Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0147/19.0BCLSB
Data do Acordão:12/03/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CLÁUDIO RAMOS MONTEIRO
Descritores:DISCIPLINA DESPORTIVA
INFRACÇÃO DISCIPLINAR
TRIBUNAL ARBITRAL
PRESUNÇÃO JUDICIAL
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
PRINCIPIO DA CULPA
Sumário:I - A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional (LPFP) que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP (RD/LPFP), conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos artigos 2º, 20º, nº 4 e 32º nºs 2 e 10 da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
II - A responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas prevista no artigo 187.º do referido RD/LPFP pelas condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube ou de uma sociedade desportiva e pelos quais estes respondem não constitui uma responsabilidade objetiva violadora dos princípios da culpa e da presunção de inocência.
III - Os n.ºs 1, 4 e 5 do artigo 2.º da Portaria n.º 301/2015, conjugados com a tabela constante do Anexo I (1.ª linha) dessa mesma Portaria, não são inconstitucionais por violação do princípio da proporcionalidade e do princípio da tutela jurisdicional efetiva.
Nº Convencional:JSTA000P26860
Nº do Documento:SA1202012030147/19
Data de Entrada:10/16/2020
Recorrente:CONSELHO DE DISCIPLINA DA FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL - SECÇÃO PROFISSIONAL E OUTROS
Recorrido 1:OS MESMOS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO


I. Relatório

1. FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL - identificada nos autos – recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do n.º 1 do artigo 150.º do CPTA, do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), de 30 de janeiro de 2020, que revogou o acórdão arbitral proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), de 9 de novembro de 2019, que confirmou o Acórdão da Secção Disciplinar do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), de 20 de novembro de 2018, que condenou a ora recorrida, FUTEBOL CLUBE DO PORTO – FUTEBOL SAD, em multas no valor total de 3.358,00 €.

Nas suas alegações formulou, com relevo para a decisão de mérito, as seguintes conclusões:

« (…)

10. Não existe nenhuma crítica a fazer à decisão proferida pelo TAD, ao contrário do que entendeu o TCA Sul;

11. O FCP não colocou, em momento algum, em causa que estes factos aconteceram, colocou em causa, sim, que tenham sido adeptos do FCP os responsáveis pelos mesmos;

12. Tal como consta dos Relatórios de Jogo cujo teor se encontra a fls. … do processo arbitral, os Delegados da Liga, bem como as forças de segurança, são absolutamente claros ao afirmar que tais condutas foram perpetradas pelos adeptos do FCP, sem deixar qualquer margem para dúvidas;

13. Com base nesta factualidade, e atendendo à gravidade dos factos perpetrados, o Conselho de Disciplina instaurou os competentes processos disciplinares à Recorrida;

14. Ao mencionado processo disciplinar foi junto, como não poderia deixar de ser, entre outros documentos, o relatório elaborado pelos delegados da Liga. Este relatório goza, consabidamente, da presunção de veracidade do seu conteúdo (cfr. Artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP);

15. Os Delegados da LPFP são designados para cada jogo com a clara função de relatarem todas as ocorrências relativas ao decurso do jogo, onde se incluem os comportamentos dos adeptos que possam originar responsabilidade para o respetivo clube;

16. Assim, quando os Delegados da LPFP colocam nos seus relatórios que foram adeptos de determinada equipa que levaram a cabo determinados comportamentos, tal afirmação é necessariamente feita com base em factos reais, diretamente visionados pelos delegados no local. Até porque, caso coloquem nos seus relatórios factos que não correspondam à verdade, podem ser alvo de processo disciplinar;

17. Ainda, para formar uma convicção para além de qualquer dúvida razoável que permitisse chegar à conclusão de que a ora Recorrida devia ser punida pelas infrações pelas quais foi condenada, o CD coligiu ainda outra prova, que consta dos autos, tal como, por exemplo, o Relatório das Forças Policiais;

18. Neste particular, os relatórios das forças policiais, por serem exarados por “autoridade pública” ou “oficial público”, no exercício público das “respetivas funções” (para as quais é competente em razão da matéria e do lugar), constituem documento autêntico (art.º 363.º, n.º 2 do Código Civil), cuja força probatória se encontra vertida nos artigos 369.º e ss. do Código Civil. Com efeito, tal relatório faz «prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora» (cf. art.º 371.º, n.º 1 do Código Civil);

19. Sucede que, não obstante os relatórios de jogo juntos aos autos serem claríssimos ao afirmar que foram adeptos afetos ao FCP, em concreto afetos aos GOAs “SUPER DRAGÕES” e “COLETIVO ULTRA95” que, entre outros comportamentos, deflagraram os artefactos pirotécnicos em análise, o TCA alega que nada existe nos autos que permita concluir que os atos sub judice – punidos pelo RD da LPFP – foram praticados por sócio, adepto ou simpatizante do FCP;

20. Manifestamente, o acórdão recorrido não tomou em consideração a presunção de veracidade legal e regulamentarmente estabelecida para os relatórios de policiamento desportivo e dos delegados da LPFP, respetivamente;

21. E é, precisamente, esta presunção de veracidade que, inscrevendo-se nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, confere um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP e pelas forças policiais relativamente aos factos deles constantes que estes tenham percecionado.

22. Isto não significa que os Relatórios Delegados da LPFP e das forças de segurança contenham uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo dos Relatórios, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que foram adeptos ou simpatizantes da recorrida que levaram a cabo os comportamentos sub judice;

23. Tal não significa que quem acusa não tenha o ónus de provar. Trata-se de abalar uma convicção gerada por documentos que beneficiam de uma especial força probatória;

24. E, para abalar essa convicção, cabia ao clube, no lugar de se remeter ao silêncio, apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil;

25. Por outro lado, a Recorrida bem sabia que, enquanto promotora do respetivo evento desportivo, estava adstrita, em concreto, ao dever de garantir revistas minuciosas e controlo durante o jogo que impeçam a entrada e permanência de artigos no Estádio do Dragão e que, tal garantia se aplica quer aos adeptos visitantes quer aos adeptos visitados.

26. Pelo exposto, para além do mais, não se percebe como pode o TCA, mediante a argumentação de que não está demonstrado que os factos sub judice foram levados a cabo por adeptos ou simpatizantes da Recorrida, entender que a decisão de 20.11.2018 proferida em via de recurso hierárquico impróprio pela Secção Disciplinar do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol se mostra inquinada de vício de violação de lei por erro de facto e de direito sobre os pressupostos.

27. Quanto à questão de saber se a ora recorrida pode ser responsabilizada a título de culpa por esses comportamentos, mais uma vez, nenhuma crítica há a fazer à decisão do Conselho de Disciplina;

28. Entende o TCA Sul que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta dos Relatórios de Jogo) que o FCP violou deveres de formação a que se encontra adstrito, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como sabemos, não é possível;

29. Ora, o Relatório dos Delegados da LPFP, bem como o Relatório de Policiamento Desportivo do jogo dos autos, atento os respetivos conteúdos, são perfeitamente suficientes e adequados para sustentar a punição do FCP no caso concreto.

30. Ademais, há que ter em conta, nos termos acima explanados, que no caso concreto existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tais documentos.

31. Isto significa que o conteúdo dos Relatórios juntos aos autos, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrida incumpriu os seus deveres.

32. Para abalar essa convicção, cabia ao FCP apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil;

33. Em sede sancionatória, o “arguido”, não pode simplesmente remeter-se ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento cabendo-lhe, pelo menos, colocar uma dúvida na mente do julgador correndo o risco de, não o fazendo, ser punido se as provas reunidas forem todas no mesmo sentido.

34. Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido dos Relatórios dos Delegados da LPFP, pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não o FCP.

35. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo dos Relatórios, cabia à Recorrida demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de Recurso Hierárquico Impróprio apresentado ou quanto muito em sede de ação arbitral. Mas a Recorrida não o demonstrou, em nenhuma sede;

36. Por seu turno, o TCA Sul nada analisa nem nada fundamenta;

37. Do conteúdo do Relatório de Jogo elaborado pelos Delegados da Liga, é possível extrair, desde logo, diretamente duas conclusões: (i) que o FCP incumpriu com os seus deveres, senão não tinham os seus adeptos perpetrado condutas ilícitas (violação do dever de formação); (ii) que os adeptos que levaram a cabo tais comportamentos eram apoiantes do Futebol Clube do Porto, o que se depreendeu por manifestações externas dos mesmos;

38. Isto significa que para concluir que quem teve um comportamento incorreto foram adeptos do FCP e não adeptos do clube visitante (e muito menos de um clube alheio a estes dois, o que seria altamente inverosímil), o Conselho de Disciplina tem de fazer fé no relatório dos delegados, os quais têm presunção de veracidade. Posteriormente, o FCP pode fazer prova que contrarie estas evidências, porém, no caso concreto, tal não aconteceu;

39. O próprio Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 730/95, diz claramente que “o processo disciplinar que se manda instaurar (…) servirá precisamente para averiguar todos os elementos da infração, sendo que, por essa via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)”;

40. Neste sentido, veja-se o Acórdão deste STA proferido no âmbito do recurso n.º 297/18, interposto da decisão do TCA Sul tirada no processo n.º 144/17.0BCLSB que, dando provimento ao recurso de revista, diz que é lícito o uso das presunções judiciais e que cabe ao clube apresentar prova que contrarie a presunção de veracidade dos relatórios, o que no caso, não sucedeu;

41. Ainda que se entenda – o que não se concede – que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir o clube recorrido, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido – a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Recorrida e a violação dos respetivos deveres – foi retirado de outros factos conhecidos.

42. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com nenhum princípio constitucional, tal como o princípio da presunção de inocência ou o princípio da culpa, de acordo com jurisprudência, quer dos tribunais comuns, quer dos tribunais administrativos.

43. A tese sufragada pelo TCA é um passo largo para fomentar situações de violência e insegurança no futebol e em concreto durante os espetáculos desportivos, porquanto diminuir-se-á acentuadamente o número de casos em que serão efetivamente aplicadas sanções, criando-se uma sensação de impunidade em que pretende praticar factos semelhantes aos casos em apreço e ao invés, mais preocupante, afastando dos eventos desportivos, quem não o pretende fazer, em virtude do receio da ocorrência de episódios de violência;

44. Face ao exposto, deve o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado por erro de julgamento, designadamente por errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 13.º, al. f), 127.º e 187.º, n.º 1, al. a) e b), todos do Regulamento Disciplinar da LFFP.»


2. A Recorrida contra-alegou, concluindo que:

«- I –

i. Inconformada com o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 30.01.2020 pretende a recorrente, em sede de revista, ver esclarecido o critério legal da apreciação da prova em processo disciplinar desportivo.

ii. Fá-lo, pretendendo que este Supremo Tribunal Administrativo funcione como uma terceira instância de apelação.

iii. O juízo sobre a matéria de facto é, via de regra, insindicável, porquanto o Supremo Tribunal Administrativo só poderá revogá-lo e determinar que o Tribunal Central Administrativo dê como provados factos que julgou como não verificados em face da prova existente se e apenas na medida em que esse juízo tenha violado disposição legal expressa que fixe a força de determinado meio de prova (art. 150.º-4 do CPTA).

iv. Não se vê, nem a recorrente a identifica, que norma legal haja sido violada pelo Tribunal Central Administrativo na apreciação da prova, devendo o recurso interposto pela recorrente ser julgado improcedente.

v. A revogação pelo STA do decidido pelo Tribunal a quo, com o fundamento de que a prova dos autos seria suficiente para sustentar a decisão condenatória tomada pela recorrida, ultrapassando a apreciação da prova realizada pelas instâncias competentes, incorrerá em excesso de pronúncia e violará o regime do recurso de revista instituído pelo art. 150.º do CPTA.

vi. Acresce que, caso o acórdão proferido por este Tribunal ad quem anule a decisão recorrida, contrariando o previsto no art. 150.º do CPTA, com fundamento de que a decisão condenatória proferida pela demandada, aqui recorrente, seria de considerar plausível e sustentável à luz do regime normativo que incide sobre a valoração da prova em sede disciplinar desportiva, então incorrerá em violação do princípio constitucional da repartição de funções de apreciação de recursos de apelação e de revista atribuídas, respectivamente, aos Tribunais Centrais Administrativos e ao Supremo Tribunal Administrativo, violando, destarte, o princípio da segurança jurídica no âmbito do exercício de funções jurisdicionais pelos tribunais administrativos, corolário do princípio do Estado de direito consagrado no art. 2.º da CRP.
- II -

vii. O arguido em processo disciplinar, tal como ocorre em processo penal, não tem de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada, até porque, aliado ao ónus da prova que recai sobre o titular da acção disciplinar (cf. jurisprudência uniforme e pacífica, e reiteradamente afirmada nos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 19/01/95, rec. n.º 031486, de 14/03/96, rec. n.º 028264, de 16/10/97, rec. n.º 031496 e de 27/11/97, rec. n.º 039040), vigora ainda o princípio da presunção de inocência.

viii. O princípio da presunção de inocência do arguido, também presente no âmbito do processo disciplinar, tem como um dos seus principais corolários a proibição de inversão do ónus da prova, não impendendo sobre o arguido – in casu a recorrida o ónus de reunir as provas da sua inocência (neste sentido, a título de exemplo, veja-se o acórdão do TCA Norte de 02.10.2010, processo n.º 01551/05.8BEPRT, e ainda o acórdão do TCA Norte de 05.10.2012, processo n.º 01958/08.7BEPRT, disponíveis em www.dgsi.pt).

ix. Donde, toda a prova susceptível de conduzir à responsabilidade jurídico-penal do arguido deve ser carreada para os autos pelo titular da acção disciplinar, não sendo, por isso, admissível qualquer inversão do ónus da prova em sede disciplinar (cf. Acórdão do STA de 17.02.2008, processo n.º 0327/08, acórdão do STA de 28.04.2005, processo n.º 333/05, bem como o acórdão do STA de 12.01.1998, processo n.º 023940, disponíveis em www.dgsi.pt).

x. Portanto, sem que esteja demonstrada e devidamente comprovada, através de robustas provas, a materialidade e autoria da infracção disciplinar fica comprometida qualquer condenação do arguido/recorrida, que deve ter a seu favor a presunção de inocência (cf. Ac. TCAS de 02-06-2010, Proc. 5260/01).

xi. Ainda que os documentos gozem de uma presunção de veracidade e sejam elaborados pelos Delegados presentes ao jogo, não se podem aqui diminuir as exigências de prova e de sua apreciação, bastando-se com simples afirmações vertidas em relatórios.

xii. Nem mesmo a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 13.º, f), do RD, pode contrariar o quadro normativo, dado que, mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador.

xiii. A presunção de veracidade, prevista no art. 13.º f) do RD, dos factos que nele se prevê só abrange os factos constantes das declarações, relatórios e autos lavrados pelos agentes e que hajam sido por eles percepcionados, e não outros.

xiv. Ora, como é evidente, pela própria natureza das coisas, há elementos típicos que, por norma, não são demonstráveis através dos relatórios de jogo da equipa de arbitragem e/ou dos delegados da Liga, nomeadamente, os que se prendem com a infracção pelo clube, com culpa, dos deveres, legais ou regulamentares, a que estava adstrito, e com a conexão que háde estabelecer-se entre essa infracção e a conduta proibida ocorrida.

xv. Face às normas e princípios que conformam o processo sancionatório, admitir a tese da recorrida equivaleria a uma violação das regras do ónus probatório e do princípio da presunção de inocência¸ o que deverá inevitavelmente conduzir ao repúdio de tal tese.

xvi. Repare-se que mesmo atentando ao descrito nos relatórios de jogo percebe-se que nenhum facto neles é sequer descrito em favor do preenchimento de pressuposto essencial dos tipos legais: uma actuação culposa da recorrida.

xvii. Porquanto se mostram por preencher todos os elementos das infracções e não tendo o titular da acção disciplinar carreado aos autos algum elemento de prova que depusesse em favor do preenchimento de pressuposto essencial exigido pelos tipos legais, sempre se impunha resolver “em favor do arguido por efeito da aplicação dos princípios da presunção de inocência do arguido e do “in dubio pro reo” – veja-se, com especial relevância nesta senda, o decidido no acórdão do TCAS de 07-02-2019, proferido no âmbito do proc. n.º 65/18.9BCLSB (TAD n.º 14/2018)

xviii. Face ao exposto, não padece o acórdão recorrido de qualquer erro de julgamento, tendo subsumido correctamente os factos alegados ao direito aplicável.

xix. Se, por mera hipótese de raciocínio, proceder a tese da recorrente, reputa-se como inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.º, n.ºs 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.º-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.º da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.º da CRP), a interpretação dos artigos 127.º, n.º 1 e 187.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 258.º, n.º 1, do RDLPFP de 2017, no sentido de que basta dar como provado, com base no artigo 13.º, al. f), do RDLFPF, que sócios ou simpatizantes de um clube adoptaram um comportamento social ou desportivamente incorrecto para que se dê também como provado que esse clube não observou os seus deveres legais e regulamentares de vigilância, controlo e formação desses seus sócios ou simpatizantes, cabendo ao clube aportar prova demonstradora do cumprimento desses seus deveres.

xx. Caso, contra tudo o alegado, se conceda provimento ao recurso, sempre se imporá o reenvio do processo ao Tribunal a quo, para que este, de acordo com o critério normativo fixado em sede de revista, aprecie, em plano de apelação, a conformidade da matéria de facto dada como provada com os únicos meios de prova constante dos autos: os Relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da LPFP;

xxi. porquanto, o cerne da questão controversa prende-se com o alcance da presunção de veracidade do relatório do delegado firmada pela alínea f), do art. 13.º do RDLPFP, e este STA dispõe apenas, neste domínio, de poderes de revista, só estando por isso autorizado a conhecer matéria de direito (art. 150.º-1 e -2 do CPTA).»


3. A Recorrida também recorreu, subordinadamente, quanto a custas, concluindo, nesse âmbito, que:

«i. As custas fixadas pelo TAD comprometem de forma séria e evidente o princípio da tutela jurisdicional efectiva (arts. 20.º-1 e 268.º-4 da CRP).

ii. Considerando o critério da nossa jurisprudência constitucional, não são compatíveis com o direito fundamental de acesso à justiça (arts. 20.º e 268.º-4 da CRP) soluções normativas de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito, como é o caso do TAD.

iii. O artigo 2.º, n.ºs 1, 4 e 5 da Portaria n.º 301/2015, conjugado com a tabela constante do Anexo I (1.ª linha) dessa mesma Portaria, em acções de arbitragem necessária com o valor de € 3.538,00, é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º, n.º 1, da CRP).»

4. Notificada da interposição do recurso subordinado, a Recorrente não contra-alegou.

5. Do acórdão recorrido foi previamente interposto pelo Ministério Público um recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), que, contudo, não foi admitido por o Tribunal Constitucional ter entendido que o mesmo não desaplicou qualquer norma legal com fundamento na sua inconstitucionalidade, tendo-se limitado a afastar a interpretação de direito infraconstitucional sufragada na decisão então recorrida.

6. O presente recurso de revista foi admitido por Acórdão da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo, em formação de apreciação preliminar, de 24 de setembro de 2020, dado que «o acórdão do TCA afronta a mais recente jurisprudência do Supremo neste campo».

7. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso principal, e ser negado provimento ao recurso subordinado.

8. Sem vistos, dada a natureza urgente do processo, nos termos do n.º 2 do artigo 8.º da Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, e do n.º 2 do artigo 36.º do CPTA.


II. Matéria de facto

9. O TAD deu como provados os seguintes factos:

«A. No dia 28 de setembro de 2018 realizou-se o jogo n° 10604 (203.01.049), no Estádio do Dragão, no Porto, entre Futebol Clube do Porto-Futebol SAD e Clube Desportivo de Tondela-Futebol SAD, a contar para a 6.ª Jornada da Liga NOS.

B. Uma zona da "Bancada Norte" (sector 28) e a "Bancada Sul" (sector 9) do referido estádio foram as zonas do estádio exclusivamente reservadas e ocupadas por grupos adeptos e simpatizantes afetos ao FC Porto - Futebol SAD, concretamente pelos grupos organizados "Colectivo Ultras 95" e os "Super Dragões";

C. Esses grupos de adeptos e simpatizantes estavam identificados pela indumentária alusiva à Demandante, nomeadamente com cachecóis, bandeiras, camisolas e tarjas de incentivo do clube;

D. Durante o desafio em causa, esses grupos de adeptos e os simpatizantes da demandada estavam colocados em zonas delimitadas;

E. Essas mesmas zonas da bancada do Estádio do Dragão estavam vedadas a adeptos da equipa visitante;

F. Aos 7 minutos da segunda parte, os adeptos e simpatizantes da Demandante, que integravam o Grupo Organizado "Colectivo Ultra 95" deflagraram um "flash light" e um petardo;

G. Aos 8 minutos da segunda parte, os adeptos e simpatizantes da Demandante, que integravam o Grupo Organizado "Super Dragões" deflagraram um "flash light";

H. Por volta dos 24 e 36 minutos da segunda parte, os referidos adeptos e simpatizantes da Demandante, situados na bancada Sul, que integravam o Grupo Organizado "Super Dragões" no momento em que o guarda redes da equipa C.D. Tondela executava o pontapé de baliza, entoaram o cântico "filho da puta".

I. No dia 07 de outubro de 2018 realizou-se o jogo nº 10701 (203.01.055), no Estádio do Sport Lisboa e Benfica, em Lisboa, entre Sport Lisboa e Benfica - Futebol SAD e Futebol Clube do Porto - Futebol SAD, a contar para a 7ª Jornada da Liga NOS.

J. A bancada Red Power (sectores 28 34) do Estádio do Sport Lisboa e Benfica foi a zona do estádio reservada aos adeptos e simpatizantes da equipa visitante, aqui Demandante, estando esta mesma zona vedada a adeptos da equipa visitada, Sport Lisboa e Benfica - Futebol SAD.

K. Esses grupos de adeptos e simpatizantes, da Demandante, estavam identificados pela indumentária alusiva à Demandante, nomeadamente cachecóis, bandeiras, camisolas e tarjas de incentivo do clube;

L. Entre os minutos 28 e 31 da primeira parte, os referidos adeptos e simpatizantes da Demandante entoaram o cântico "Benfica é Merda";

M. Cerca das 17h10m, um adepto e simpatizante da Demandante, que se encontrava nesse sector reservado, transportou uma tampa de sanita que veio a colar com fita cola no vidro que separa o sector 34 do 35;

N. O FC Porto não adotou as medidas preventivas adequadas e necessárias a fim de impedir que os seus adeptos entrassem, permanecessem e deflagrassem no interior do Estádio do Dragão os artefactos pirotécnicos descritos nos factos provados em f) e g) (convicção fundada nas regras de experiência e segundo juízos de normalidade e razoabilidade);

O. O FC Porto não adotou as medidas preventivas adequadas e necessárias a evitar os acontecimentos protagonizados pelos seus adeptos, descritos em h), l) e m) dos factos provados (convicção fundada nas regras de experiência e segundo juízos de normalidade e razoabilidade);

P. O FC Porto agiu de forma livre, consciente e voluntária bem sabendo que ao não evitar a ocorrência dos referidos factos perpetrados pelos seus adeptos e simpatizantes, incumpriu deveres legais e regulamentares de segurança e de prevenção da violência que sobre si impendiam, enquanto entidade organizadora do evento desportivo em causa e clube participante nos ditos jogos de futebol (convicção fundada nas regras de experiência e segundo juízos de normalidade e razoabilidade).

Q. Na presente época desportiva, à data dos factos, o FC Porto já havia sido sancionado, por decisão definitiva na ordem jurídica desportiva, pelo cometimento de diversas infrações disciplinares. cfr. cadastro disciplinar da FC Porto - Futebol SAD..»


III. Matéria de Direito

10. A questão que se discute no recurso principal é relativa à responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos por ocasião da realização de jogos de futebol.
Mais concretamente, a questão controvertida é a do valor probatório dos relatórios de jogo elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa de Futebol Profissional que, nos termos da alínea f) do artigo 13.º do respetivo Regulamento de Disciplina, gozam de uma «presunção de veracidade» dos factos nele atestados.
No caso dos autos, concretamente, o acórdão recorrido entendeu que, não obstante o que se dispõe naquela norma, e o que está escrito naquele relatório sobre a autoria dos factos que consubstanciam a punição disciplinar, não é legalmente possível presumir que todos os adeptos que ostentam camisolas bonés, cachecóis, tarjas ou bandeiras do ora recorrido sejam sócios ou simpatizantes do mesmo.
Por esta razão, o acórdão recorrido conclui que:
«porque as normas exigem a imputação da qualidade pessoal de sócio ou simpatizante ao clube especificamente objecto da punição, do ponto de vista jurídico não é admissível presumir a qualidade de sócio ou simpatizante relativamente a pessoa que nem se sabe quem é por não estar identificada no processo disciplinar. para efeitos de operatividade da ligação funcional do (desconhecido) sócio ou simpatizante ao clube desportivo nos termos consignados nos art°s. 127°/187° do RD—LPFP/2018.
Efectivamente, a interpretação dos art°s. 127º/187° do RD—LPFP/2018 no sentido
(i) da imputação de autoria ao clube por efeito automático da concretização dos ilícitos disciplinares comissivos referidos ou descritos nos citados artigos (127"/187°), cometidos por pessoa física cuja identidade é desconhecida,
(ii) presumindo a qualidade funcional de "sócio ou simpatizante" (ligação ao clube) exigida pela norma (182º/187°) relativamente a essa pessoa física de identidade desconhecida,
(iii) associando à concretização dos ilícitos (182°/187°) o efeito automático de imputação ao clube do delito omissivo impróprio de violação do dever jurídico de garante (art° 35° do Regulamento das Competições da LPFP/2016),
configura-se inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência em sede de processo disciplinar, à luz do regime constante do art° 32° n°s. 2 e 10 CRP».

11. A questão controvertida neste recurso não é nova neste Supremo Tribunal Administrativo, que sobre a mesma tem dado resposta de forma uniforme e reiterada, no sentido de que «a presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional [LPFP] que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP [RD/LPFP], conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos arts. 02.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo» - cfr. Acórdão de 21 de fevereiro de 2019, proferido no Processo n.º 0033/18.0BCLSB; v. também, no mesmo sentido Acórdãos de 18 de outubro de 2018, proferido no Processo nº 0144/17.0BCLSB, de 20 de dezembro de 2018, proferido no Processo nº 08/18.0BCLSB, de 21 de fevereiro de 2019, proferido no Processo nº 033/18.0BCLSB, de 21 de março de 2019, proferido no Processo nº 075/18.6BCLSB, de 4 de abril de 2019, proferido nos Processos nºs 040/18.3BCLSB e 030/18.6BCLSB, de 2 de maio de 2019, proferido no Processo nº 073/18.0BCLSB, de 19 de junho de 201, proferido no Processo nº 01/18.2BCLSB, de 5 de setembro de 2019, proferido nos Processos nºs 058/18.6BCLSB e 065/18.9BCLSB, de 16 de janeiro de 2020, proferido no Processo n.º 039/19.2BCLSB, 7 de maio de 2020, proferido nos Processos n.º 0144/17.0BCLSB e 074/19.0BCLSB, de 18 de junho de 2020, proferido no Processo n.º 42/19.2BCLSB, e de 19 de novembro de 2020, proferidos nos Processos n.ºs 82/18.9BCLSB e 102/19.0BCLSB, todos consultáveis em www.dgsi.pt/jsta.


12. No citado acórdão de 21 de fevereiro de 2019, que seguimos de perto, aquela conclusão é alicerçada nas considerações seguintes:
«51. O conceito de «infração disciplinar» mostra-se definido no n.º 1 do art. 17.º do referido RD ali se preceituando que se considera «infração disciplinar o facto voluntário, por ação ou omissão, e ainda que meramente culposo, que viole os deveres gerais ou especiais previstos nos regulamentos desportivos e demais legislação aplicável», elencando-se nos seus arts. 29.º e 30.º o leque de sanções disciplinares [principais e acessórias] e quais aquelas que são aplicáveis aos clubes.
52. Resulta, por sua vez, do capítulo IV do RD/LPFP-2017 o elenco de infrações disciplinares, prevendo-se na sua secção I as «infrações específicas dos clubes», as quais podem ser «muito graves» [cfr. subsecção I, arts. 62.º a 83.º], «graves» [cfr. subsecção II, arts. 84.º a 118.º] e «leves» [cfr. subsecção III, arts. 119.º a 127.º], seguindo-se depois as infrações de dirigentes, de jogadores, de delegados dos clubes e dos treinadores, e na secção VI o regime das «infrações dos espectadores», resultando enunciado no art. 172.º, como princípio geral, o de que os «clubes são responsáveis pelas alterações da ordem e da disciplina provocadas pelos seus sócios ou simpatizantes nos complexos, recintos desportivos e áreas de competição, por ocasião de qualquer jogo oficial» [n.º 1] e de que «[s]em prejuízo do acima estabelecido, no que concerne única e exclusivamente ao autocarro oficial da equipa visitante, o clube visitado será responsabilizado pelos danos causados em consequência dos atos dos seus sócios e simpatizantes praticados nas vias públicas de acesso ao complexo desportivo» [n.º 2] [sublinhado nosso].
53. Também as «infrações dos espectadores» se mostram qualificadas como podendo ser «muito graves» [cfr. subsecção II, arts. 173.º a 178.º], «graves» [cfr. subsecção III, arts. 179.º a 184.º] e «leves» [cfr. subsecção IV, arts. 185.º a 187.º], estipulando-se, no que releva para o litígio, no seu art. 187.º, respeitante a «comportamento incorreto do público», que «[f]ora dos casos previstos nos artigos anteriores, o clube cujos sócios ou simpatizantes adotem comportamento social ou desportivamente incorreto, designadamente através do arremesso de objetos para o terreno de jogo, de insultos ou de atuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina é punido nos seguintes termos: a) o simples comportamento social ou desportivamente incorreto, com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 5 UC e o máximo de 15 UC; b) o comportamento não previsto nos artigos anteriores que perturbe ou ameace a ordem e a disciplina, designadamente mediante o arremesso de petardos e tochas, é punido com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 15 UC e o máximo de 75 UC» [n.º 1].
54. Decorre, por outro lado, do art. 34.º do RC/LPFP-2017, relativo à segurança e utilização dos espaços de acesso público, que os «clubes estão obrigados a elaborar um regulamento de segurança e utilização dos espaços de acesso ao público relativo ao estádio por cada um utilizado na condição de visitado e cuja execução deve ser concertada com as forças de segurança, a ANPC e os serviços de emergência médica e a Liga» [n.º 1], e que tal regulamento deverá conter, designadamente, medidas relativas à «a) separação física dos adeptos, reservando-lhes zonas distintas, nas competições desportivas consideradas de risco elevado; … d) instalação ou montagem de anéis de segurança e adoção obrigatória de sistemas de controlo de acesso, de modo a impedir a introdução de objetos ou substâncias proibidas ou suscetíveis de possibilitar ou gerar atos de violência, nos termos previstos na lei» [n.º 2].
55. Resulta do art. 35.º do mesmo RC que «[e]m matéria de prevenção de violência e promoção do fair-play, são deveres dos clubes: a) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança; b) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados; c) aplicar medidas sancionatórias aos seus associados envolvidos em perturbações da ordem pública, impedindo o acesso aos recintos desportivos nos termos e condições do respetivo regulamento ou promovendo a sua expulsão do recinto; (…) f) garantir que são cumpridas todas as regras e condições de acesso e de permanência de espetadores no recinto desportivo; (…) k) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, com a redação dada pela Lei n.º 52/2013, de 25 de julho; l) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas, xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos; (…) o) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei; (…) s) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afetos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos» [n.º 1], e que «[p]ara efeito do disposto na alínea f) do número anterior, e sem prejuízo do estabelecido no artigo 24.º da Lei n.º 39/2009 (…) e no Regulamento de prevenção da violência constante do Anexo VI, são considerados proibidos todos os objetos, substâncias e materiais suscetíveis de possibilitar atos de violência, designadamente: (…) f) substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo-de-artifício, foguetes luminosos (very-lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos; g) latas de gases aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam altamente inflamáveis» [n.º 2], sendo que «[p]ara além do disposto nos números anteriores, os clubes visitados, ou considerados como tal, devem proceder à colocação, em todas as entradas do estádio, de um mapa-aviso, de dimensões adequadas, com a descrição de todos os objetos ou comportamentos proibidos no recinto ou complexo desportivo, nomeadamente invasões do terreno de jogo, arremesso de objetos, uso de linguagem ou cânticos injuriosos ou que incitem à violência, racismo ou xenofobia, bem como a introdução (…) material produtor de fogo-de-artifício ou objetos similares, e quaisquer outros suscetíveis de possibilitar a prática de atos de violência» [n.º 6] [sublinhados nossos].
56. E quanto aos regulamentos de prevenção da violência [cfr. art. 36.º daquele RC] a matéria surge regulada nos referidos RD/LPFP e no anexo VI ao RC/LPFP [o RPV/RC/LPFP - adotado ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 05.º da Lei n.º 39/2009 (cfr. art. 02.º do mesmo RPV - «norma habilitante»)], extraindo-se do seu art. 04.º que «[c]ompete à Liga e aos seus associados, incentivar o respeito pelos princípios éticos inerentes ao desporto e implementar procedimentos e medidas destinados a prevenir e reprimir fenómenos de violência, racismo, xenofobia e intolerância nas competições e nos jogos que lhes compete organizar», constituindo deveres do «promotor do espetáculo desportivo» [no caso os «clubes» - cfr. art. 05.º, al. h), do referido RPV], no que aqui ora releva, os de «(…) b) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança; c) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados; (…) l) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009 (…); m) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube, associação ou sociedade desportiva participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos; p) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei; (…) t) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afetos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos; u) instalar e manter em funcionamento um sistema de videovigilância, de acordo com o preceituado nas leis aplicáveis» [cfr. art. 06.º do mesmo Regulamento].
57. Constituem, por último, condições de acesso dos espetadores ao recinto desportivo definidas no art. 09.º do referido Regulamento, nomeadamente, o: «f) não entoar cânticos racistas ou xenófobos ou que incitem à violência; (…) l) consentir na revista pessoal e de bens, de prevenção e segurança, com o objetivo de detetar e/ou impedir a entrada ou existência de objetos ou substâncias proibidos ou suscetíveis de possibilitar atos de violência; m) não transportar ou trazer consigo objetos, materiais ou substâncias suscetíveis de constituir uma ameaça à segurança, perturbar o processo do jogo, impedir ou dificultar a visibilidade dos outros espetadores, causar danos a pessoas ou bens e/ou gerar ou possibilitar atos de violência, nomeadamente: (…) vi. substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo-de-artifício, foguetes luminosos (very-lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos; vii. latas de gases aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam altamente inflamáveis», sendo que o acesso e permanência dos grupos organizados de adeptos [cfr. art. 11.º] se mostra disciplinado pelo estabelecido, nomeadamente, no art. 09.º, sendo sempre obrigatória a revista pessoal aos mesmos e seus bens.
58. Encerrando-se aqui o elencar do quadro normativo tido por pertinente para a análise do litígio temos que a previsão do ilícito desportivo disciplinar em questão, no caso o inserto no art. 187.º do RD/LPFP-2017, mostra-se clara e perfeitamente integrada naquilo que, por um lado, são os deveres legais e regulamentares atrás aludidos e que nesta matéria impendem, nomeadamente, sobre os clubes e sociedades desportivas, e, por outro lado, no que, mais vastamente, constituem os objetivos e os fins da política de combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança e desportivismo, prevenindo a eclosão e reprimindo a existência ou a manifestação de tais fenómenos.
59. Através da previsão do referido ilícito desportivo disciplinar visa-se a prossecução e realização daqueles objetivos e fins, prevenindo e reprimindo os comportamentos e as condutas que nele se mostram tipificados e que são atentatórios e desconformes com aqueles objetivos e fins, fazendo responder clubes e sociedades desportivas por tais condutas e comportamentos incorretos, tidos pelo público aos mesmos afeto ou simpatizante, enquanto reveladores da inobservância por estes, por ação ou por omissão, do que constituem os seus deveres legais e regulamentares gerais e especiais constantes dos comandos normativos atrás convocados.
60. Na formulação do que constitui o tipo de ilícito disciplinar inserto no art. 187.º do RD/LPFP-2017 e do que, em decorrência, se exige para o seu preenchimento em concreto, estão subjacentes, tão-só, as condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube/sociedade desportiva e pelos quais os mesmos respondem, porquanto decorrentes ou fruto do que constitui o incumprimento pelos mesmos, por ação ou omissão, do dever in vigilando que têm sobre as suas claques e adeptos, nomeadamente e no que releva para a discussão objeto dos autos sub specie, de que houve alguma falha no dever de revista dos adeptos, no dever de revista do estádio, no dever de controlar os adeptos dentro do estádio, no dever de demover os adeptos de praticarem ou desenvolverem tal tipo de comportamentos e condutas.
61. Ora no caso vertente inexiste, por não aportado aos autos, um qualquer elemento densificador e revelador do cumprimento por parte da demandante dos deveres a que está subordinada no que respeita aos deveres de formação, controlo e vigilância do comportamento dos seus adeptos e espectadores, bem sabendo que estava obrigada a cuidar dos mesmos e que eram os seus adeptos que ocupavam a denominada «bancada sul», onde se verificaram as ocorrências registadas no Relatório.
62. Sobre os clubes de futebol e as respetivas sociedades desportivas, como é o caso da demandante aqui recorrida, recaem especiais deveres na assunção, tomada e implementação de efetivas medidas não apenas dissuasoras e preventivas, mas, também, repressoras, dos fenómenos de violência associada ao desporto e de falta de desportivismo, de molde a criar as condições indispensáveis para que a ordem e a segurança nos estádios de futebol português sejam uma realidade.
63. Neste contexto, ao invés do sustentado pela demandante na sua impugnação e que veio a ter acolhimento no acórdão recorrido, não estamos em face de uma qualquer situação de responsabilidade disciplinar objetiva violadora dos princípios e comandos constitucionais.
64. Com efeito, mostra-se ser in casu subjetiva a responsabilidade desportiva na vertente disciplinar da demandante aqui recorrida, já que estribada naquilo que foi uma violação dos deveres legais e regulamentares que sobre a mesma impendiam neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido.
65. É que se no domínio da prevenção da violência associada ao fenómeno desportivo o quadro normativo impõe deveres a um leque alargado de destinatários, nomeadamente, aos clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, é porque lhes reconhece capacidade para os cumprir e também para os violar, pelo que apurando-se a violação de deveres legalmente estabelecidos os destinatários dos mesmos serão responsáveis por essa violação.
66. Socorrendo-nos e transpondo para o caso vertente a jurisprudência do TC expendida no acórdão n.º 730/95 [consultável in: «www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/»] e que foi firmada no quadro da apreciação da conformidade constitucional da sanção de interdição dos estádios por comportamentos dos adeptos dos clubes prevista nos arts. 03.º a 06.º do DL n.º 270/89, de 18.08 (diploma no qual se continham medidas preventivas e punitivas de violência associada ao desporto) e 106.º do Regulamento Disciplinar da FPF], temos que os ilícitos disciplinares ou disciplinares desportivos imputados e pelos quais a demandante aqui recorrida foi sancionada resultam de «condutas ilícitas e culposas das respetivas claques desportivas (assim chamadas e que são os sócios, adeptos ou simpatizantes, como tal reconhecidos) - condutas que se imputam aos clubes, em virtude de sobre eles impenderem deveres de formação e de vigilância que a lei lhes impõe e que eles não cumpriram de forma capaz», «[d]everes que consubstanciam verdadeiros e novos deveres in vigilando e informando», presente que cabe a cada clube desportivo o «dever de colaborar com a Administração na manutenção da segurança nos recintos desportivos, de prevenir a violência no desporto, tomando as medidas adequadas», concluindo-se no sentido de que «[n]ão é, pois, (…) uma ideia de responsabilidade objetiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres».
67. É, por conseguinte, neste ambiente de proteção, salvaguarda e prevenção da ética desportiva, bem como do combate a manifestações de violência associada ao desporto, que incidem ou recaem sobre vários entes e entidades envolvidos, designadamente sobre os clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, um conjunto de novos deveres in vigilando e in formando e em que a inobservância destes deveres assenta não necessariamente numa valoração social, moral ou cultural da conduta do infrator, mas antes no incumprimento de uma imposição legal, sancionando-se aqueles por via da contribuição omissiva, causal ou co causal que tenha conduzido a um comportamento ou conduta dos seus adeptos.
68. Na verdade, não estamos in casu, pois, perante uma responsabilidade objetiva já que o regime previsto nos arts. 17.º, 19.º, 20.º, 127.º, 187.º, n.º 1, als. a) e b), do RD/LPFP-2017 em articulação, nomeadamente, com os arts. 06.º, al. g), e 09.º, n.º 1, al. m), do RPV/RC/LPFP-2017 e com o que resulta do demais quadro normativo atrás convocado, observa o princípio da culpa, tanto mais que em sua decorrência apenas se sancionam os clubes de futebol ou as suas sociedades desportivas pelos comportamentos incorretos do seu público havidos em violação por aqueles dos deveres que sobre os mesmos impendiam.
69. Daí que, no contexto, o princípio constitucional da culpa, enquanto servindo, igualmente, de elemento conformador e basilar ao Estado de direito democrático, e tendo como pressuposto o de que qualquer sanção configura a reação à violação culposa de um dever de conduta, considerado socialmente relevante e que foi prévia e legalmente imposto ao agente, não se mostra minimamente infringido, tanto mais que será no quadro do processo disciplinar a instaurar [cfr. arts. 212.º e segs., 225.º e segs., do RD/LPFP-2017] que se terão de averiguar e apurar todos os elementos da infração disciplinar, permitindo, como se refere no citado acórdão do TC, que «por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)».
70. Frise-se que é na e da inobservância dos deveres de assunção da responsabilidade pela segurança do que se passe no recinto desportivo e do desenvolvimento de efetivas ações de prevenção socioeducativa que radica ou deriva a responsabilidade disciplinar desportiva em questão, dado ter sido essa conduta que permitiu ou facilitou a prática pelos seus adeptos dos atos ou comportamentos proibidos ou incorretos.
71. E que cabe aos clubes de futebol/sociedades desportivas a demonstração da realização por parte dos mesmos junto dos seus adeptos das ações e dos concretos atos destinados à observância daqueles deveres e, assim, prevenirem e eliminarem a violência, e isso sejam esses atos e ações desenvolvidos em momento anterior ao evento, sejam, especialmente, imediatamente antes ou durante a sua realização.
72. Para o efeito, aportando prova demonstradora, designadamente, de um razoável esforço no cumprimento dos deveres de formação dos adeptos ou da montagem de um sistema de segurança que, ainda que não sendo imune a falhas, conduza a que estas ocorrências e condutas sejam tendencialmente banidas dos espetáculos desportivos, assumindo ou constituindo realidades de carácter excecional.
73. A previsão no quadro disciplinar do ilícito desportivo em crise mostra-se, assim, devidamente legitimada já que encontra, ou vê radicar, repousar os seus fundamentos não apenas naquilo que é a necessária prevenção, mas, também, na culpa, sancionando-se o que constitui um negligente cumprimento dos deveres supra enunciados, sem que, de harmonia com o exposto, um tal entendimento atente ou enferme de violação dos princípios da culpa e do Estado de direito, ou constitua um entorse aos direitos de defesa e a um processo equitativo, dado que assegurados e garantidos em consonância e adequação com o entendimento e interpretação fixados.
74. E também não vemos que tal entendimento e interpretação possam envolver uma pretensa violação dos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo, pois, não estamos em face da assunção duma presunção de culpa da arguida ou de regra que dispense, libere ou inverta o ónus probatório que colida com o primeiro princípio, nem, como atrás referido, no caso em presença somos confrontados com uma situação de inexistência de prova relevante de que foi cometido ilícito e de quem é o sujeito responsável à luz da prova produzida para, mercê da existência de legítima dúvida, fazer apelo ao segundo princípio.»

13. As considerações transcritas são plenamente aplicáveis ao caso dos autos, pelo que o TAD não estava impedido de fundar no relatório elaborado pelos delegados da Liga a presunção de que os factos neles relatados são imputáveis a sócios ou simpatizantes da ora recorrida.
Deste modo, extraindo-se da matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido que a recorrida incumpriu culposamente os deveres de vigilância, controlo e formação a que estava adstrita, por força do disposto nos artigos 13.º, al. f), 127.º e 187.º, n.º 1, al. a) e b), todos do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, não pode deixar de se concluir que o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento quando considerou existir violação do princípio da presunção de inocência do arguido, à luz do regime constante dos n.ºs 2 e 10 do artigo 32.º CRP.

14. Ao concluir nestes termos, este Supremo Tribunal Administrativo não está a extravasar o âmbito dos seus poderes de jurisdição, na medida em que não está a realizar um julgamento sobre a matéria de facto, através de uma distinta valoração probatória, mas apenas a aplicar o direito aos factos considerados provados pelo acórdão recorrido.
Inexiste, assim, o excesso de pronúncia alegado pela recorrida.

15. A conclusão de que se pode dar como provado, por presunção, que o clube violou deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes com base no facto de que esses sócios ou simpatizantes adotaram um comportamento social ou desportivamente incorreto também não viola o princípio jurídico-constitucional da culpa, que se extrai do princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da CRP, pois, como se afirmou no acórdão atrás citado, o que os artigos 187.º, n.º 1, als. a) e b), 127.º, n.º 1 e 258.º, n.º 1, do RDLPFP sancionam é o «negligente cumprimento dos deveres supra enunciados».

16. Aquela conclusão também não afronta o direito da recorrida a um processo equitativo, nos termos do n.º 4 do artigo 20.º da CRP.
Como se afirmou a este propósito no Acórdão desta Secção, de 12 de dezembro de 2019, proferido no Processo n.º 048/19.0BCLSB, em que a ora recorrida também era parte:
« 26. (...) se é certo que a CRP consagra nos seus arts. 20º e 268º nº 4, o direito a um processo justo, imparcial e equitativo, o qual postula, designadamente, que a «todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos», temos que a definição dos meios de tutela jurisdicional desses direitos e interesses, daquilo que são as suas regras de tramitação, os poderes e os ónus que recaem sobre as partes e poderes do julgador, carecem de consagração e concretização legal, não resultando dos direitos em referência a atribuição aos cidadãos, na defesa e tutela de seus direitos e interesses, de um direito a livremente poderem socorrer-se de todo e qualquer meio processual ou probatório que considerem adequado, nem que estejam isentos ou desonerados do respeito de regras contendo deveres e ónus/faculdades processuais e/ou das consequências que derivem do seu incumprimento ou da sujeição às decorrências resultantes dos comportamentos desenvolvidos no ou fazendo uso de ónus/faculdades.
27. Na verdade, atendendo a outros bens e valores jurídicos que importa que sejam igualmente considerados, o legislador procede à definição dos meios ao dispor dos cidadãos para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, disciplina as suas regras e pressupostos, institui deveres, poderes e ónus para as partes, cientes de que o direito a um processo equitativo só se considera violado quando for impossível o estabelecimento de uma relação mínima de equilíbrio ou proporção entre a justificação da exigência em causa e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento de tal exigência.
28. No caso vertente não se vislumbra uma qualquer ofensa ao comando constitucional em crise e ao direito convocado, porquanto à Recorrida mostrou-se e mostra-se assegurado, em pleno, o direito a um processo equitativo na e com tramitação e decisão dos vários meios impugnatórios de que dispôs e deduziu em várias sedes e instâncias, feitas segundo as regras disciplinadoras dos mesmos e que se mostram equilibradas/proporcionais aos valores e direitos a tutelar - cfr., também, em idêntico sentido o ponto 2.4 do Ac. deste STA de 5/9/2019 (Proc. n.º 058/18.6BCLSB).»

17. Deste modo, e sem necessidade de mais considerações, conclui-se que o presente recurso deve proceder, revogando-se o acórdão recorrido e mantendo-se o acórdão do TAD que confirmou a multa aplicada à recorrida.

18. A recorrida alega que, no caso de o recurso proceder, como procede, impõe-se «o reenvio do processo ao Tribunal a quo, para que este, de acordo com o critério normativo fixado em sede de revista, aprecie, em plano de apelação, a conformidade da matéria de facto dada como provada com os únicos meios de prova constante dos autos: os Relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da LPFP.»
Mas não tem razão.
Por um lado, porque desta revista não decorre, como não poderia resultar, qualquer dever de repetição do julgamento de facto. Aliás, o TCAS apreciou a matéria de facto dada como provada pelo TAD e não fez a esse respeito qualquer reparo, limitando a sua divergência ao julgamento de direito.
Por outro lado, porque o TCAS não deixou nenhuma questão de direito por conhecer – nomeadamente por ter ficado prejudicada pela sua decisão – pelo que a censura da errada interpretação que fez do direito aplicável àqueles factos implica, automaticamente, a confirmação da decisão do TAD.

19. No recurso subordinado a Recorrida alega que «artigo 2.º, n.ºs 1, 4 e 5 da Portaria n.º 301/2015, conjugado com a tabela constante do Anexo I (1.ª linha) dessa mesma Portaria, em acções de arbitragem necessária com o valor de € 3.538,00, é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º, n.º 1, da CRP)».
Esta questão também já foi apreciada por este Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão de 5 de setembro de 2019, proferido no Processo n.º 058/18.6BCLSB, e mais recentemente no Acórdão de 18 de junho de 2020, proferido no Processo n.º 042/19.2BCLSB, e em ambos os casos se concluiu pela não inconstitucionalidade dos dispositivos normativos citados.
A questão também foi objeto do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 543/2019, de 16/10/2019, a cujo entendimento aderimos, e onde se escreveu:

«(…)
Como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, no contexto de apreciação das custas judiciais, a Constituição não garante uma justiça gratuita mas uma justiça economicamente acessível à generalidade dos cidadãos, sem necessidade de recurso ao sistema de apoio judiciário (cfr., entre outros, Acórdãos nºs. 1182/96 e 70/98). Ora, se o Estado pode exigir aos cidadãos que recorrem aos tribunais públicos o pagamento de taxas de justiça em contrapartida do serviço público de justiça que lhes é individualmente prestado nos processos judiciais, por maioria de razão poderá exigir aos operadores desportivos o pagamento do serviço especializado de justiça desportiva que lhes é especificamente prestado pelo TAD, que é um centro de arbitragem de natureza privada criado para responder às necessidades de uniformização, celeridade e especialização impostas pela especificidade do litígio desportivo /Acórdão n.º 230/13).
(…) a transferência de competências jurisdicionais dos tribunais administrativos para o TAD, na matéria em apreço (cfr. artigos 4.º e 5.º da respetiva lei), redundou num encarecimento dos valores cobrados pelo serviço público de justiça prestado em processos de valor igual ou inferior a € 30.000,00. E efetivamente assim é, como decorre da comparação do montante global na primeira linha da tabela constante do Anexo I da Portaria n.º 301/2015 (€ 3.325,00) e o montante máximo da taxa de justiça fixada na tabela I do RCP para a generalidade dos processos judiciais de valor não superior a € 30.000,00 (cinco unidades de conta, que equivale a € 510,00), situando-se a diferença em cerca de seis vezes mais o valor das custas dos processos arbitrais necessários (€ 510,00 x 6 = €3060,00).
Sucede que, como se antecipou no ponto anterior, há razões constitucionalmente aceitáveis para essa diferença de valores, que se prendem com a natureza privada do TAD – que tem nas custas processuais a sua principal fonte de financiamento (artigo 1.º, n.º 3, da Lei do TAD) –, o nível médio de rendimentos de entidades desportivas envolvidas nos litígios que integram a competência necessária desse tribunal arbitral, sensivelmente superior ao nível médio de rendimentos dos cidadãos em geral, e as próprias características do serviço de justiça prestado pelo TAD.
Conforme é referido no Acórdão n.º 155/2017, «[p]ara que se possa considerar existir uma clara desproporção que afeta o carácter sinalagmático de um tributo não se pode atender apenas ao carácter fortemente excessivo da quantia a pagar relativamente ao custo do serviço (acórdãos nºs. 640/95 e 1140/96); ela há-de igualmente ser aferida em função de outros fatores, designadamente da utilidade do serviço para quem deve pagar o tributo (cfr. acórdãos nºs. 1140/96, 115/02 e 349/02».
(…) não se deve ignorar a especificidade da justiça arbitral (necessária) face à justiça estadual, nem a especificidade do tipo de litígios integrados na competência necessária do TAD face à generalidade dos demais litígios carecidos de resolução jurisdicional, sendo necessariamente diferentes as variáveis de ponderação que o legislador deve atender na fixação do valor das custas de processos que genericamente envolvem federações desportivas, ligas profissionais e clubes desportivos, e são decididos por uma entidade que, tendo natureza jurisdicional, não é pública, nem financiada pelo Estado, e tem a seu cargo custos próprios permanentes que decorrem da sua específica estrutura arbitral de funcionamento.
Neste enquadramento, não se afigura constitucionalmente censurável a fixação de um valor mínimo de custas processuais que reflita a maior capacidade económica presumida dos potenciais litigantes e permita cobrir os custos específicos mais elevados do serviço de justiça prestado pelos tribunais arbitrais, como sucede com o valor concretamente fixado na primeira linha da tabela anexa à Portaria n.º 301/2015 (€ 3.325,00).
Os eventuais excessos que o sistema de custas processuais legalmente estabelecido possa comportar, por força da amplitude do primeiro escalão tributário, devem ser sinalizados caso a caso em função do concreto valor processual da causa e do concreto valor das custas processuais cobradas. Esta tem sido, aliás, a perspetiva de análise que o Tribunal Constitucional tem adotado no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade de normas que fixam o montante das custas processuais exclusivamente em função do valor da causa, sindicando à luz do princípio constitucional da proporcionalidade, não o critério em si, mas o resultado tributário concreto a que a sua aplicação conduziu no processo que deu origem ao recurso de constitucionalidade.
(…)».

Assim, ao contrário do alegado pela recorrente, o facto de haver uma discrepância entre o valor das custas arbitrais e o das judiciais não é, por si só, fundamento bastante de inconstitucionalidade, tendo em conta a especificidade da justiça arbitral desportiva, e o seus elevados custos estruturais, que não podem deixar de ser pagos por quem dela retira as suas utilidades e tem a capacidade económica necessária para os suportar.

Improcede, assim, o recurso subordinado.


IV. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, reunidos em conferência, em:

a) conceder provimento ao recurso principal e, em consequência, em revogar a decisão recorrida quanto ao fundo da questão decidenda, confirmando-se o Acórdão do TAD por ela revogado, que manteve a pena disciplinar de multa aplicada à Recorrida, no valor de €3.358,00;
b) recusar provimento ao recurso subordinado e, em consequência, manter a decisão recorrida quanto a custas.

Custas pela Recorrida, neste Tribunal e no TCAS. Notifique-se


Lisboa, 3 de dezembro de 2020. – Cláudio Ramos Monteiro (relator) - Carlos Luís Medeiros de Carvalho - Maria Benedita Malaquias Pires Urbano