Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0184/15.3BALSB
Data do Acordão:03/04/2020
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:ARAGÃO SEIA
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P25682
Nº do Documento:SAP202003040184/15
Data de Entrada:02/25/2015
Recorrente:A... E B...
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

A……… e B……….., Requerentes nos autos n.º 620/2014-T que correram termos no CAAD, notificados da decisão arbitral, em 19 de Janeiro de 2015, vêm, nos termos do disposto no artigo 25.° do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), dela interpor recurso para o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo, por oposição de julgamento relativamente a duas questões fundamentais de direito, julgadas na decisão recorrida.
O presente recurso resulta, por um lado, da oposição da decisão arbitral com a posição perfilhada pelo Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido em 09 de Dezembro de 2008, no Processo n.° 02504/08, e consubstancia-se na diferença de entendimento quanto à classificação do procedimento inspectivo, nos termos do artigo 13.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira (“RCPIT”).
Por outro, da oposição entre a decisão recorrida e o Acórdão, proferido em 14 de Abril de 2013, pelo Supremo Tribunal Administrativo, no Processo n.° 01215/12, que se consubstancia na diferente aplicação do dever de fundamentação dos actos tributários, previsto no artigo 77° da Lei Geral Tributária (“LGT”).

Alegaram, tendo concluído:
Da classificação do procedimento inspectivo, nos termos do artigo 13.° do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira:
A) Os Recorrentes interpuseram o presente recurso com fundamento na oposição de decisões entre o Acórdão proferido no âmbito do processo arbitral n.° 620/2014-T que correu os seus termos junto do Centro de Arbitragem Administrativa - e, em que os ora Recorrentes eram Requerentes - (“Acórdão recorrido”), e o Acórdão proferido pela Secção de Contencioso Tributário (2.° Juízo), do Tribunal Central Administrativo Sul, de 09 de Dezembro de 2008, proferido no âmbito do Processo n.° 02504/08 (“Acórdão fundamento”);
B) Subjacente às decisões proferidas pelo Acórdãos acima mencionados está a questão da classificação do procedimento de inspecção tributária em interno ou externo, quando a AT solicita informações e esclarecimentos, os quais servem de base às ulteriores correcções efectuadas pela AT. Ou seja, a oposição em que assenta o presente recurso prende-se com o diferente entendimento subscrito pelo CAAD e pelo Tribunal Central Administrativo Sul, quanto à referida questão;
C) No Acórdão recorrido, os Exmos. Senhores Árbitros do CAAD aderiram à classificação atribuída pela AT, considerando que, não obstante, os pedidos de informações e esclarecimentos solicitados pela AT aos ora Recorrentes, o procedimento inspectivo se devia classificar como interno, não se verificando, por isso, qualquer invalidade;
D) Com efeito, o referido Acórdão sufraga o entendimento de que as informações e os esclarecimentos solicitados revestem “natureza complementar e desempenham a meritória função de interpor uma etapa de contraditório antes da emissão do Projecto de Correcções”;
E) Acresce que, os Exmos. Senhores Árbitros do CAAD sustentam ainda a validade do procedimento inspectivo em causa com fundamento no facto de o entendimento proferido por este Venerando Supremo Tribunal Administrativo ser no sentido de que o excesso de duração do procedimento inspectivo não invalida o acto de liquidação, tendo apenas como única consequência a cessão da suspensão do prazo de caducidade do imposto;
F) Neste seguimento, o Acórdão recorrido conclui pela inexistência de qualquer vício legal, mantendo, em consequência, os actos de liquidação resultantes do procedimento inspectivo levado a cabo pela AT;
G) Todavia, os ora Recorrentes discordam do entendimento sufragado pelo Douto Acórdão, considerando que as informações e esclarecimentos solicitados pela AT extravasam o âmbito exclusivo da análise formal e de coerência de documentos que, nos termos do artigo 13.° do RCPIT caracteriza o procedimento de inspecção interno;
H) Com efeito, e conforme resulta do demonstrado nas presentes alegações de recurso, bem como confirmado pela factualidade provada no Acórdão recorrido, é possível concluir que os elementos e os esclarecimentos fornecidos pelos ora Recorrentes foram determinantes para calcular a mais-valia objecto das liquidações adicionais de IRS contestadas;
I) Com efeito, os Recorrentes consideram que os elementos determinantes para o cálculo da mais-valia e da consequente sujeição a imposto, são, por um lado, e tal como resulta do artigo 10.º do Código do IRS, o valor de aquisição e o valor de realização da participação social, e, por outro, a data da aquisição da referida participação social, para efeitos de determinação (ou não) na inclusão do regime transitório previsto no artigo 5.° do Decreto-Lei n.° 442-A/88, de 30 de Novembro. Sendo que, nenhum destes elementos se encontrava originalmente na posse da AT, tendo, por isso, sido solicitados aos Requerentes;
J) Em consequência, os Recorrentes consideram que o referido procedimento inspectivo está ferido de invalidade, devendo, em consequência proceder-se à anulação dos actos de liquidação resultantes das correcções efectuadas ao abrigo de tal procedimento de inspecção;
K) No mesmo sentido do entendimento perfilhado pelos ora Recorrentes, importa atender ao sufragado pelo Douto Tribunal Central Administrativo Sul no Acórdão fundamento. Com efeito, este Acórdão conclui pela anulabilidade das liquidações baseadas num procedimento inspectivo formalmente qualificado como interno, mas cujos actos de inspecção implicam a sua requalificação como procedimento externo de inspecção;
L) Com efeito, no referido Acórdão fundamento o Douto Tribunal conclui que “o procedimento de 18 de Agosto de 2005 não foi apenas de recolha de informação, antes tendo dado início à inspecção realizada ao sujeito passivo, a qual revestiu carácter externo. E visto que não foi notificada ao sujeito passivo e se prolongou por período superior ao prazo previsto na lei (Art. 36.º n.° 2 RCPIT), sem qualquer despacho de prorrogação, tal configura um vício gerador de anulabilidade das liquidações baseadas em tal procedimento (Art. 135. ° do CPA).”
M) Por outro lado, note-se que em defesa da tese de que os pedidos de informação e esclarecimentos solicitados no âmbito do referido procedimento de inspecção se devem enquadrar no âmbito do procedimento interno de inspecção, o Acórdão recorrido invoca o princípio da cooperação plasmado no artigo 48.° do RCPIT, bem como o princípio do contraditório;
N) Contudo, os Recorrentes não se conformam, de forma alguma, com este entendimento, desde logo porquanto o princípio do contraditório já se encontra devidamente assegurado nos termos do disposto no artigo 60.° do RCPIT;
O) Por outro lado, consideram que o argumento relativo ao princípio da colaboração deve igualmente improceder uma vez que os Recorrentes consideram que o artigo 48.° do RCPIT não legitima que, ao abrigo de um procedimento de inspecção interno, a administração tributária possa solicitar informações e documentos que extravasam o âmbito da análise formal e de coerência dos documentos previsto para a inspecção interna, nos termos do artigo 13.° do RCPIT. Com efeito, os Recorrentes consideram que o artigo 48.° do RCPIT apenas impõe o dever de a AT incluir a entidade inspecionado no procedimento inspetivo, e não o dever de a entidade inspecionada colaborar com a AT num procedimento de inspecção cujo âmbito deveria estar limitado à análise formal e de coerência dos documentos;
P) Atento o acima exposto, os Recorrentes consideram que a AT extravasou o âmbito do procedimento inspectivo interno ao abrigo do qual efectuou as correcções que culminaram nas liquidações de IRS contestadas, tendo, na verdade, efectuado um procedimento inspectivo externo;
Q) Pelo que, a (re)qualificação do referido procedimento inspectivo deve ter como consequência a invalidade dos actos tributários de liquidação que lhe subjazem, devendo conduzir à sua anulabilidade, sob pena de se desvirtuar o efeito prático inerente à distinção de regras legalmente consagradas para o procedimento inspectivo interno e externo.

Falta de fundamentação do acto tributário, quer relativamente ao primeiro acto de liquidação adicional de IRS, quer ao ulterior acto correctivo que resultou da revogação parcial dessa liquidação:
R) O dever de motivação ou de fundamentação de qualquer acto administrativo ou tributário, tem associadas duas finalidades: (i) por um lado, inteirar o respectivo destinatário das razões ou dos motivos que conduziram à tomada de decisão em determinado sentido; e (ii) por outro lado, permitir que se faça um controlo sobre a legalidade da decisão e sobre a validade dos motivos que subjazem a determinada decisão concreta.
S) Ora, tendo a AT referido que a fundamentação dos actos tributários consta do Relatório Final de Inspecção, o mesmo carece da mesma, atento os requisitos legais supra expostos, e, igualmente, tendo em consideração os factos que infra se explicitam.
T) Com efeito, os factos constantes do Relatório de Inspecção são incoerentes, pelo que mesmo para quem é conhecedor das normas fiscais, só poderia ficar confuso, quanto mais um destinatário normal, dado que a AT apura o imposto de três formas: (i) tributa autonomamente o Rendimento da Categoria G, à taxa de 20%; (ii) tributa autonomamente o Rendimento da Categoria G, à taxa de 10%; e por último (iii) refere que o rendimento alterado corresponde a € 2.822.359,22.
U) Daí que, a própria AT tenha notificado os Recorrentes, em 15.04.2014, do acto de liquidação adicional no valor de €1.404.549,98 (que correspondia à aplicação da taxa normal de IRS ao referido rendimento alterado de € 2.822.359,22).
V) E, posteriormente, na sequência do Pedido de Pronúncia Arbitral, apresentado pelos Recorrentes, revogado tal acto, permanecendo um valor de imposto devido de € 618.700,32 (acto correctivo).
W) Assim e face ao descrito, não podem os ora Recorrentes, deixar de considerar que o Relatório carece de fundamentação, afastando-se do entendimento vertido no Acórdão recorrido, segundo o qual: “não subsistem quaisquer dúvidas quanto à clareza, congruência e suficiência da fundamentação e ao itinerário cognoscitivo e valorativo da mesma, mencionado o Relatório os factos relevantes -origem, natureza e valor dos rendimentos- e o quadro jurídico que está na origem da incidência de IRS [...]”.
X) Considerando, os Recorrentes, que, se de acordo com o disposto no artigo 77.° da LGT, o dever de fundamentação consiste em dotar o acto tributário das: [...] disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos “actos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo”.
Y) Permitindo ao seu destinatário, nas palavras do Supremo Tribunal Administrativo, “ficar a conhecer as razões [actuais e jurídicas que estão na sua génese”, não preenche tais requisitos um acto que atribua à mesma norma de Direito - artigo 72.°, n.° 4 do CIRS, duas taxas de imposto distintas, resultando de tal aplicação, o mesmo resultado de imposto - €560.000.00.
Z) Ora, tendo sido assim considerado pelo Tribunal recorrido, cumpre neste ponto chamar à colação, outro dos critérios de aferição do cumprimento do dever em análise, o qual consiste em conferir ao acto tributário fundamentação apta a ser apreendida pelo “Homem médio”, colocado no lugar do seu destinatário.
AA) Sendo que, desta forma, é forçoso concluir que o critério do “bonus pater familiae” de que fala o art. 487° n° 2 do Código Civil não se encontra preenchido, apesar de o Tribunal a quo afirmar que, é perceptível a emissão do segundo acto de liquidação, pois que: “[...] a prestação tributária correspondente, resultante da aplicação da taxa de tributação autónoma prevista no artigo 72.°, n° 4 do Código de IRS, à data de 20%, perfazendo o valor de IRS em falta de €560.000,00.”.
BB) Pois, se assim fosse, teria sido perceptível para o Douto Tribunal Arbitral, qual a taxa autónoma aplicável à data em que ocorreu o facto tributário, por referência à alteração legislativa de 26.07.2010, que altera a taxa de tributação prevista no n.° 4 do artigo 72.° do CIRS de 10% para 20%.
CC) Pois, tendo ocorrido a escritura de compra e venda das acções, a qual está na origem das mais-valias tributadas, em 04.01.2010, nunca, em respeito pelo princípio da não retroactividade fiscal, seria aplicável aos ganhos auferidos pelos Recorrentes a taxa de 20%.
DD) Pelo que, face ao ora exposto concluem os Recorrentes pela falta de fundamentação do Relatório Final de Inspecção, pois que, caso assim não fosse, e as correcções dele resultantes, fossem, claras, congruentes e acessíveis aos seus destinatários, o Tribunal a quo não teria assentido em considerar como válido, um acto de liquidação, do qual resulta uma aplicação retroactiva da lei fiscal.
EE) Não colocando, os Recorrentes, em causa o princípio do dispositivo, ao abrigo do qual, o Douto Tribunal procedeu à correcção do acto de liquidação conectivo, não podem os mesmos deixar de referir que, se o dever de fundamentação estivesse devidamente preenchido, não seria necessário o Tribunal a quo, “adaptar” o acto à sua fundamentação vertida no Relatório.
FF) Face ao exposto, tendo em consideração os fundamentos de facto e de Direito aduzidos pelos Recorrentes deverá o Relatório Final de Inspecção ser considerado ilegal, por falta da fundamentação legalmente exigida, tendo como consequência a sua anulação e a subsequente anulação dos actos de liquidação emitidos por referência às correcções nele efectuadas.
GG) Sem conceder, e caso este Douto Tribunal assim o entenda, que o princípio do dispositivo seja utilizado, mas corrigindo o acto no valor que seria alegadamente devido, isto é, aplicar ao (alegado) rendimento de mais-valias, a taxa de 10% constante na versão do artigo 72.°, n.° 4 do Código do IRS à data aplicável.
Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, sempre com o Douto suprimento de Vossas Excelências, deverá o presente Recurso ser julgado procedente, e, em consequência, ser anulado o Acórdão recorrido, reconhecendo-se, assim, a invalidade do procedimento de inspecção à matéria colectável de IRS de 2010, em que se basearam as correcções efectuadas, e caso assim não se entenda, ser reconhecida a invalidade do Relatório final de inspecção por falta de fundamentação legalmente exigida, determinando-se, consequentemente, a anulação dos respectivos actos de liquidação adicional.

Contra-alegou a recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:
A. A decisão arbitral sub judice fez uma correcta interpretação e aplicação da lei aos factos, bem como fez um correcto julgamento e uma correcta apreciação de toda a prova existente.
B. Ainda assim, alegam os Requerentes a existência de oposição entre a decisão arbitral e dois acórdãos, nomeadamente os n.° 02504/08 proferido em 9 de Dezembro de 2008 pelo Tribunal Central Administrativo Sul e o Acórdão n.° 012115/12 de 14 de Abril de 2013 do Supremo Tribunal Administrativo.
C. O primeiro acórdão fundamento diz respeito à classificação interna atribuída pela Autoridade Tributária à acção inspectiva.
D. Atendendo à decisão arbitral, a AT já tinha na sua posse os elementos que serviram de fundamento à conclusão do relatório inspectivo, afigurando-se que os esclarecimentos efectuados pelos Recorrentes foram meramente complementares, não tendo inclusive sido praticados quaisquer actos inspectivos fora das instalações da AT.
E. O que acaba por ser determinante para efeitos da classificação do procedimento como interno e externo de acordo com ambos os arestos, não se verificando assim qualquer oposição de julgados.
F. Quanto ao segundo acórdão fundamento, este indica que existe vício de falta de fundamentação do relatório da inspecção, que inquina do acto de liquidação subsequente, se aquele não permite descortinar a razão pela qual a Administração tributária efectuou as correcções.
G. Assim em consonância com o acórdão fundamento, a decisão arbitral entendeu que Não subsistem quaisquer dúvidas quanto à clareza, congruência e suficiência da fundamentação e ao itinerário cognoscitivo e valorativa da mesma.
H. Com efeito inexiste qualquer contradição entre uma decisão e outra.
Termos em que o Recurso apresentado não deve ser admitido, devendo ser mantida a decisão proferida pelo Tribunal Arbitral, nos termos em que foi proferida.

Cumpre decidir.

Dá-se aqui por reproduzida a matéria de facto vertida na decisão arbitral, bem como a constante do acórdão deste Supremo Tribunal, datado de 14.04.2013, recurso n.º 01215/12 e do acórdão do TCA Sul, datado de 09.12.2008, recurso n.º 02504/08, nos termos do disposto no artigo 663º, n.º 6 do CPC.

Há que conhecer o recurso que nos vem dirigido.

O presente recurso vem interposto, ao abrigo do art.º 25.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (regime da arbitragem Tributária), da decisão arbitral proferida pelo Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), no âmbito do processo nº 620/2014-T.

Assim, e face ao circunstancialismo fáctico-jurídico constante das decisões em confronto cumpre apreciar, antes de mais, se se verificam os requisitos do recurso por oposição quanto à mesma questão fundamental de direito previsto pelo art.º 25.º, n.º 2 do RJAT (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, DL n.º 10/2011, de 20/1)
De harmonia com o disposto no n.º 2 do art. 25.º do RJAT (DL n.º 10/2011, de 20/1) a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é susceptível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo.
A este recurso é aplicável, com as necessárias adaptações, o regime do recurso para uniformização de jurisprudência regulado no artigo 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, contando-se o prazo para o recurso a partir da notificação da decisão arbitral. (cfr. o n.º 3 do mesmo art. 25.º)
O único requisito explicitamente referido para a admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência (152.º do CPTA) é a existência de contradição entre a decisão arbitral recorrida e o acórdão fundamento sobre a mesma questão fundamental de direito.
Na ausência de qualquer expresso tratamento legislativo neste âmbito serão assim de manter os critérios jurisprudenciais já firmados no domínio da LPTA e do ETAF quer relativamente à caracterização da questão fundamental sobre a qual deverá existir contradição, quer quanto à verificação das oposições de julgados.
As decisões consideram-se proferidas no domínio da mesma legislação sempre que, durante o intervalo da sua publicação, não tenha sido introduzida qualquer alteração legislativa substancial que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
No que concerne à existência da oposição, exige-se que a mesma norma jurídica tenha sido interpretada e aplicada diversamente numa idêntica situação de facto, não podendo ser considerada quando relativamente a um dos acórdãos em oposição vier a ser detectada uma divergência sobre a factualidade apurada que puder ser determinante para a aplicação de um diferente regime jurídico.
A oposição deverá decorrer de expressa resolução da questão de direito suscitada, não sendo atendível a oposição implícita dos julgados, o que implica que tenha havido julgamento contraditório sobre questões que tenham sido colocadas à apreciação do tribunal e sobre as quais este carecia de emitir pronúncia – cf., neste sentido, Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Dicionário de Contencioso Administrativo, Ed. Almedina, pags. 608/609, e, entre muitos outros, acórdãos do Pleno da Secção de Contencioso Tributário de 05.05.1992, in AP.DR de 29.11.1994, pag. 426, de 18.02.1998, recurso 28637, de 26.09.2007, recurso 452/07, de 21.05.2008, recurso 460/07, de 13.11.2013, recurso 594/12, de 26.03.2014, recurso 865/13, de 07.05.2014, recurso 60/14, de 25.02.2015, recurso 964/14, e de 18.03.2015, recurso 525/14, todos in www.dgsi.pt.
Note-se, em todo o caso, que, conforme determina o n.° 3 do artigo 152.°, “o recurso não é admitido se a orientação perfilhada na decisão impugnada estiver de acordo com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo”.

Quanto à primeira questão, a de saber se há diferença de entendimento quanto à classificação do procedimento inspectivo, nos termos do artigo 13.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira (“RCPIT”), entre a decisão recorrida e o acórdão do TCA Sul proferido no processo n.º 02504/08.

Na decisão recorrida decidiu-se a propósito desta questão:
Analisando a situação concreta, constata-se cumprida a primeira condição da alínea a) do artigo 13.º do RCPIT, de que os actos de inspecção decorreram exclusivamente nos serviços da AT.
A questão que se coloca é, pois, a de saber se os actos de inspecção se efectuaram através da análise formal e de coerência dos documentos, ou se o facto de a AT ter dirigido pedidos de informação e esclarecimentos aos Requerentes, extravasa o âmbito da análise formal e de coerência dos documentos e caracteriza a acção inspectiva como um procedimento externo.
Entendemos que no caso concreto tal não se verifica. Com efeito, a AT identificou por sua iniciativa exclusiva e pelos seus próprios meios, sem qualquer intervenção dos Requerentes e mediante o mero cruzamento dos dados de que dispunha, a omissão declarativa, por parte daqueles, de mais-valias resultantes da alienação de quotas.
Os esclarecimentos ulteriores solicitados pela AT aos Requerentes revestiram natureza complementar e desempenharam a meritória função de interpor uma etapa de contraditório antes da emissão do Projecto de Correcções, sem que tal represente a transformação da inspecção em externa.
De ressaltar que logo no primeiro pedido de esclarecimentos a AT revela na notificação endereçada aos Requerentes o início de um procedimento interno de inspecção ao ano 2010 no qual foram detectadas incongruências, cuja justificação solicita, relativas à não inclusão dos anexos das mais-valias na Declaração anual de rendimentos do ano 2010, mais-valias estas originadas na cedência de quotas da sociedade “D..., Lda.” pelo preço de € 3.200.000,00.
Assim, os principais elementos da correcção preconizada já se encontravam materializados e foram de modo transparente comunicados pela AT aos Requerentes.
Por outro lado, a realização de uma inquirição de testemunhas partiu da iniciativa dos Requerentes, ao que a AT acedeu, tendo-se realizado nas suas instalações.
Afigura-se que o carácter meramente complementar do pedido de esclarecimentos dirigido aos Requerentes e o facto de não terem ocorrido quaisquer actos inspectivos fora das instalações da AT militam no sentido da natureza materialmente interna do procedimento, em linha com a classificação formal que lhe foi atribuída pela AT, pelo que não extravasa o artigo 13.º, alínea a) do RCPIT ou a Ordem de Serviço Interna.

Já no acórdão fundamento decidiu-se:
Só a acção de inspecção que tenha por objectivo a consulta, recolha e cruzamento de elementos não carece de ordem de serviço (Art° 46/4,a) RCPIT) nem de notificação prévia, tal como prevê o Art° 50/1,a) RCPIT, precisamente porque ela visa, apenas, isso e nada mais (Este procedimento visa apenas a consulta, recolha ou cruzamento de documentos como expressamente se menciona no Art.° 50/1,a) RCPIT).
Assim, de duas uma. Ou os elementos recolhidos pela administração fiscal em 18 de Agosto não davam origem à fundamentação do verdadeiro e próprio procedimento inspectivo (parafraseando a Exma. Representante da Fazenda Pública no art° 11 da douta contestação), consubstanciando mera recolha de elementos informativos, ou davam.
Se não davam, mantinha-se o seu carácter de mera recolha de informação; mas se davam, isto é, se eram aptos a fundamentar as correcções à matéria tributável, não se podem considerar mera informação, antes constituiriam início da inspecção.
E assim sendo, deveria ter sido notificada previamente ao sujeito passivo.
Na perspectiva da administração fiscal, o procedimento de 18/8/2005 não se orientou para a identificação de eventuais infracções e análise de contabilidade da impugnante de modo a que pudessem resultar correcções à matéria tributável (Art° 8 da douta contestação).
Não orientou?
Em face do conteúdo do relatório e dos fundamentos que serviram de base às correcções efectuadas, não é possível dizer-se que o procedimento de 18 de Agosto de 2005 visou apenas a recolha de informação. Não visou; na verdade, foi muito mais do que isso, pois foi nessa informação que se fundamentou toda a acção inspectiva.
O que resulta dos autos é precisamente uma sequência de inspecção iniciada com o procedimento de 18/8/2005, que manifestamente se orientou para a identificação de eventuais infracções e análise de contabilidade da impugnante de modo a que pudessem resultar correcções à matéria tributável. Deste modo, deve concluir-se que:
O procedimento de 18 de Agosto de 2005 não foi apenas de recolha de informação;
O procedimento de 18 de Agosto de 2005 deu início à inspecção realizada ao sujeito passivo;
Essa inspecção revestiu carácter externo.

Lidas atentamente ambas as decisões, ambas sufragam o entendimento de que a inspecção interna decorre unicamente da análise dos documentos em poder da inspecção tributária, sem deslocação ao exterior, e a inspecção externa exige que os serviços da AT se desloquem junto do sujeito passivo e aí recolham os elementos necessários que vêem a fundamentar os actos de liquidação.
Ou seja, não há uma verdadeira oposição quanto à mesma questão fundamental de direito, ambas as decisões, apoiadas na norma do artigo 13º do RCPIT identificam claramente, e de forma semelhante, o que se deve entender por inspecção interna e inspecção externa, (na decisão recorrida diz-se que, Diferentemente, no caso dos presentes autos, não só os elementos determinantes das correcções – a identificação da falta de reporte de mais-valias numa operação de cedência de quotas de € 3.200.000,00 – foram obtidos através de cruzamento de dados da própria AT e não junto dos contribuintes, como não ocorreu qualquer levantamento ou recolha de informação nas instalações ou domicílio destes, já no acórdão fundamento diz-se que, Ora, como se salienta na sentença recorrida, em face do conteúdo do relatório e dos fundamentos que serviram de base às correcções efectuadas, não é possível dizer-se que o procedimento de 18 de Agosto de 2005 visou apenas a recolha de informação, antes se podendo afirmar que foi muito mais do que isso, pois foi nessa informação que se fundamentou toda a acção inspectiva.) apenas em face dos circunstancialismos concretos de cada um dos casos é que a decisão recorrida qualifica a inspecção como interna e o acórdão fundamento a qualifica como externa.
Daqui resulta, assim, que não se verifica qualquer contradição entre as decisões sobre a mesma questão fundamental de direito.

Quanto à segunda questão, a de saber se se verifica uma efectiva oposição entre a decisão recorrida e o Acórdão, proferido em 14 de Abril de 2013, pelo Supremo Tribunal Administrativo, no Processo n.° 01215/12, que se consubstancia na diferente aplicação do dever de fundamentação dos actos tributários, previsto no artigo 77° da Lei Geral Tributária (“LGT”).

Sobre esta questão escreveu-se na decisão recorrida:
Segundo os Requerentes, o Relatório de Inspecção não constitui fundamentação do acto de liquidação de IRS, porque aquele conclui pela falta de liquidação de IRS no montante de € 560.000,00 e este último foi emitido pelo valor de € 1.404.549,98. Esta discrepância de valores é, para os Requerentes, incompreensível e configura erro grosseiro dos serviços, padecendo o acto de liquidação, por essa razão, de vício de falta de fundamentação que determina a sua nulidade.
Alegam também os Requerentes que, no tocante ao segundo acto de liquidação (que, como vimos tem natureza correctiva do primeiro acto), o mesmo é desprovido de qualquer referência ao primeiro acto tributário, não sendo possível decifrar o cálculo dos valores.
Vejamos.
O acto tributário impugnado (referimo-nos à primeira liquidação adicional de IRS) constitui o desfecho de um procedimento inspectivo, no qual os Requerentes foram ouvidos, tendo sido notificados, quer do projecto de correcções, quer, após o exercício do direito de audição, do Relatório Final de Inspecção.
Da leitura do Relatório Final resulta com clareza que a liquidação adicional de IRS é o corolário da tributação de mais-valias, quantificadas em € 2.800.000,00, obtidas em resultado da venda de quotas da sociedade “D... –, Lda.”, que os Requerentes não haviam declarado e relativamente às quais não haviam pago oportunamente a prestação tributária correspondente, resultante da aplicação da taxa de tributação autónoma prevista no artigo 72.º, n.º 4 do Código do IRS, à data de 20%, perfazendo o valor de IRS em falta de € 560.000,00.
Não subsistem quaisquer dúvidas quanto à clareza, congruência e suficiência da fundamentação e ao itinerário cognoscitivo e valorativo da mesma, mencionando o Relatório os factos relevantes – origem, natureza e valor dos rendimentos – e o quadro jurídico que está na origem da incidência de IRS: artigos 9.º, n.º 1, alínea a); 10.º, n.º 1, alínea b); 43.º, n.ºs 1 e 3; 44.º, n.º 1, alínea f); 48.º, alínea b) e 72.º, n.º 4, todos do Código do IRS.
A decisão do procedimento está, pois, fundamentada quanto à importância de IRS de € 560.000,00, cumprindo os parâmetros do artigo 77.º, n.ºs 1 e 2 da LGT.
O Relatório definitivo foi notificado em 19 de Março de 2014 e antecedeu o acto de liquidação adicional de IRS, este datado de 29 de Março de 2014 e notificado aos Requerentes em 15 de Abril de 2014.
É certo que o acto de liquidação não contém uma referência expressa à fundamentação do Relatório definitivo (a dita decisão do procedimento). Contudo, não só essa fundamentação existe, como é anterior ao acto de liquidação e já tinha sido notificada aos Requerentes, pelo que seria redundante notificá-lo de novo com a liquidação. O acto de liquidação em causa representa o culminar de um procedimento inspectivo do qual os Requerentes tiveram conhecimento, tendo nele participado e tendo sido notificados da decisão final desse procedimento.
Acresce que os Requerentes, em caso de subsistir alguma dúvida, tinham ao seu dispor o mecanismo do artigo 37.º do CPPT. Distingue neste ponto Jorge Lopes de Sousa o acto de notificação e o acto notificado, ensinando que o artigo 37.º do CPPT só tem a ver com a notificação dos actos, visando estabelecer as consequências das deficiências das notificações e não o regime dos vícios dos actos notificados.
Ora, na situação vertente a fundamentação existia e se a notificação do acto de liquidação a omitiu o não uso da faculdade prevista neste artigo 37.º tem como consequência que o destinatário perdeu o direito a ser notificado dessa fundamentação – cf. Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, Volume I, 6.ª edição, 2011, pp. 349-351.
O vício de falta de fundamentação ocorre apenas “quando não é possível para um destinatário normal aperceber-se das razões pelas quais quem decidiu tomou a decisão que tomou e não quando o entendimento adoptado é errado, pois, neste último caso, se ocorrer efectivamente o erro, estar-se-á perante vício de erro sobre os pressupostos de facto ou de erro sobre os pressupostos de direito…

Por sua vez, escreveu-se no acórdão fundamento:
Não se descortina, porém, no relatório de inspecção, qualquer justificação avançada para o facto de todas as correcções às retenções na fonte a título definitivo apuradas pela Administração Tributária no relatório e que serviram de base à liquidação adicional de IRC de 2003 o terem sido em sede no âmbito deste imposto, sequer a alusão de que tais pagamentos foram sempre feitos a empresas, ou de que sendo a retenção na fonte a título definitivo é por ela responsável primário o substituto, e não o substituído, daí a sua imputação em sede de IRC.
O que pudermos congeminar sobre as razões que levaram a Administração tributária a proceder dessa forma são pura especulação, pois que do relatório da inspecção não resulta a mínima alusão à razão pela qual assim se procedeu.
Na contestação apresentada em 1.ª instância (a fls. 35 a 37 dos autos) a Fazenda Pública procura, a posteriori, justificar a razão da tributação em sede de IRC de tais retenções com o disposto na alínea d) do n.º 3 do artigo 4.º daquele Código, afirmando que: «Quanto à retenção (liquidação) na fonte, a título definitivo, à taxa de 25%, de IRC (não de IRS), convirá sublinhar que a cit. al. d) do n.º 3 do art. 4.º do CIRC, integra na extensão da designação de IRC “os rendimentos derivados do exercício em território português da actividade de profissionais de espectáculos ou desportistas”, não distinguindo se esses profissionais são pessoas físicas ou colectivas (…) – cfr. fls. 36 dos autos».
Omite, porém, a Fazenda Pública que norma de idêntico teor se encontra também no n.º 1 do artigo 18.º do Código do IRS, sendo, pois, a natureza (de pessoa singular ou colectiva ou equiparada) da beneficiária do pagamento, e não da entidade pagadora do rendimento, o critério decisivo para determinar se o rendimento está sujeito a IRS ou a IRC, pois que apenas são tributadas em IRS pessoas singulares e em IRC pessoas colectivas e equiparadas (cfr. o artigo 13.º n.º 1 do Código do IRS e o artigo 2.º do Código do IRC). Assim, esta fundamentação, que sempre seria, mesmo formalmente, inválida porque posterior à prática do acto sindicado, revela-se, além do mais, errada.
Subsiste, pois, a dúvida, para a recorrente, e também para este Supremo Tribunal, que não alcança a razão de assim se ter procedido, sendo essencial que tal se entendesse sob pena de frustrar-se a finalidade, pelo menos a “endógena”, pela qual a Constituição e a lei tributária impõem à Administração Pública o dever de fundamentação das suas decisões.
O facto de a taxa de retenção na fonte aplicável ser, in casu, a mesma em sede de IRS e em sede de IRC, não invalida o que se disse, pois que da fundamentação formal, e não da substancial, conducente ao vício de violação de lei, curamos.
E, pelo exposto, necessário se mostra concluir que o acto de liquidação adicional de IRC se não encontra formalmente fundamentado, porquanto o relatório de inspecção em que se baseou resolveu sujeitar “em bloco” a IRC os montantes dos pagamentos efectuados, sem alusão ou distinção, para efeitos de incidência de IRs, consoante os beneficiários dos pagamentos foram pessoas físicas ou pessoas colectivas ou equiparadas.

Também aqui se pode concluir que, em ambas as decisões se concluiu que ocorre vício de falta de fundamentação do relatório da inspecção, que inquina do acto de liquidação subsequente, se aquele não permite descortinar a razão pela qual a Administração tributária efectuou todas as correcções, ou seja, decidiu-se a mesma questão fundamental de direito de forma semelhante, apenas os contornos específicos de cada caso concreto é que demandaram uma solução diferente para um e outro caso. Não se verifica assim qualquer oposição entre ambas as decisões.

Em suma, a situação fáctico-jurídica analisada na decisão recorrida e nos acórdãos fundamento, não atinge a identidade substancial necessária para que se possa concluir terem ocorrido decisões antagónicas quanto à mesma questão fundamental de direito, não se verificando, pois, os requisitos do recurso para uniformização de jurisprudência previsto nos arts. 25º, nº 2 do RJAT e no 152º do CPTA, nomeadamente a existência de contradição de julgados sobre a mesma questão fundamental de direito entre a decisão arbitral recorrida e os acórdãos fundamento, pelo que o presente recurso não deve ser admitido.

Termos em que acordam os Juízes do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelos recorrentes com dispensa do remanescente da taxa de justiça devida pelo recurso.
Comunique-se ao CAAD.
D.n.

Lisboa, 4 de Março de 2020. – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia (relator) – José Gomes Correia – Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva – Joaquim Manuel Charneca Condesso – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz – Paulo José Rodrigues Antunes – Gustavo André Simões Lopes Courinha – Isabel Cristina Mota Marques da Silva – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes.