questões trazidas ao crivo deste Tribunal se revela de uma complexidade jurídica superior ao comum, não podendo este STA ser chamado a pronunciar-se sobre questões que em nada vão contribuir para uma melhor aplicação do direito;
12. Acresce que não estamos na presença de questões susceptíveis de poderem ser consideradas como questões de relevância jurídica ou social fundamental que justifiquem a admissão da revista, pelo que não deve a mesma ser admitida; Prosseguindo,
13. O Recorrente peticiona nos presentes autos uma indemnização calculada nos seguintes termos: (i) € 404.968,49 (quatrocentos e quatro mil novecentos e sessenta e oito euros e quarenta e nove cêntimos), a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, por força dos danos alegadamente sofridos pela Demandante por ato – lícito ou ilícito – praticado pela Recorrida; (ii) Valor não concretamente apurado, cujo apuramento o Recorrente remete para liquidação em execução de sentença, relativo aos factos descritos nos artigos 295.º, 296.º e 297.º da PI, a saber, receitas que o Recorrente deixou de auferir, relativas a receitas de bilheteira, transmissões televisivas, prémios e outras quantias atribuídas a equipas que disputem ao Campeonato de Portugal, e bem assim, desvalorização considerável do plantel que resultou numa alegada diminuição de negócios de passes de jogadores por ato – lícito ou ilícito – praticado pela Recorrida; (iii) Juros de mora calculados à taxa legal sobre os valores peticionados e supra mencionados, desde a citação até integral pagamento;
14. A Recorrida, como bem decidiu o Tribunal a quo, não praticou qualquer ato ilícito suscetível de criar uma obrigação de indemnizar o Recorrente por força do regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado;
Enquadremos os factos:
15. O Recorrente apresentou junto dos serviços da Recorrida, em 20 de Abril de 2018, uma exposição de factos – fls 1 dos autos de processo disciplinar (doravante PD) – relativa à alegada utilização irregular de jogadores em jogo realizado entre o Recorrente e a B... SAD (doravante CI), jogo realizado a 15 de Abril de 2018.
16. O referido jogo dizia respeito ao Campeonato de Portugal, cuja fase regular – campeonato por pontos – terminaria a 22 de Abril de 2018 –, dois dias após a exposição apresentada pelo Recorrente, facto que assume importância nos presentes autos, como bem decidiu o Tribunal a quo.
17. Nesta sequência, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho de Disciplina da FPF determinou a instauração de processo de averiguações dirigido ao apuramento da regularidade – e eventual relevância disciplinar – da utilização de jogadores da categoria júnior pela B..., SAD, no jogo oficialmente identificado pelo n.º 260.03.225, que opôs, no dia 15 de abril de 2018, as equipas de futebol do Demandante e da CI, a contar para a 29.ª jornada do Campeonato de Portugal – época desportiva 2017/2018.
18. No dia 30 de abril de 2018, o processo de averiguações foi autuado e registado sob o n.º ...6/Aver.- 17/18 e distribuído a Relator, nos termos e para os efeitos do previsto no art.º 232.º, n.ºs 4 e 5 do Regulamento Disciplinar da Federação portuguesa de Futebol (doravante RDFPF), à data vigente, após o que, no mesmo dia, foram os autos conclusos à Comissão de Instrução Disciplinar da FPF (doravante CID).
19. Em 13 de Junho de 1018, a senhora Instrutora do referido processo de averiguações, propôs ao abrigo do disposto no art.º 249.º, n.º 2 do RDFPF2017 (doravante RD da FPF – mas sempre com referência ao RD da FPF 2017/2018, vigente à data dos factos), a conversão do processo de averiguações em processo disciplinar, sugerindo que nos mesmos assumisse a qualidade de arguida a aqui CI (cf. fls. 54 a 58 do PD).
20. Posto isto, o referido processo de averiguações, nos termos do n.º 2 do art.º 249.º do RDFPF2017, foi convertido em processo disciplinar contra a Contrainteressada, B..., SAD, em conformidade com o que foram os autos registados e numerados e conclusos à Comissão de Instrução Disciplinar da FPF, sendo distribuídos a Instrutor da Comissão de Instrução Disciplinar.
21. Neste conspecto e escrupuloso cumprimento regulamentar, findo o inquérito, o senhor Instrutor considerou existirem indícios suficientes da prática de infração disciplinar e, consequentemente, ao abrigo do disposto no artigo 238.º, n.º 1 do RDFPF2018 deduziu acusação contra a arguida (cf. fls. 178 a 190 do PD), a quem imputou a prática de “uma infração disciplinar prevista e sancionada pelo número 1 do artigo 91.º do RDFPF 2017, à qual corresponde, em abstrato, a aplicação da sanção de derrota nos jogos em que os agentes desportivos em causa tenham constado da ficha técnica e cumulativamente com multa entre 10 e 20 UC e, acessoriamente, com reparação, para ressarcir, nomeadamente, as despesas judiciais e extrajudiciais que tiverem ocorrido», acrescentando, em sede de imputação, que «por força da circunstância agravante de reincidência, tais sanções situar-se-ão em derrota nos jogos em que os agentes desportivos em causa tenham constado da ficha técnica e cumulativamente com multa entre 20 e 40 UC e, acessoriamente, com reparação, para ressarcir, nomeadamente, as despesas judiciais e extrajudiciais que tiverem ocorrido”.
22. Tendo sido a acusação notificada à arguida, Contrainteressada nos presentes autos, que apresentou defesa, o senhor Instrutor procedeu à elaboração de relatório final do processo disciplinar, ao abrigo do disposto no artigo 243.º, n.º 1 do RDFPF2018, que consta de fls. 200 a 230 dos autos de PD, e no qual, a final, é proposta a condenação da arguida “pela prática da infração disciplinar prevista e sancionada pelo número 1 do artigo 91.º do RDFPF 2018», na «sanção de derrota por 3 a 0, no jogo n.º 260.03.225, disputado entre o A... e a B... SAD, realizado no dia 15 de abril de 2018, a contar para o Campeonato de Portugal, da época desportiva 2017/2018», na «sanção de derrota por 0 a 3, no jogo n.º 260.03.240, disputado entre a B... SAD e o C... realizado no dia 22 de abril de 2018, a contar para o Campeonato de Portugal, da época desportiva 2017/2018» e, cumulativamente, na «sanção de multa de 10 (dez) UC, isto é, 1020,00 € (mil e vinte euros)”.
23. Posto isto, no dia 7 de março de 2019, os autos foram conclusos ao Relator, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 243.º do RDFPF, após o que, por se encontrarem reunidas as condições processuais para encerramento da fase de instrução, prosseguiram os autos para elaboração de projeto de acórdão, nos termos do artigo 245.º do RDFPF2018 (cf. fls. 321 dos autos de PD).
24. Nessa sequência, o Conselho de Disciplina da Recorrida, veio a sancionar a arguida, aqui Contrainteressada, “nas sanções 2 (dois) jogos à porta fechada e 33,50 UC de multa, o que equivale a € 3.417,00 (três mil, quatrocentos e dezassete euros), pela prática da infração prevista pelo art.º 91.º, n.º 1 do RDFPF2017 e sancionada, no caso concreto, pelo n.º 1 do art.º 91.º do RDFPF2018, por ser, à luz do que dispõe o art.º 10.º, n.º 4 do RDFPF (em ambas as versões), concretamente mais favorável à arguida.”.
25. Cumprirá esclarecer e relembrar desde já, por se tratar de matéria vital para a sorte dos presentes autos, que o CD da Recorrida, substituiu a sanção de derrota, por sanção de jogos à porta fechada, por duas ordens de razões: (i) Porque regulamentarmente, tal possibilidade é-lhe conferida; (ii) Para salvaguardar a estabilidade das competições, em virtude de não ser já possível, à data da sanção, sancionar a arguida – aqui Contrainteressada – com sanção de derrota, em virtude da homologação dos resultados dos jogos sub judice já se haver verificado;
26. Acompanha-se a decisão do TAD, que o Tribunal a quo manteve, quando se afirma, no que aos danos peticionados diz respeito que “a Demandante invoca uma simples operação aritmética para demonstrar que, em virtude da descida de divisão, perdeu donativos de particulares e sociedades, tendo em conta, sem mais, a simples subtração aritmética entre os valores que alega ter recebido no período de 01-07-2017 e 30-06-2018 e os valores que afirma ter recebido no período de 01-07-2018 e 30-06-2019, sendo certo que tais valores são voláteis. Não se pode concluir que o valor concreto, correspondente à quebra de receitas, é exatamente o correspondente à diferença aritmética entre aqueles valores.”
27. Ao contrário do que entende o Recorrente, a prova produzida, não permite concluir pela procedência da pretensão do Recorrente, não permitindo também quantificar os danos que o Recorrente alega e peticiona, daí o Tribunal a quo ter decidido manter a factualidade dada como provada pelo TAD, sem qualquer alteração;
28. No que respeita ao alegado erro de interpretação e aplicação do direito ao caso concreto, sempre se dirá que não assiste razão ao Recorrente;
29. Desde logo, numa alegação nova que não trouxe aos autos em sede de ação arbitral e que nessa medida, não deve ser considerada nesta sede, o Recorrente sustenta que a Recorrida teve conhecimento dos factos no dia do jogo, pelo que deveria ter adotado medidas preventivas, o que não corresponde à verdade;
30. A Recorrida, é uma pessoa coletiva de direito privado que tem por objeto promover, organizar, regulamentar e controlar o ensino e a prática do futebol, em todas as especialidades e competições. Nesse sentido, sustenta o Recorrido que a Recorrida praticou ato administrativo ilícito que lhe causou danos e que devem ser ressarcidos, sendo que, movemo-nos no campo da responsabilidade civil extracontratual do Estado;
31. Andou bem o Tribunal a quo ao considerar que não se encontram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual que permita concluir pela responsabilidade da ora Recorrida pelos danos alegadamente causados – e não demonstrados, pelo que, se conclui que a Recorrida não praticou qualquer ato ilícito;
32. A responsabilidade da ora Recorrida, verificar-se-ia no caso de se comprovar uma conduta por ação ou omissão que consubstancie a prática de facto ilícito, caso tenha sido violada alguma disposição ou princípio constitucional, legal ou regulamentar por parte da Recorrida, o que não se verificou, como bem decidiu o Tribunal a quo;
33. A Lei prevê também que tal responsabilidade possa derivar de um funcionamento anormal do serviço, quando fosse razoavelmente exigível ao serviço uma atuação suscetível de evitar os danos produzidos, caso em que se verificaria também a ilicitude da ação da Administração, in casu, da ora Recorrida, ou ainda se não houver cumprido com o dever de vigilância;
34. No caso concreto, a Recorrida não praticou qualquer ato ilícito, não se tendo verificado qualquer funcionamento anormal dos seus serviços – ou órgãos – de que tenha resultado a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos e que consubstancie a ilicitude do ato praticado;
35. O raciocínio do Recorrente afirma a existência de uma presunção de culpa da ora Recorrida, presunção de culpa desde logo afastada pelos tribunais superiores, como se demonstra nas presentes alegações;
36. A Recorrida não incumpriu com o seu dever de vigilância, improcedendo a alegação do Recorrido de que a Recorrida deveria ter agido desde logo aquando da inscrição dos referidos jogadores ou da inscrição dos mesmos na ficha técnica, momento em que, reitere-se, a infração disciplinar não era do conhecimento do CD da Recorrida, pelo que, havia que provar - e tal competia ao Recorrente – que houve culpa por parte da ora Recorrida, o que aquele não logrou fazer;
37. Sem se demonstrar o preenchimento dos requisitos da ilicitude e da culpa, não poderá a Recorrida FPF ser condenada ao pagamento de quaisquer indemnizações por via da aplicação do regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado, porquanto cumpriu, dentro da legalidade, com todas as obrigações que sobre si impendem, como supra se demonstrou;
Cuidemos de atentar na seguinte realidade factual, não impugnada nos autos
38. O exame médico-desportivo relativo a jogador da CI, AA, aquando da inscrição deste agente desportivo, era válido para inscrição do referido jogador, para o mesmo atuar e jogar no respetivo escalão, sendo que, apenas e caso o referido jogador viesse a jogar no escalão acima daquele a que pertencia, é que os referidos documentos – exame médico-desportivo – teriam de ter tal menção para o efeito;
39. Tal facto apenas se colocou com a exposição de facto que o Recorrente trouxe ao conhecimento da Recorrida em 20 de Abril de 2018 e isto relativamente ao jogo que as equipas de futebol do Demandante e da Contrainteressada haviam disputado no dia 15 de Abril de 2018;
40. Após tal exposição factual realizada pelo Recorrente, cuidou a Recorrida, por intermédio do seu Conselho de Disciplina, de instaurar o competente processo de averiguações, que viria a ser convertido em processo disciplinar, culminando com a condenação da Contrainteressada na sanção de 2 (dois) jogos à porta fechada e 33,50 UC de multa, pela prática da infração prevista pelo art.º 91.º, n.º 1 do RDFPF;
41. A inserção do documento adulterado no sistema, foi feita em momento posterior à inscrição do jogador – cerca de oito meses depois –, mais concretamente em 18 de Abril de 2018, pelo que, não incumpriu a Recorrida com qualquer dever que sobre si impende, designadamente com o dever de vigilância;
42. A Recorrida não averiguou os factos em crise nos presentes autos em momento anterior, porquanto os mesmos ainda não se haviam verificado e muito menos haviam chegado ao conhecimento do Conselho de Disciplina da Recorrida – Órgão competente para aplicar sanções disciplinares – artigo 58.º do Estatutos da FPF;
43. O Conselho de Disciplina da Recorrida, ao contrário do que pretende o Recorrente não aplica medidas provisórias com base numa participação, sem que afira da veracidade dos factos ali constantes, sob pena de não cumprir com as normas regulamentares que lhe impõem a averiguação dos factos, designadamente com a instrução de processos disciplinares, para que logre alcançar decisões justas, sejam elas quais forem, até porque terá de assegurar o direito de defesa dos visados, direito constitucionalmente previsto, como aliás, bem salientou o Tribunal a quo, não havendo lugar no caso concreto à aplicação de medidas provisórias nos termos previstos no artigo 230.º do RDFPF, porquanto ainda não existia qualquer sanção nem condições para aplicação da mesma;
44. A norma sancionatória – artigo 91.º, n.º do RD da FPF -, determina a aplicação de “derrota nos jogos em que os agentes desportivos em causa tenham constado da ficha técnica e cumulativamente com multa entre 10 e 20 UC e, acessoriamente, com reparação, para ressarcir, nomeadamente, as despesas judiciais e extrajudiciais que tiverem ocorrido”, pelo que, a aplicação da sanção de derrota à arguida aqui Contrainteressada – não poderia atingir todo e qualquer jogo em que o jogador em causa tivesse constado da ficha técnica durante a época 2017/2018 – o que incluiria inclusivamente os jogos do Campeonato Nacional de Juniores A – época 2017/2018, referidos a fls. 52 dos autos do PD –, mas apenas os jogos do escalão sénior, inseridos no Campeonato de Portugal;
45. Dispõe o artigo 11.º, n.º 1 do Regulamento do Campeonato de Portugal – época desportiva 2017/2018 – quando dispõe que, nas palavras do Conselho de Disciplina no acórdão em crise nos autos que a referida competição foi “disputad[a] por 72 Clubes, (…) divididos em 4 séries de 18 Clubes, jogando entre si, duas vezes e por pontos, uma na qualidade de visitante e outra na qualidade de visitado”, prevendo os números 5 a 7 do referido artigo, novamente nas palavras do Conselho de Disciplina, no sentido de que “«[o]s 2 Clubes melhor classificados em cada uma das séries qualificam-se para disputar um play off, de forma a determinar os dois clubes que sobem à competição profissional», em cujo contexto «disputam uma eliminatória, definida por sorteio, a duas mãos, qualificando-se os 4 vencedores para a eliminatória seguinte», após o que os «4 Clubes vencedores disputam uma eliminatória, definida por sorteio, a duas mãos, qualificando-se os 2 vencedores para subirem à competição profissional e para disputarem uma final, em campo neutro, destinada a determinar o campeão de Portugal».”;
46. A referida competição – Campeonato de Portugal – no formato em questão e estabelecido para a época 2017/2018, enquadrava-se no conceito de “competição mista”, conforme previsto no artigo 4.º, al. f) do RD da FPF2017;
47. De acordo com o disposto no o artigo 13.º n.ºs 3 e 4 do RD da FPF, “Nos casos em que uma competição organizada pela FPF se dispute em várias fases, os resultados de todos os jogos nela integrados consideram-se homologados quando se tenha realizado o último jogo relativo a cada fase da respetiva competição, independentemente da instauração, anterior ou posterior, ou da pendência de qualquer procedimento disciplinar” e “Nos casos previstos nos números anteriores, as decisões disciplinares não podem ter influência no resultado de jogo nem na tabela classificativa ou na qualificação de competição, tratando-se de competição, ou fase de competição, por pontos ou por eliminatórias, respetivamente.”
48. Pelo que, andou bem o Conselho de Disciplina da Recorrida ao decidir que “Perante tal, forçoso se torna concluir que os resultados dos referidos jogos do Campeonato de Portugal (época desportiva 2017/2018), inseridos na fase da competição por pontos anterior à realização da fase de “play off”, se consideram homologados desde a data da conclusão do último jogo dessa fase [que ocorreu, justamente, no dia 22 de abril de 2018, em que se realizou o jogo aludido no ponto 21) dos factos provados].”
49. Assim, os resultados da competição em questão foram homologados, nos termos dos regulamentos aplicáveis no dia 22 de Abril de 2018, apenas dois dias após a exposição dos factos por parte do Recorrente e ainda antes da instauração do Processo de Averiguações, sendo que, o processo de averiguações foi instaurado pelo Conselho de Disciplina da Recorrida no dia 27 de Abril de 2018, volvidos já cinco dias sobre a homologação dos resultados, sendo o n.º 4 do referido artigo 13.º do RD da FPF que impõe ao CD que qualquer decisão disciplinar que emane não tenha influência no resultado nem na tabela classificativa, tratando-se de classificação por pontos como é o caso sub judice.
50. Não se verificou qualquer decisão de homologação de resultados, porquanto, o resultado foi automaticamente homologado, nos termos regulamentarmente previstos e acabados de expor, não havendo qualquer decisão da Recorrida nesse sentido, pois tal homologação decorre de norma regulamentar – cfr. artigo 213.º, n.º 3 do RD da FPF, porquanto no dia 22 de Abril de 2018 se realizou o último jogo daquela fase da competição, Campeonato de Portugal;
51. O caso dos autos não fica sem resposta regulamentar, porquanto o artigo 29.º, n.º 3 do RD da FPF dispõe que “Nos casos em que a sanção de derrota tenha sido determinada por decisão em processo relativo a jogo homologado, a sanção de derrota é substituída pelas sanções de realização de 1 a 2 jogos à porta fechada e cumulativamente de multa entre 15 e 30 UC”;
52. O Conselho de Disciplina da Recorrida cumpriu com as normas regulamentares aplicáveis ao caso concreto, não se verificando a prática de qualquer ato ilícito;
53. É falso que o Conselho de Disciplina tenha admitido desde a abertura do processo de averiguações que estava perante uma notória adulteração de documento, porquanto tal expressão surge apenas na acusação, já em sede de processo disciplinar e não aquando da instauração do processo de averiguações, sendo que, mesmo aquando da conversão de processo de averiguações em processo disciplinar, o objeto deste último era “eventual simulação e fraude relativa a documento que instrui o processo de inscrição do atleta AA, da época 2017/2018” – a fls. 1 dos autos de PD;
54. O artigo 222.º do RDFPF prevê que a urgência do processo “pode” ser decretada, sendo que, no caso sub judice, os resultados já se encontravam homologados, razão pela qual, improcedeu a alegação do Recorrente, quando afirma que, caso a urgência houvesse sido decretada, o processo disciplinar teria tido um efeito útil, referindo-se à sanção de derrota à arguida, aqui Contrainteressada, porquanto se verifica que os jogos objeto de sanção de derrota, já se encontravam homologados aquando da instauração do processo disciplinar – e bem assim do processo de averiguações – pelo que, reitera-se, decretar a urgência do processo disciplinar seria “inútil”, nas palavras do Tribunal a quo;
55. O Conselho de Disciplina da Recorrida não incumpriu com qualquer prazo porquanto, conforme a própria norma do artigo 223.º, n.º 1 do RD da FPF indica, o prazo ali tem natureza meramente ordenadora, sendo que, os prazos trazidos à liça pelo Recorrente, designadamente os referidos nos artigos 223.º, 237.º, 241.º e 245.º, têm natureza ordenadora, sendo que, o seu decurso não extingue o direito à prática do ato a que os referidos prazos se referem, como bem decidiu o Tribunal a quo;
56. O presente processo inicia-se com a exposição de factos – fls 1 dos autos de processo disciplinar (doravante PD) –, a 20 de abril de 2018, relativa à alegada utilização irregular de jogadores em jogo realizado entre o Demandante e a B... SAD (doravante CI), jogo realizado a 15 de Abril de 2018, sendo que, em nenhum momento, da referida exposição ou da sua ação arbitral, o Recorrente imputa à Recorrida o não cumprimento das regras constantes na Tabela 7 do Comunicado Oficial n.º 1 (época 2017/2018), por via do disposto no artigo 58.º, n.º 3 do Regulamento do Campeonato de Portugal, porquanto a inscrição dos atleta pressupunha a apresentação de “exame médico desportivo” – o que se verificou - e bem assim do artigo 44.º do Regulamento do Campeonato de Portugal, porquanto no jogo em crise nos autos, se encontrava um Delegado da Recorrida, e bem assim, dos artigos 2.º, n.º 8, 5.º e 3.º, n.º 3 dos Estatutos da Recorrida;
57. Apesar de tal alegação se tratar de matéria de alegação nova trazida em sede de recurso para o TCAS, relativamente à qual, nem a Recorrida, nem o TAD, se puderam pronunciar, e nessa medida, deve a mesma ser desconsiderada, por aplicação do princípio da estabilidade da instância, sem prescindir, sempre se dirá que não colhe a alegação de que, por se encontrar presente no jogo em crise nos autos um Delegado da Recorrida, a mesma teve conhecimento dos factos naquele momento – cinco dias antes da exposição da aqui Recorrente;
58. Da redação do artigo 44.º do Regulamento do Campeonato de Portugal, não resulta que a regularidade da inscrição de todos os jogadores e outros agentes desportivos – note-se, cerca de 50, por jogo – incumbe ao Delegado da FPF, nem tal lhe seria exigível, atendendo à extensão da matéria e documentação em questão e ao conhecimento técnico necessário para o efeito;
59. Para efeitos de aplicação de sanção disciplinar, releva a data em que o órgão disciplinar conhece dos factos – artigo 49.º, n.º 1 do RDFPF e artigo 58.º do Estatutos da FPF, sendo que, já ficou por demais demonstrado que, o Conselho de Disciplina conheceu dos mesmos, no dia 20 de abril de 2018, aquando da exposição apresentada pelo Recorrente;
60. Nesse sentido, andou bem o Tribunal a quo ao acompanhar o TAD no entendimento de que “fica prejudicada a análise dos restantes requisitos de que depende a responsabilidade civil extracontratual aqui analisada, designadamente quanto à culpa, dano e nexo de causalidade”;
61. Improcede também a alegação de que a ora Recorrida confessou que agiu para salvaguardar a estabilidade das competições, porquanto, e nas palavras do Tribunal a quo: “os «factos» que a Demandante considera confessados nos termos expostos, não são factos. Nas afirmações proferidas, a Demandada limita-se a formular interpretações das normas regulamentares aplicáveis ao caso concreto, esclarecendo, por diversas vezes nas suas peças processuais, que nenhuma ilegalidade foi cometida”.
62. Nesse sentido, improcede a alegação do Recorrente de que o Tribunal a quo e a Recorrida violaram as normas constantes no artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 345/1999, alterado pelo Decreto-Lei n.º 255/2012, de 29.11, a Tabela 7 do Comunicado oficial n.º 1 (época 2017/2018), artigo 42,º, 44, 57,º, n.º 1, 3 e 5, 58.º, n.º 3, todos do Regulamento do Campeonato de Portugal, artigos 40.º, n.º 1 da Lei n.º 5/2007, e 6.º, n.º 1, 7.º, n.º 3 e 8.º, n.ºs 3, 4 e 5 do Decreto-Lei n.º 345/99, alterado pelo Decreto-Lei n.º 255/2012, de 29.11, artigos 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º e 13.º, todos do CPA, artigos 2.º, n.ºs 5 e 8, 3.º, n.º 3, 5 e 8.º, n.º 2, todos dos Estatutos da FPF, artigos 6.º, n.ºs 1, 2 e 3, 7.º, n.ºs 3 e 4, 13.º, 15.º, n.º 3, 29.º, 78.º, 215.º, n.ºs 1 e 2, 217.º, n.º1, 222.º, n.º 1, alíneas a) e b) e números 2, 3 e 4, 223.º, 230.º, n.ºs 1 e 2, 232.º, n.º 1, 237.º, 241.º, 245.º e 249.º, n.ºs 1, 2 e 3, 255.º, n.º 1, todos do RDFPF e ainda os artigos 43.º, n.º 1, 52.º, n.º 1 do RJFD e artigo 15.º do Regimento do CD, por, além de se tratar de invocação nova que deve improceder desde logo por decorrência do princípio da estabilidade da instância, não lograr o Recorrente demonstrar tal violação;
63. Improcede ainda a alegação de que se verificou uma violação do disposto nos artigos 20.º da CRP e 40.º do CP e artigos 7.º, n.º 3, 9.º, n.ºs 1, 2 e 7, 10.º, n.ºs 2 e 3, todos da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro e artigo 483.º, 487.º, 491.º e 493.º do CC;
64. Em suma, reitere-se que a Recorrida não praticou qualquer ato ilícito, não violando qualquer norma legal ou regulamentar, ou princípio jurídico-administrativo ou ainda qualquer princípio constitucional, não havendo lugar a qualquer indemnização por força da aplicação do regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, como bem entendeu o Tribunal a quo;
65. Subsidiariamente, alega o Recorrente que, caso não proceda o pedido principal a que nos referimos supra, deverá a Recorrida ser responsabilizada por facto lícito, ou seja, por força do disposto no artigo 16.º da LRCEE;
66. O ato administrativo que está na base da pretensão subsidiária do Recorrente é o facto de a Recorrida ter elaborado regulamento que prevê a substituição da sanção de derrota por sanção de realização de jogos à porta fechada, quando aquela sanção de derrota não for já possível, em virtude da homologação dos resultados dos jogos objeto da sanção;
67. O referido RDFPF não foi alterado a meio da época desportiva, estava em vigor, como está sempre, desde o início da época desportiva 2017/2018, sendo que, o Recorrente conformou-se e sujeitou-se ao referido RD da FPF quando procedeu à sua inscrição na competição em apreço, pelo que, por um lado, conhecia as normas nele constantes, por outro, conformou-se com as mesmas, sendo que, em nenhum momento, antes da aprovação do mesmo, ou em momento posterior, houve notícia de que o Recorrente não concordava com a norma em crise;
68. O instituto da responsabilidade por “imposição de sacrifícios” é de aplicação bastante restrita, ficando reduzidas à responsabilidade pelo sacrifício de bens pessoais (tais como a vida, a integridade física, a saúde e a qualidade de vida, os direitos de personalidade referidos no art. 26.º, n.º 1 da CRP) e por danos causados em estado de necessidade, excluindo-se assim, as pretensões indemnizatórias pelo sacrifício de direitos privados;
69. Se assim não fosse, o Estado não teria capacidade financeira para suportar o pagamento de todas as indemnizações a que fatalmente seria condenado, sendo que, tem sido entendimento da doutrina maioritária que a imposição de uma interpretação restritiva e dessa forma, conforme à CRP, do artigo 16.º da LRCEE, interpretação que remete para a exclusão das pretensões indemnizatórias pelo sacrifício de direitos patrimoniais privados, sob pena de não o fazendo, violar-se parcialmente o fundamento constitucional imediato das pretensões indemnizatórias pelo sacrifício de direitos patrimoniais privados – o art. 62º n.º 2 da CRP;
70. Acresce que, para haver lugar ao ressarcimento de danos pela figura da imposição de sacrifícios, o dano causado teria de ser especial e anormal, sendo que, bem andou o Tribunal a quo ao corroborar o entendimento do TAD no sentido de afirmar que “Na responsabilidade civil administrativa por facto lícito, o facto voluntário pode ser um ato administrativo ou um ato material, devendo excluir-se o regulamento, pois a exclusão do conceito de ato voluntário prende-se com a sua impossibilidade natural para produzir danos ressarcíveis no âmbito deste tipo de responsabilidade civil, em virtude do caráter necessariamente especial do dano;
71. As normas contantes nos artigos 13.º, n.º 3 e 29.º, n.º 3 do Regulamento Disciplinar da FPF para a época 2017/2018, como bem entendeu o Tribunal a quo, “não violam qualquer norma legal ou constitucional, pois o normativo jurídico, considerado no seu conjunto, protege valores superiores e princípios fundamentais que regem a atividade desportiva e o resultado da competição”;
72. Ainda de acordo com a decisão do TAD, que o Tribunal a quo decidiu manter: “A obrigação de indemnizar por imposição de sacrifícios só existe caso o sacrifício em causa seja absolutamente imprevisível e desconhecido, o que não é o caso nos presentes autos”, porquanto “a Demandante conformou-se e sujeitou-se ao referido RD da FPF quando procedeu à sua inscrição na competição em apreço, pelo que, por um lado, conhecia as normas nele constantes, por outro, conformou-se com elas, pois aquele Regulamento manteve-se inalterado”, sendo que, “não se encontram preenchidos os requisitos para a pretensão de ressarcimento da Demandante por força da aplicação do artigo 16.º da Lei n.º 67/2007, pelo que improcede, também por esta via, a sua pretensão”.
73. Razão porque não se verifica também qualquer violação das normas ínsitas nos artigos 483.º, 563.º do CC e 16.º da Lei n.º 67/2007, por parte do Tribunal a quo.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deverá o Supremo Tribunal Administrativo decidir pela improcedência do recurso de revista interposto pelo Recorrente, com as devidas consequências legais, ASSIM SE FAZENDO O QUE É DE LEI E DE JUSTIÇA.»
Por acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo, de 15 de Junho de 2023, foi a revista admitida.
Cumprido o art. 146.º, n.º1, do CPTA, o Exmº. Magistrado do MP não se pronunciou.
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência para julgamento das questões.
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2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
«1) «A Demandante apresentou junto dos serviços da Demandada, em 20 de abril de 2018, uma exposição de factos – fls. 1 dos autos de processo disciplinar (PD) – relativa à alegada utilização irregular de jogadores em jogo realizado entre o Demandante e a B... SAD (CI), jogo realizado a 15 de Abril de 2018.
2) O referido jogo dizia respeito ao Campeonato de Portugal, cuja fase regular – campeonato por pontos – terminaria a 22 de Abril de 2018 – dois dias após a exposição apresentada pelo Demandante.
3) Nesta sequência, o Conselho de Disciplina da FPF determinou a instauração de processo de averiguações dirigido ao apuramento da regularidade – e eventual relevância disciplinar – da utilização de jogadores da categoria júnior pela B..., SAD, no jogo oficialmente identificado pelo n.º 260.03.225, que opôs, no dia 15 de abril de 2018, as equipas de futebol do Demandante e da CI, a contar para a 29.ª jornada do Campeonato de Portugal – época desportiva 2017/2018.
4) No dia 30 de abril de 2018, o processo de averiguações foi autuado e registado sob o n.º ...6/Aver.-17/18 e distribuído a Relator, após o que, no mesmo dia, foram os autos conclusos à Comissão de Instrução Disciplinar da FPF.
5) Em 13 de Junho de 2018, a senhora Instrutora do referido processo de averiguações, propôs ao abrigo do disposto no art.º 249.º, n.º 2 do RDFPF2017 (doravante RD da FPF – mas sempre com referência ao RD da FPF 2017/2018, vigente à data dos factos), a conversão do processo de averiguações em processo disciplinar, sugerindo que nos mesmos assumisse a qualidade de arguida a aqui CI (cf. fls. 54 a 58 do PD).
6) O referido processo de averiguações, nos termos do n.º 2 do art.º 249.º do RDFPF2017, foi convertido em processo disciplinar contra a aqui CI, em conformidade com o que foram os autos registados e numerados e conclusos à Comissão de Instrução Disciplinar da FPF, sendo distribuídos a Instrutor da Comissão de Instrução Disciplinar.
7) Findo o inquérito, considerou-se existirem indícios suficientes da prática de infração disciplinar e, consequentemente, ao abrigo do disposto no artigo 238.º, n.º 1 do RDFPF2018 deduziu acusação contra a arguida (cf. fls. 178 a 190 do PD), a quem imputou a prática de «uma infração disciplinar prevista e sancionada pelo número 1 do artigo 91.º do RDFPF 2017, à qual corresponde, em abstrato, a aplicação da sanção de derrota nos jogos em que os agentes desportivos em causa tenham constado da ficha técnica e cumulativamente com multa entre 10 e 20 UC e, acessoriamente, com reparação, para ressarcir, nomeadamente, as despesas judiciais e extrajudiciais que tiverem ocorrido», acrescentando, em sede de imputação, que «por força da circunstância agravante de reincidência, tais sanções situar-se-ão em derrota nos jogos em que os agentes desportivos em causa tenham constado da ficha técnica e cumulativamente com multa entre 20 e 40 UC e, acessoriamente, com reparação, para ressarcir, nomeadamente, as despesas judiciais e extrajudiciais que tiverem ocorrido».
8) Tendo sido a acusação notificada à arguida, aqui CI, que apresentou defesa.
9) O senhor Instrutor procedeu à elaboração de relatório final do processo disciplinar, ao abrigo do disposto no artigo 243.º, n.º 1 do RDFPF2018, que consta de fls. 200 a 230 dos autos de PD, e no qual, a final, é proposta a condenação da arguida «pela prática da infração disciplinar prevista e sancionada pelo número 1 do artigo 91.º do RDFPF 2018», na «sanção de derrota por 3 a 0, no jogo n.º 260.03.225, disputado entre o A... e a B... SAD, realizado no dia 15 de abril de 2018, a contar para o Campeonato de Portugal, da época desportiva 2017/2018», na «sanção de derrota por 0 a 3, no jogo n.º 260.03.240, disputado entre a B... SAD e o C... realizado no dia 22 de abril de 2018, a contar para o Campeonato de Portugal, da época desportiva 2017/2018» e, cumulativamente, na «sanção de multa de 10 (dez) UC, isto é, 1020,00 € (mil e vinte euros)».
10) No dia 7 de março de 2019, os autos foram conclusos ao Relator, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 243.º do RDFPF, após o que, por se encontrarem reunidas as condições processuais para encerramento da fase de instrução, prosseguiram os autos para elaboração de projeto de acórdão, nos termos do artigo 245.º do RDFPF2018 (cf. fls. 321 dos autos de PD).
11) Nessa sequência, o Conselho de Disciplina da Demandada, veio a sancionar a arguida, aqui CI, «nas sanções 2 (dois) jogos à porta fechada e 33,50 UC de multa, o que equivale a € 3.417,00 (três mil, quatrocentos e dezassete euros), pela prática da infração prevista pelo art.º 91.º, n.º 1 do RDFPF2017 e sancionada, no caso concreto, pelo n.º 1 do art.º 91.º do RDFPF2018, por ser, à luz do que dispõe o art.º 10.º, n.º 4 do RDFPF (em ambas as versões), concretamente mais favorável à arguida.
12) O CD da Demandada substituiu a sanção de derrota, por sanção de jogos à porta fechada.
13) O referido Campeonato de Portugal, no formato estabelecido para a época desportiva 2017/2018, enquadra-se no conceito de «competição mista», que a alínea f) do art.º 4.º do RDFPF2017 prevê e que corresponde à «competição que engloba pelo menos duas fases, sendo uma caracterizada e regida como uma competição por pontos e a outra como uma competição por eliminatórias».
14) Os resultados dos referidos jogos do Campeonato de Portugal (época desportiva 2017/2018), inseridos na fase da competição por pontos anterior à realização da fase de «play off», consideram-se homologados desde a data da conclusão do último jogo dessa fase, que ocorreu, justamente, no dia 22 de abril de 2018, em que se realizou o jogo disputado entre a CI B... SAD e o C...
15) Destarte, à luz do que estabelece o art.º 29.º, n.º 3 do RDFPF2017, quando «a sanção de derrota tenha sido determinada por decisão em processo relativo a jogo homologado, a sanção de derrota é substituída pelas sanções de realização de 1 a 2 jogos à porta fechada e cumulativamente de multa entre 15 e 30 UC», substituição que se impõe no caso vertente.
16) Nessa medida e em concreto, decidiu-se aplicar à arguida:
a) Sanção de derrota no jogo oficialmente identificado pelo n.º 260.03.225, disputado entre o A... e a B... SAD, a contar para a 29.ª jornada da Série C do Campeonato de Portugal, época desportiva 2017/2018, substituída, no caso concreto, por força do disposto no art.º 29.º, n.º 3 do RDFPF2017, por sanção de um jogo à porta fechada e, cumulativamente, sanção de 12,375 UC de multa;
b) Sanção de derrota no jogo oficialmente identificado pelo jogo n.º 260.03.240, disputado entre a B... SAD e o C... a contar para a 30.ª jornada da Série C do Campeonato de Portugal, da época desportiva 2017/2018, substituída, no caso concreto, por força do disposto no art.º 29.º, n.º 3 do RDFPF2017, por sanção de um jogo à porta fechada e, cumulativamente, sanção de 12,375 UC de multa;
c) Sanção principal de 11 UC de multa– relativamente à qual se não aplicam as reduções previstas no art.º 25.º do RDFPF2017.
17) Uma vez que «[a]s sanções concretamente determinadas são sempre cumuladas materialmente entre si e com outras sanções» (cf. art.º 46.º, n.º 1 do RDFPF2017), a arguida, pela prática da infração prevista no art.º 91.º, n.º 1 do RDFPF2017, deve ser, à luz deste diploma, sancionada nas sanções 2 (dois) jogos à porta fechada e 35,75 UC, o que equivale, por força do arredondamento imposto pelo n.º 2 do art.º 25.º daquele regulamento, a € 3.647,00 (três mil, seiscentos e quarenta e sete euros)».
18) A arguida, ora CI, recorreu para o Conselho de Justiça da FPF, que manteve a decisão recorrida.
19) A Demandante disputou, na época desportiva de 2017/2018, o Campeonato de Portugal, designadamente na Série C.
20) No final do campeonato a Demandante ficou classificada em 11.º lugar, com 41 pontos, ou seja, logo no primeiro lugar abaixo da chamada «linha de água». Em 10.º lugar ficou a ... com 42 pontos e em 9.º lugar classificou-se a ..., também com 42 pontos.
21) A sanção de derrota aplicada à contrainteressada (substituída por jogos à porta fechada) permitiria à Demandante alcançar os 3 pontos da vitória, assumindo assim o lugar da ..., com 43 pontos, e logrando a manutenção no Campeonato de Portugal.
22) A Demandada foi despromovida para o Campeonato Distrital, disputando na época de 2018/2019, o Campeonato Lizport 2018/2019, Campeonato Distrital da AF ...
23) Em 29 de Dezembro de 2017, entre o Município da Marinha Grande, enquanto primeiro outorgante, e o A..., enquanto segundo outorgante, foi assinado um Contrato que as partes denominaram como «Contrato-Programa de Desenvolvimento Desportivo», ficando estabelecido que a Demandante iria receber um apoio financeiro no valor de 36.005,50 € (trinta e seis mil e cinco euros e cinquenta cêntimos), nos termos da cláusula 4.ª, tendo tal contrato por objeto a execução de um programa de desenvolvimento desportivo apresentado pela beneficiária, e no documento anexo a este contrato, designado de «Programa de Desenvolvimento Desportivo - ANO de 2017/2018» o subsídio da Câmara Municipal da Marinha Grande está identificado na «Descrição Sumária da receita» e computado em 24.080,00 € (vinte e quatro mil e oitenta euros).
24) Em 20 de Dezembro de 2018, foi assinado entre o Município da Marinha Grande e a Demandante um novo Contrato-Programa de Desenvolvimento Desportivo, que teve por objeto a execução de um programa de desenvolvimento desportivo apresentado pela entidade beneficiária, para a época desportiva de 2018/2019, ficando estabelecido que a Demandante iria receber um apoio financeiro no valor de 20.788,00 € (vinte mil setecentos e oitenta e oito euros), tendo tal contrato por objeto a execução de um programa de desenvolvimento desportivo apresentado pela beneficiária, e no documento anexo a este contrato, designado de «Programa de Desenvolvimento Desportivo – ANO de 2018/2019» o subsídio da Câmara Municipal da Marinha Grande está identificado na «Descrição Sumária da receita» e computado em 30.000,00 € (trinta mil euros).
25) A Demandante competia nos Distritais na época desportiva de 2016/2017.
26) A Demandante recebeu apoios financeiros concedidos pelas sociedades D..., Ldª. na época desportiva de 2016/2017, com datas de 13/09/2016 e 14/12/2016, no valor de 40.000 € e 60.000 €, respetivamente.
27) A Demandante recebeu apoios financeiros concedidos pela sociedade E..., Ldª., na época desportiva de 2016/2017, com data de 30/12/2016, no valor de 60.000 €.
28) A Demandante recebeu apoios financeiros concedidos pela sociedade D..., Ldª., na época desportiva de 2017/2018, nas seguintes datas: 17/05/2017 no valor de 5.000 €; 29/07/2017 no valor de 15.000 €; 16/08/2017 no valor de 15.000 €; 13/09/2017 no valor de 15.000 €; 16/10/2017 no valor de 15.000 €; 13/11/2017 no valor de 15.000 €; 05/12/2017 no valor de 15.000 €; 16/01/2018 no valor de 15.000 €; 19/02/2018 no valor de 15.000 €; 15/03/2018 no valor de 15.000 €; 17/04/2018 no valor de 15.000 €; 07/05/2018 no valor de 15.000 € e 04/06/2018 no valor de 15.000 €.
29) A Demandante recebeu apoios financeiros concedidos pela empresa F... SA, na época desportiva de 2017/2018, com datas de 03/01/2017, 07/02/2017 e 02/01/2018, nos valores de 5.000 € cada.
30) Em 13 de setembro de 2016 e 22 de dezembro de 2016 foram assinados entre a D..., Ldª. e a Demandante dois contratos designados por «Contrato de Patrocínio e Publicidade».
31) Em 13/09/2016 a Demandante recebeu da D..., Ldª., a título de publicidade para a época de 2016/2017, a quantia de 40.000 €.
32) Relativamente à época de 2017/2018, a Demandante recebeu da D..., Ldª., a título de publicidade, a quantia total de 55.000 €, paga em 11 prestações de 5.000 € cada, nas seguintes datas: 17/04/2018, 16/08/2017, 5/12/2017, 19/02/2018, 16/01/2018, 28/07/2017, 4/06/2018, 15/03/2018, 14/11/2017, 16/10/2017e 13/09/2017.
33) Em resultado do retrocesso desportivo, a Demandante perdeu a possibilidade de aceder às verbas que são pagas aos clubes pela Demandada em resultado da participação na Taça de Portugal.
34) Na época desportiva 2017/2018, a Demandada competiu na Taça de Portugal, tendo sido eliminada na 2ª eliminatória da prova.
35) Pela participação da Demandante em duas eliminatórias da Taça de Portugal, e por referência a 1 de Julho de 2017 a 30 de Junho de 2018, a Demandante auferiu a verba total de 8.903,67 € (oito mil, novecentos e três euros e cinquenta e sete euros).
36) Na época desportiva de 2018/2019 a Demandante apresentou quebra de receitas em valor não concretamente apurado.
Matéria de facto não provada:
Não foi possível apurar, em concreto, o valor da quebra de receitas e dos prejuízos invocados pela Demandante.
Da matéria alegada, inexistem quaisquer outros factos alegados pelas partes ou do conhecimento oficioso que, de acordo com as diversas soluções plausíveis da questão de direito, sejam relevantes para a boa decisão da causa atento o thema decidendum.
2.2. Matéria de Direito.
2.2.1. Questões a decidir – objecto do recurso
Em concreto, e como decorre da motivação e respectivas conclusões, o recorrente (A...) insurge-se contra o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul que confirmou a decisão do Tribunal Arbitral do Desporto que, por seu turno, julgou improcedente a sua pretensão a ser indemnizado, (i) a título de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, ou, se assim se não entender, (ii) por factos lícitos, imputando-lhe erro de julgamento de direito por o mesmo ter considerado que não foi praticado qualquer acto ilícito, por parte da FPF, não tendo a mesma, por conseguinte, incorrido na violação de quaisquer normas legais ou regulamentares, nem nos deveres de cuidado, fiscalização e vigilância que lhe incumbiam.

O facto gerador da responsabilidade civil é a decisão do Conselho de Disciplina, mantida pelo Conselho de Justiça da Federação Portuguesa de Futebol condenando o clube contra-interessado (B... SAD):
“a) Sanção de derrota no jogo oficialmente identificado pelo nº 260.03.225, disputado entre o A... e a B... SAD, a contar para a 29.ª jornada da Série C do Campeonato de Portugal, época desportiva 2017/2018, substituída, no caso concreto, por força do disposto no art.º 29.º, nº 3 do RDFPF2017, por sanção de um jogo à porta fechada e, cumulativamente, sanção de 12,375 UC de multa;
b) Sanção de derrota no jogo oficialmente identificado pelo jogo nº 260.03.240, disputado entre a B... SAD e o C... a contar para a 30.ª jornada da Série C do Campeonato de Portugal, da época desportiva 2017/2018, substituída, no caso concreto, por força do disposto no art.º 29.º, nº 3 do RDFPF2017, por sanção de um jogo à porta fechada e, cumulativamente, sanção de 12,375 UC de multa;
c) Sanção principal de 11 UC de multa – relativamente à qual se não aplicam as reduções previstas no art.º 25.º do RDFPF2017.”

O recorrente entende que a substituição da sanção de derrota pela sanção de um jogo à porta fechada e multa causou-lhe prejuízos, na justa medida em que não lhe foi atribuída a vitória do jogo, o que teve repercussões na sua classificação desportiva.
Com efeito, como resulta dos factos provados:
“(…)
21) A sanção de derrota aplicada à contra-interessada (substituída por jogos à porta fechada) permitiria à Demandante alcançar os 3 pontos da vitória, assumindo assim o lugar da ..., com 43 pontos, e logrando a manutenção no Campeonato de Portugal.
22) A Demandada foi despromovida para o Campeonato Distrital, disputando na época de 2018/2019, o Campeonato Lizport 2018/2019, Campeonato Distrital da AF ...”.

A questão que se coloca é a de saber se a decisão que substituiu a sanção de derrota por um jogo à porta fechada e multa é (i) ilícita ou, sendo lícita, se (ii) é geradora de responsabilidade civil “por factos lícitos”, pois foram essas as questões que o Tribunal Central Administrativo Sul apreciou e das quais o recorrente discorda.
Vejamos:
Da responsabilidade por factos ilícitos
O recorrente imputa à deliberação punitiva a violação de uma multiplicidade de disposições legais que a nosso ver estão exageradamente empoladas.
A questão é, a nosso ver, mais simples que a multiplicidade e variedade de conclusões do clube recorrente sugere.
Na verdade, o facto gerador dos danos é uma decisão dos órgãos da Federação Portuguesa de Futebol (Conselho de Disciplina e Conselho de Justiça). Ou seja é um acto jurídico.
A ilicitude dos actos jurídicos, corresponde à ilegalidade dos mesmos. É o que nos diz o art. 9º, nº 1, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Pessoas Colectivas de Direito Público, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro:
“(...) Consideram-se ilícitas as acções ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objectivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos”.
Portanto, ou a decisão que aplicou a sanção é legal ou não. Se for legal a responsabilidade civil fundada na ilicitude não pode proceder, precisamente por falta desse requisito (ilicitude).
Como decorre da própria decisão a mesma fundou-se no disposto no art. 29º, n.º 3 do Regulamento de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol de 2017, segundo o qual:
“Artigo 29.º
Da sanção de derrota
1. A sanção de derrota consiste na atribuição de resultado desportivo negativo a clube em jogo oficial, ainda que a equipa em causa tenha nele obtido resultado positivo.
2. A sanção de derrota é aplicada quanto ao jogo oficial por ocasião do qual foi praticada a infração e tem as seguintes consequências:
a) Em competição, ou fase de competição, por pontos, o clube sancionado perde na tabela classificativa os pontos correspondentes ao jogo respetivo, os quais são atribuídos ao adversário.
b) Em competição, ou fase de competição, por eliminatórias, e ainda que a eliminatória em causa seja disputada a duas mãos e apenas relativamente a um dos jogos tenha sido aplicada a sanção de derrota, o clube sancionado é eliminado da competição em favor do adversário, salvo se a sanção for aplicada no âmbito de processo sumário.
c) O clube adversário beneficia do resultado de 3 a 0, salvo se tiver conseguido em campo diferença de golos superior, caso em que o resultado é de X a 0, representando X essa diferença.
d) Se a sanção de derrota for aplicada pela prática da infração prevista no artigo 64.º, o clube adversário beneficia do resultado de 5 a 0, salvo se tiver conseguido em campo diferença de golos superior, caso em que o resultado é de X a 0, representando X essa diferença.
3. Nos casos em que a sanção de derrota tenha sido determinada por decisão em processo relativo a jogo homologado, a sanção de derrota é substituída pelas sanções de realização de 1 a 2 jogos à porta fechada e cumulativamente de multa entre 15 e 30 UC”
*
Como decorre do nº 3 do citado e transcrito art. 29º, a decisão de substituição da sanção de derrota pelas sanções de realização de 1 a 2 jogos à porta fechada e cumulativamente multa entre 15 e 30 UC, depende apenas da circunstância do resultado do respectivo jogo (onde ocorreu a infracção punida com derrota) já se encontrar homologado. No presente caso, o resultado do jogo (onde ocorreu a utilização irregular de jogadores) já estava homologado e, portanto, a decisão do Conselho de Disciplina e do Conselho de Justiça que a manteve é legal e, por essa razão, lícita.
Não seria assim se, o respectivo jogo ainda não estivesse homologado e portanto o pressuposto de facto onde assentou a decisão não fosse exacto.
Mas não foi esse o caso.
Com efeito, de acordo com o disposto no artigo 13.º n.ºs 3 e 4 do RD da FPF:
“(…)
Nos casos em que uma competição organizada pela FPF se dispute em várias fases, os resultados de todos os jogos nela integrados consideram-se homologados quando se tenha realizado o último jogo relativo a cada fase da respetiva competição, independentemente da instauração, anterior ou posterior, ou da pendência de qualquer procedimento disciplinar”;
“(…) Nos casos previstos nos números anteriores, as decisões disciplinares não podem ter influência no resultado de jogo nem na tabela classificativa ou na qualificação de competição, tratando-se de competição, ou fase de competição, por pontos ou por eliminatórias, respetivamente.”

Perante tais normas o Conselho e Disciplina entendeu:
“(…)
Perante tal, forçoso se torna concluir que os resultados dos referidos jogos do Campeonato de Portugal (época desportiva 2017/2018), inseridos na fase da competição por pontos anterior à realização da fase de “play off”, se consideram homologados desde a data da conclusão do último jogo dessa fase [que ocorreu, justamente, no dia 22 de Abril de 2018, em que se realizou o jogo aludido no ponto 21) dos factos provados].” Ou seja, os resultados da competição em questão foram tacitamente homologados, nos termos dos regulamentos aplicáveis no dia 22 de Abril de 2018. Deste modo, o pressuposto de facto que impunha (vinculadamente) a substituição da derrota por jogos à posta fechada e multa, é exacto, confirmando assim a legalidade (licitude) da decisão sancionatória, na parte em que aplicou uma sanção de substituição.

É certo que ainda poderia haver ilicitude no próprio Regulamento de disciplina quer quanto à homologação automática dos jogos ou quanto à substituição das sanções de derrota, após a homologação dos jogos.
Contudo, a nosso ver, tal regime é em si mesmo coerente.
Diz-nos o artº 13º, nºs 3 e 4 Regulamento de Disciplina:
“(…)
3. Nos casos em que uma competição organizada pela FPF se dispute em várias fases, os resultados de todos os jogos nela integrados consideram-se homologados quando se tenha realizado o último jogo relativo a cada fase da respetiva competição, independentemente da instauração, anterior ou posterior, ou da pendência de qualquer procedimento disciplinar.
4. Nos casos previstos nos números anteriores, as decisões disciplinares não podem ter influência no resultado de jogo nem na tabela classificativa ou na qualificação de competição, tratando-se de competição, ou fase de competição, por pontos ou por eliminatórias, respectivamente.”

Não existem, a nosso ver, razões válidas para que o art. 13º, n.º 3 e 4 possa seja ilegal. Trata-se de um regime jurídico que tem a sua razão de ser na estabilidade da organização das competições e que assenta ainda na preponderância dos resultados desportivos (em campo) perante as questões de “secretaria”. Não existe, por outro lado, qualquer dispositivo legal que directamente ou indirectamente imponha a destruição dos efeitos desportivos de resultados já homologados.

A alegação do recorrente no sentido de recair sobre a Federação Portuguesa de Futebol um dever de fiscalizar a inscrição irregular de jogadores e, desse modo, evitar situações como a que ocorreu, não é relevante para o caso dos autos.
O que determinou o dano foi um regime que impõe a substituição da sanção de derrota, quando o resultado do jogo onde se verifique a irregularidade, já esteja homologado. Qualquer outro comportamento imputado à FPF por acção ou omissão é irrelevante, designadamente, quanto à fiscalização da regular inscrição dos jogadores. Não foi a inscrição irregular de jogadores no jogo (ora em causa) que configurou o facto jurídico relevante para o pedido de indemnização (facto gerador do dano). Aliás se tivesse havido uma prévia fiscalização que impedisse a utilização do jogador, nem sequer o clube recorrente se veria numa situação que lhe permitia obter uma vitória “administrativa” por força do art. 29º, c) do Regulamento Disciplinar (“O clube adversário beneficia do resultado de 3 a 0”).
Deste modo, o facto (acto) ilícito invocado (como pressuposto da responsabilidade civil) foi a aplicação de uma sanção em substituição da sanção de derrota ao clube infractor e a consequente não atribuição de uma vitória ao recorrente. Ilicitude essa (invocada) que em nada depende das acções ou omissões da FPF quanto à fiscalização da inscrição de jogadores, pois se localiza tão só na existência de normas regulamentares que definem a homologação dos jogos e a substituição da sanção de derrota em certas ocasiões.
Dai que, sendo, a nosso ver, (i) legal, o art. 13º, n.º 3 e 4 do Regulamento de Disciplina, e (ii) tendo os órgãos da FPF aplicado sem qualquer erro de facto ou de direito, tais preceitos regulamentares é claro que não existe qualquer facto ilícito gerador dos danos, decorrentes de não ter obtido a vitória no jogo em que a equipa adversária inscreveu irregularmente um jogador.
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Da responsabilidade por factos lícitos
O recorrente considera ter direito a uma indemnização por facto lícito. Entende que o TCA Sul, negando esse direito violou os artigos 483º, 563º do C. Civil e 16º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Pessoas Colectivas de Direito Público aprovado pela Lei 67/2007.
O acórdão recorrido, argumentou nos seguintes termos:
“(…)
A opção da FPF de regulamentar e fixar um regime de substituição das sanções de derrota quando os resultados desportivos já estão homologados, nos termos do art 29º, nº 3 do RD FPF, é uma opção regulamentar de interesse público na segurança e estabilidade das competições desportivas, por pontos ou por eliminatórias, mesmo que corra procedimento disciplinar e seja aplicada sanção que tenha reflexo no resultado de jogo, na tabela classificativa ou na qualificação da competição.
Mas, todos os clubes que participam nas competições desportivas sabem, como refere o acórdão recorrido, «as regras do jogo» que estão previamente regulamentadas e publicitadas e devem ser conhecidas e cumpridas. O recorrente ao inscrever-se e ao participar no Campeonato de Portugal 2017/2018 sabia ficar vinculado, nomeadamente, ao Regulamento Disciplinar da FPF 2017.
Portanto, as regras do jogo fixadas no RD aplicaram-se ao ora recorrente e a todos os clubes que como ele jogaram no Campeonato de Portugal 2017/2018, em igualdade de circunstâncias, sem que o recorrente tivesse de suportar qualquer prejuízo especial ou diferenciador em relação aos demais clubes presentes na competição.
Assim e bem conclui o acórdão recorrido, um clube participante, como o ora recorrente, que, por via do seu desempenho desportivo, no final do campeonato se encontra no 1º lugar abaixo da chamada «linha de água», disputando uma classificação que lhe permite a manutenção no Campeonato de Portugal e evitando a sua despromoção desportiva, conhece, ou tem obrigação de conhecer, os riscos que essa sua classificação pode acarretar naquele momento.
De tal forma, que nem a homologação automática dos resultados desportivos da competição no final da fase no dia 22.4.2018, nem a substituição da sanção de derrota pelas sanções de realização de jogos à porta fechada e de multa, nem mesmo a aplicação neste caso das normas sobre a tramitação do procedimento disciplinar se revelaram um encargo imposto ao recorrente que o tenham colocado em situação desigual em relação aos demais clubes em competição.
Estando a disputar a 29ª jornada da série C do Campeonato de Portugal, no dia 15.4.2018, competição que logo terminou no dia 22.4.2018, e no qual o recorrente ficou classificado em 11º lugar, só a sanção de derrota da contrainteressada lhe permitiria manter-se no Campeonato de Portugal, mas sendo a mesma substituída por outra sanção, a despromoção do recorrente resulta da substituição da sanção mas também da sua classificação na fase final do campeonato.
Donde não pode a recorrida ser condenada na indemnização de prejuízos à recorrente, mais a mais a título de danos ou encargos anormais e especiais (cfr arts 16º e 2º da Lei nº 67/2007).
Deve, pois, concluir-se pela falta de razão do recorrente quanto ao alegado no presente recurso relativamente à verificação dos pressupostos em que assenta a responsabilidade pelo sacrifício.
(…)”
Julgamos que o acórdão recorrido decidiu bem, como vamos ver.
A indemnização pelo sacrifício vem regulada no art. 16º do Regime da Responsabilidade Civil do Estado e demais Pessoas Colectivas Públicas, nos seguintes termos:
“Artigo 16.º
Indemnização pelo sacrifício
O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público indemnizam os particulares a quem, por razões de interesse público, imponham encargos ou causem danos especiais e anormais, devendo, para o cálculo da indemnização, atender-se, designadamente, ao grau de afectação do conteúdo substancial do direito ou interesse violado ou sacrificado.”

A razão subjacente à indemnização pelo sacrifício consagrada no art. 16º do Regime aprovado pela Lei 67/2007, assenta no princípio da igualdade dos cidadãos perante os custos de viver em sociedade. Como se explicita no Acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 01.06.2017, proferido no processo 01274/16 (ainda que relativamente ao regime anterior): “(…) No fundo, entende-se que os entes públicos, seja o Estado ou não, não podem exigir de alguém, em nome do interesse público, um sacrifício superior e mais intenso do que o normalmente imposto aos outros membros da colectividade. A indemnização, nestes casos, visará repor essa «igualdade entre os membros da comunidade», de modo a evitar desequilíbrios gravosos na contribuição de cada um para o funcionamento dos serviços públicos, equiparando a contribuição de todos os cidadãos. É, pois, a ideia da necessária igualdade de todos face aos encargos públicos que justifica o dever, público, de compensar os prejuízos especiais e anormais a que alude o artigo 9º do DL nº48.051, de 21.11.67. Em bom rigor, pois, esse dever público resulta da vinculação da administração ao princípio da igualdade previsto no artigo 13º, nº1, da CRP.”
O acórdão ora recorrido sublinhou e a nosso ver bem que no caso em apreço o regime regulamentar era aplicável a todos os clubes em competição em condições exactamente iguais. Portanto, as consequências para cada um dos clubes, designadamente, as resultantes da aplicação do regime disciplinar eram iguais para todos. Afasta-se assim, desde logo, o fundamento (razão de ser) da indemnização pelo sacrifício, qual seja o da ofensa do tratamento igual de todos os clubes em competição.
O mesmo artigo 16º acima transcrito diz-nos também que são indemnizáveis apenas os danos especiais e anormais, actualmente definidos no art. 2º “Para os efeitos do disposto na presente lei, consideram-se especiais os danos ou encargos que incidam sobre uma pessoa ou um grupo, sem afectarem a generalidade das pessoas, e anormais os que, ultrapassando os custos próprios da vida em sociedade, mereçam, pela sua gravidade, a tutela do direito”.

No acórdão do Supremo Tribunal Administrativo acima citado e parcialmente transcrito é feita uma resenha do entendimento doutrinal e jurisprudencial dos conceitos indeterminados relativos à especialidade e anormalidade do dano (que já constavam do art. 9º, nº 1 do Decreto-Lei nº 48051, de 21 de Novembro).
“(…)
A doutrina e a jurisprudência vêm construindo, há muito, a noção de prejuízo especial e anormal, tendo-se destacado, a respeito da noção de especialidade, a teoria da intervenção individual, e quanto à noção de anormalidade, a teoria do gozo standard - Marcello Caetano, «Manual de Direito Administrativo», páginas 1241 e seguintes; Diogo Freitas do Amaral, «Direito Administrativo», volume III, páginas 510 e seguintes; Joaquim Gomes Canotilho, «O Problema da Responsabilidade Civil do Estado por Actos Lícitos», Coimbra 1974, páginas 279 a 281; José Carlos Vieira de Andrade, «A responsabilidade indemnizatória dos poderes públicos em 3D: Estado de direito, Estado fiscal, Estado social», in RLJ, Ano 140º, nº3969, páginas 352 e seguintes; Parecer da PGR, proferido no processo nº137/83, publicado na II série do DR de 06.04.84; AC STA de 21.05.1991, Rº29227; AC STA de 12.01.1999, Rº42175; AC STA de 19.12.2000, Rº31791; AC STA de 25.05.2000, Rº41420; AC STA de 02.02.2002, Rº44443; AC STA de 16.05.2002, Rº0509/02; AC do STA de 10.10.2002, Rº048404; AC do STA de 21.01.2003, Rº0990/02; AC do STA de 03.10.2003, Rº0936/03; AC do STA de 29.05.2003, Rº0688/03; AC do STA de 30.10.2003, Rº0936/03; AC do STA de 05.11.2003, Rº01100/02; AC STA de 18.12.2003, Rº0910/03; AC STA de 13.01.04, Rº40681; AC STA de 22.06.2004, 01810/03; AC STA de 02.12.2004, Rº0670/04; AC STA de 09.02.2005, Rº01348/03; AC STA de 14.12.2005, Rº0351/05; AC STA de 02.03.2006, Rº01610/03; AC STA de 21.06.2007, Rº0110/06; AC STA de 30.04.2008, 0913/07; AC STA de 17.12.2008, Rº0348/08; AC STA de 11.03.2009, Rº0896/08; AC STA de 18.06.2009, Rº0469/09; AC STA de 02.12.09, Rº01088/08; AC do STA 11.03.2010, Rº083/10; AC STA de 28.09.2010, Rº0412/10; AC STA de 11.11.2010, Rº0441/09; AC STA de 28.02.2012, Rº01077/11; AC STA de 25.03.2015, Rº01389/14; AC STA de 18.06.2015, Rº01314/13. A primeira, põe o seu enfoque na especialidade do resultado da intervenção, ou seja, na incidência do acto lícito sobre uma só pessoa ou grupo de pessoas, de modo que será especial aquele prejuízo que não é imposto à generalidade das pessoas, mas «a pessoa ou a um grupo de pessoas determinado em função de uma específica posição relativa dessa pessoa ou desse grupo». A segunda, parte da garantia do gozo standard dos bens que pertencem aos particulares, de tal forma que será anormal o prejuízo que se traduz na ablação total ou parcial desse gozo standard.”

Note-se ainda que o art. 16º, na parte final refere expressamente que só existe responsabilidade quando o sacrifício imposto ultrapasse “os custos próprios da vida em sociedade, (que) mereçam, pela sua gravidade, a tutela do direito”. O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, acima citado, também sublinha este aspecto, localizando esses custos com referência ao grupo: “(…) …sendo que - diz o acórdão - a qualificação dos danos, como especiais e anormais, sempre deverá fazer-se por referência ao grupo a que ela pertence e aos «riscos inerentes» à actividade que desenvolve”.
Portanto, perante o caso concreto destes autos, torna-se certo e seguro que o dano invocado não é um encargo anormal, ou um sacrifício que exorbite os riscos normais inerentes aquela concreta competição desportiva, onde, além do mais, deve estar garantida a estabilidade e regular funcionamento das competições, com regras predefinidas.
Afinal, como o acórdão sublinhou, o recorrente ao participar no campeonato conhecia as regras e, portanto, sabia quais os riscos inerentes a situações como a que ocorreu.
Deste modo os riscos decorrentes da homologação dos resultados ter como consequência a substituição das sanções de derrota por jogos à porta fechada e multa (nos termos do art. 13º, n.ºs 3 e 4, do RD de 2017) eram riscos próprios e normais da própria competição.
Mesmo que se destaque a situação concreta do clube recorrente as consequências da substituição da pena de derrota (do clube adversário), ainda assim, deve entender-se que esta consequência, em si mesma, é perfeitamente enquadrável no conceito de sacrifícios suportáveis para garantir a normalidade da competição.
Deste modo, falta ao sacrifício invocado pelo recorrente o atributo da anormalidade exigido pelo art 16º do regime aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro.
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Finalmente, deve ainda referir-se que, a parte final do art. 16º refere expressamente que deve atender-se “ao grau de afectação do conteúdo substancial do direito ou interesse violado ou sacrificado.” Este aspecto é para o nosso caso, muito importante. Consagra-se aqui uma outra ideia base da responsabilidade civil qual seja a de que a mesma pressupõe (por natureza) a violação de um direito ou interesse legalmente protegido.
O art. 483º do C Civil também exige como pressuposto da responsabilidade civil aquiliana a violação ilícita de um direito subjectivo ou interesse legalmente protegido. Nos casos em que exista responsabilidade civil por facto lícito, a diferença radica na inexigibilidade da ilicitude, devendo sempre existir a violação (lícita) de um direito subjectivo ou interesse legalmente protegido.
Por outras palavras se o interessado não for titular de um direito subjectivo ou interesse legalmente protegido que tenha sido violada pela acção de outrem – não existe sequer um dano ressarcível.
Ora, no presente caso, nunca existiu na esfera jurídica do clube recorrente o direito à vitória por 3/0 porque, nos termos da lei, a sanção efectivamente aplicada foi uma sanção de substituição (jogo à porta fechada e multa). Para que o recorrente pudesse invocar um dano ressarcível, esse dano teria que resultar da lesão de um direito subjectivo ou interesse legalmente protegido de que fosse titular efectivo. Ora, o recorrente, nunca foi titular de um direito subjectivo ou interesse legalmente protegido a que fosse aplicada uma pena de derrota ao clube adversário. O seu interesse legítimo era, tão só, o de que fosse aplicada a lei. Com a aplicação correcta da lei (como foi o caso) o seu interesse legítimo mostra-se integralmente satisfeito, sem que alguma vez tivesse adquirido o direito à vitória. O recorrente não tinha direito à vitória, porque, para o caso apreciado a sanção efectivamente aplicável era a de jogos à porta fechada e multa. Sem ser titular de um “direito à vitória” não pode falar-se sequer em ofensa de um direito subjectivo, pressuposto essencial para qualquer tipo de responsabilidade civil.
Consequentemente também nesta parte se não verificam os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto lícito, devendo ser negado provimento ao recurso.
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3. DECISÃO:
Face ao exposto os juízes do Supremo Tribunal Administrativo acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.

Lisboa, 29 de Fevereiro de 2024. – Maria do Céu Dias Rosa das Neves (relatora) – Cláudio Ramos Monteiro – Liliana Maria do Estanque Viegas Calçada.