Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0123/23.8BALSB
Data do Acordão:02/21/2024
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
MESMA QUESTÃO DE DIREITO
Sumário:I - O recurso para o Supremo Tribunal Administrativo de decisão arbitral pressupõe que se verifique, no caso entre as decisões arbitral recorrida e a decisão arbitral invocada como fundamento, oposição quanto à mesma questão fundamental de direito (artigo 25.º, n.º 2 do RJAT).
II - Inexistindo essa oposição, não deve tomar-se conhecimento do mérito do recurso.
Nº Convencional:JSTA000P31943
Nº do Documento:SAP202402210123/23
Recorrente:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:AA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
RECURSO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA

PLENO DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO


1.RELATÓRIO

1.1. A Autoridade Tributária interpôs, ao abrigo do preceituado, conjugadamente, nos artigos 25º nº 2 do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) e 152º nº 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), o presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência, alegando que perfilharam entendimentos opostos relativamente à mesma questão fundamental de direito a decisão arbitral proferida a 3 de Janeiro de 2022 no processo nº 252/2021-T (decisão recorrida) e a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Administrativo, a 27 de Fevereiro de 2019, no processo n.º 22/18.5BALSB (decisão fundamento).

1.2. As alegações de recurso mostram-se finalizadas com as seguintes conclusões:

«A) A Autoridade Tributária e Aduaneira vem, nos termos do artigo 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicável por força do artigo 25.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), interpor recurso para esse Supremo Tribunal da Decisão Arbitral, de 03.01.2022, emitida no processo n.º 252/2021-T, do CAAD, por estar em contradição com o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, em 27.02.2019, no Processo n.º 022/18.5BALSB, que se indica como fundamento, designadamente, no segmento decisório respeitante à condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento do imposto até efetivo e integral reembolso.

B) A Decisão Arbitral recorrida colide frontalmente com a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão proferido em 27.02.2019, no processo n.º 022/18.5BALSB, que se indica como fundamento, relativamente ao termo inicial de contagem dos juros indemnizatórios, no caso de revisão oficiosa do ato tributário por iniciativa do contribuinte.

C) O pedido de pronúncia arbitral foi deduzido na sequência da notificação do despacho de indeferimento prolatado em 21.04.2021, pelo Diretor da Alfândega de Braga, após o pedido de revisão oficiosa, apresentado em 26.01.2021, da liquidação de Imposto sobre Veículos, efetuada pela Delegação Aduaneira de Peso da Régua, que sustentou a tempestividade da pretensão da Requerente junto da instância arbitral.

D) A Decisão Arbitral sob recurso entendeu, na parte em que se refere aos juros indemnizatórios, serem devidos pela AT, a contar da data do pagamento do imposto.

E) A Decisão Arbitral recorrida incorreu, pois, em erro de julgamento ao não enquadrar o direito a juros indemnizatórios, como devia, no artigo 43º, nº 3, alínea c) da LGT, que consagra um regime especial, quanto aos juros indemnizatórios.

F) No Acórdão fundamento estava em causa “a extensão temporal dos juros indemnizatórios devidos em caso de revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte (art. 43.º n.º 3 al. c) LGT)”, tendo esse douto STA decidido quanto à extensão temporal dos juros indemnizatórios devidos em caso de revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte (art. 43º, nº 3, al c) da LGT), que “A decisão recorrida atribuiu a indemnização a partir da ocorrência do evento danoso, sendo que face às normas de direito tributário vigente tal indemnização não tem assento legal, pelo menos sob a égide do processo de impugnação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa do acto de liquidação”, concluindo que “não há lugar a juros indemnizatórios visto o pedido de revisão do acto tributário haver sido decidido em período inferior a um ano contado da apresentação deste pedido de revisão, como resulta do disposto no art.º 43.º, n.º 3, c) da Lei Geral Tributária.”.

G) Demonstrada está, assim, uma evidente contradição entre a Decisão recorrida e o Acórdão fundamento sobre a mesma questão fundamental de direito que se prende com o pagamento de juros indemnizatórios nas situações de revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte, que importa dirimir, mediante a admissão do presente recurso e consequente anulação do segmento decisório contestado, com substituição do mesmo por nova Decisão que determine a improcedência do pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do nº 6, do artigo 152º do CPTA.

H) A infração a que se refere o nº 2, do artigo 152º do CPTA, traduz-se num manifesto erro de julgamento expresso na decisão recorrida, na medida em que a Decisão Arbitral viola o disposto na alínea c), do nº 3 do artigo 43º da LGT, o qual determina que, nas situações de revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte, são devidos juros indemnizatórios apenas a partir de um ano após a apresentação do pedido de revisão.

I) Como tem sido entendido pela Jurisprudência e Doutrina, o regime estabelecido no artigo 152.º do CPTA, para os recursos para uniformização da jurisprudência, destina-se a obter decisão que fixe a orientação jurisprudencial nos casos em que se verifiquem os seguintes pressupostos: i) existência de decisões contraditórias entre acórdãos do STA ou deste e do TCA ou entre acórdãos do TCA; ii) contraditoriedade decisória “sobre a mesma questão fundamental de direito”; iii) verificação do trânsito em julgado, quer do acórdão recorrido, quer do acórdão fundamento, devendo o recurso se mostrar interposto no prazo de 30 dias contado do trânsito do acórdão recorrido; iv) não conformidade da orientação perfilhada no acórdão impugnado com a jurisprudência mais recentemente consolidada do STA; a oposição deverá decorrer de decisões expressas, não bastando a pronúncia implícita ou a mera consideração colateral, tecida no âmbito da apreciação de questão distinta.

J) No presente caso, estão preenchidos todos os requisitos de admissibilidade do Recurso, impostos pelo artigo 152º do CPTA, designadamente os enunciados no Acórdão do Pleno do STA de 21.04.2016, proferido no processo nº 0698/15, quanto à contradição da mesma questão fundamental de direito, que pressupõe “identidade essencial quanto à matéria litigiosa”, conforme o Acórdão do S.T.J. de 02.02.2017, proferido no proc. 4902/14.9T2SNT.LI.SI-A.

K) Está em causa a aplicação, de forma diversa, dos mesmos preceitos legais em situações fácticas substancialmente idênticas, não se entendendo estas como total identidade dos factos, mas apenas a sua subsunção às mesmas normas legais, na linha do entendimento de Jorge Lopes de Sousa (CPPT anotado, a págs. 809), e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no recurso nº 87156, de 26.04.1995.

L) Resulta claro da jurisprudência assente desse Alto Tribunal que a norma do artigo 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT consagra um regime especial, quanto aos juros indemnizatórios, que se aplica aos casos de revisão, como o dos autos, que não se enquadra na situação típica em que há impugnação da liquidação após o pagamento do imposto em causa.

M) Concluindo-se que, ao não ter subsumido o caso sub judice à alínea c) do nº 3 do artigo 43º da LGT, a Decisão Arbitral recorrida evidencia manifesta contradição quanto à mesma questão fundamental de direito com a jurisprudência firmada pelo Pleno do STA:

- no Acórdão convocado como fundamento, de 27.02.2019, proferido no Proc.º 022/18.5BALSB;

- e com a sua Jurisprudência mais recente, designadamente a firmada no Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 26.05.2022, no Processo nº 159/21.3BALSB, sobre a mesma matéria e em que estava em causa situação fática absolutamente idêntica e tendo por objeto o mesmo Imposto sobre Veículos.

N) Decorre de todo o exposto, que deve o presente recurso ser admitido por esse Tribunal, e, analisado o seu mérito, ser dado provimento ao mesmo, revogando-se a Decisão na parte de que se recorre, aplicando-se o disposto na alínea c), do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, em face da manifesta contradição quanto à mesma questão fundamental de direito com a jurisprudência firmada pelo STA no Acórdão fundamento, considerando que, para o efeito, atendendo a que o pedido de revisão foi decidido em prazo inferior a um ano, não haverá lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, com todas as legais consequências».

1.3. Não houve contra-alegações.

1.4. O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal Administrativo, emitiu parecer no sentido de não se tomar conhecimento do mérito do recurso por não se verificarem todos os requisitos de que depende a sua admissibilidade.

1.5. Colhidos os vistos dos Excelentíssimos Juízes Conselheiros Adjuntos, nos termos do preceituado no artigo 92.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, cumpre, agora, decidir, o que fazemos pela intervenção do Pleno desta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1. Pretende a Recorrente com a interposição do presente recurso que se uniformize jurisprudência relativamente a uma mesma questão fundamental de direito, que, alegadamente, terá sido decidida em sentido oposto nas decisões recorrida e fundamento, a saber, qual a extensão temporal de juros devida nas situações em que as liquidações são anuladas na sequência de pedido de revisão decidido pela Administração Tributária em prazo inferior a 1 ano.

2.2. Atento o exposto, as questões que cumpre decidir são as seguintes: (i) saber se existe uma efectiva oposição de julgamentos entre as decisões recorrida e fundamento; (ii) em caso afirmativo, e não estando a decisão recorrida em conformidade com a jurisprudência mais recentemente consolidada neste Supremo Tribunal Administrativo decidir a questão fundamental de direito objecto de apreciação na decisão recorrida enunciada no ponto 2.1.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Fundamentação de facto

3.1.1. Na decisão recorrida foram dados como provados os seguintes factos:

«O Requerente introduziu em Portugal, 17.12.2018, um veículo ligeiro de passageiros usado, proveniente da ..., melhor identificado na DAV n.º ...82, de 18.12.2018, junta como Doc. 1 à Impugnação e no processo administrativo.

Em resultado da apresentação da DAV acima referida, a AT, através do Diretor da Alfândega do Peso da Régua, liquidou ISV no valor global de € 5.817,33.

De acordo com a informação constante da referida DAV, o valor global de ISV liquidado tem como parcelar um montante de € 4.494,70, referente à componente cilindrada, e um montante de € 4.019,45, referente à componente ambiental.

No que concerne à componente de cilindrada, foi deduzida uma quantia no valor de € 2.696,82, de acordo com as percentagens de redução constantes da tabela D prevista no n.º 1, do artigo 11.º, do Código do ISV, aplicável aos veículos usados.

Relativamente ao montante de € 4.019,45, respeitante à parte do ISV incidente sobre a componente ambiental, não foi aplicada qualquer percentagem de dedução.

Por não se conformar com a forma em parte com a liquidação de ISV efetuada pela AT, na medida em que o respetivo cálculo não contemplou qualquer redução de taxa da componente ambiental, o Requerente apresentou, em 26.01.2021, junto da Alfândega do Peso da Régua, um pedido de revisão oficiosa dos correspondentes actos de liquidação de ISV.

Tal pedido de revisão foi indeferido, por despacho proferido pelo Diretor da Alfândega do Peso da Régua, notificado à Impugnante em 21.04.2021 (cfr. Doc. 7 da Impugnação e do processo administrativo)».

3.1.2. Na decisão fundamento estão apurados os seguintes factos:

«1. A Requerente é proprietária do prédio urbano, descrito na Caderneta Predial Urbana como terreno para construção urbana, inscrito sob o n°..., da Freguesia de..., Concelho ..., Distrito ....

2. O Valor Patrimonial Tributário (VPT) era, para efeitos das liquidações de Imposto do Selo em crise (ano 2012 e ano 2013), de EUR 1.009.490,00, determinado em 2012.

3. Sobre o imóvel acima identificado foram emitidas as seguintes liquidações de Imposto do Selo (verba 28.1.):

4. O montante de Imposto do Selo liquidado, no valor de EUR 10.094,90, relativo ao ano de 2012, deveria ser pago até ../../2013, através da nota de cobrança n° ...13...

5. Dado que o referido montante não foi pago dentro do prazo limite para pagamento voluntário, a divida evoluiu para cobrança coerciva, tendo dado origem ao processo de execução fiscal (PEF) n° ....14..., instaurado em 20 de Janeiro de 2014, no valor total de EUR 10.324,52.

6. O imposto (EUR 10.094,90) e o respectivo acrescido (EUR 229,62) foram pagos, em 25 de Junho de 2014, em sede de execução fiscal.

7. O montante de Imposto do Selo liquidado, no valor de EUR 10.094,90, relativo ao ano de 2013, deveria ser pago de acordo com as seguintes prestações:

8. A Requerente não pagou nenhuma das prestações de imposto, relativas ao ano 2013, dentro do prazo para pagamento voluntário legalmente estabelecido para o efeito, tendo a divida evoluído para cobrança coerciva, dando origem aos seguintes PEF, instaurados em Junho de 2014, nos seguintes termos (montantes em Euros):

9. A Requerente apresentou, em 30 de Outubro de 2015, requerimento dirigido ao Chefe do Serviço de Finanças de Loulé ..., no âmbito dos PEF identificados nos pontos 5.1.5, 5.1.6. e 5.1.8., no sentido de requerer a extinção das referidas execuções fiscais e “(...) o levantamento de eventuais penhoras que possam ter sido (...) realizadas para garantia das alegadas dividas (...), bem como o cancelamento do seu registo se a este tiver havido Lugar (…)”.

10. A Requerente apresentou, em 28 de Setembro de 2016, dois pedidos de revisão oficiosa de acto tributário relativos aos actos de liquidação acima identificados no ponto 5.1.3., no sentido de peticionar, para cada um dos anos em causa (2012 e 2013), a “(...) rescisão do acto tributário de imposto do selo da verba 28.1 da TGIS (…)”; e em consequência, requerer “(...) a anulação desse acto tributário (...)”, e “(...) a restituição a Requerente da quantia indevidamente paga (...) acrescida de juros indemnizatórios sobre essa importância, contados desde o pagamento indevido (...) ate a data da emissão da respectiva nota de credito, a taxa legal (…)”.

11. A Requerente foi notificada dos despachos de deferimento parcial de cada um dos pedidos de revisão oficiosa dos actos tributários acima identificados (com dispensa do direito de audição previa), formulados com base na Informação n° ...17..., de 04-05-2017 (processo n° 2016... relativo ao Imposto do Selo de 2012) e com base na Informação n° ...17..., de 04-05-2017 (processo n° 2016... relativo ao Imposto do Selo de 2013), ambas da DS de IMT, as quais foram emitidas no sentido de decidir “(...) o deferimento parcial da (...) revisão oficiosa (…)” para cada um dos actos, “(...), com as seguintes consequências:

a. Relativamente ao ano 2012, determinou-se “(...) a anulação da liquidação contestada; a restituição do imposto indevidamente pago, no valor de €10.094,90; o não reconhecimento do direito aos juros indemnizatórios (…)” e, “quanto ao valor de €229,62, também (...) reclamado, e referente a juros de mora e custas cobrados em sede de execução fiscal (...) o procedimento de revisão dos actos tributários (...) não e o meio próprio para apreciar esta matéria (…)”, dela não conhecendo;

b. Relativamente ao ano 2013, determinou-se “(...) a anulação da liquidação contestada; a restituição do imposto indevidamente pago, no valor de € 10.094,90; o não reconhecimento do direito aos juros indemnizatórios (…)” e, “quanto ao valor de € 455,35, também (...) reclamado, e referente a juros de mora e custas cobrados em sede de execução fiscal (...) o procedimento de revisão dos actos tributários (...) não é o meio próprio para apreciar esta matéria (…)”, dela não conhecendo.

3.2. Fundamentação de Direito

3.2.1. Da admissibilidade do Recurso para Uniformização de Jurisprudência: os pressupostos formais.

Por despacho da ora Relatora de 14 de Setembro de 2023 o presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência foi liminarmente admitido, por então se terem julgado verificados os pressupostos formais de admissão, designadamente de tempestividade e legitimidade.

Reanalisados os articulados e averiguada a existência de quaisquer circunstâncias contemporâneas ou de ocorrência posterior à prolação do referido despacho liminar de admissão, conclui-se inexistir qualquer fundamento para que o reconhecimento de legitimidade e de tempestividade então realizado deva ser alterado: a Recorrente ficou vencida na decisão arbitral recorrida e interpôs o presente recurso no prazo de 30 dias contados da notificação dessa decisão.

3.2.2. Da admissibilidade do recurso para Uniformização de Jurisprudência: os pressupostos substanciais.

Como é sabido, a admissibilidade do Recurso para Uniformização de Jurisprudência depende, nuclearmente, da verificação cumulativa de dois requisitos: a) que haja contradição entre a decisão recorrida e o acórdão fundamento sobre a mesma questão fundamental de direito; b) que a decisão impugnada não esteja estar em sintonia com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo sobre a mesma questão (cfr. artigos 27.º, alínea b), do ETAF, 284.º do CPPT e 152.º do CPTA).

Há jurisprudência recentemente consolidada a obstar à admissão do recurso se o Pleno ou a Secção por sucessivos acórdãos (especialmente quando deles resulta a intervenção de todos ou quase todos Senhores Conselheiros em exercício de funções na data de prolação do acórdão, o que permite concluir que todos perfilham o mesmo fundamento e sentido decisório), já se pronunciaram sobre a questão, julgando-a, reiteradamente e sem votos de vencido, no mesmo sentido.

Há contradição ente a decisão recorrida e a decisão fundamento sobre uma mesma questão fundamental de direito sempre uma mesma questão de direito (que nos é submetida para julgamento de uniformização) foi apreciada e decidida num quadro fáctico substancialmente idêntico. Ou seja, a existência de uma mesma questão de direito pressupõe que exista uma identidade substancial de situações fácticas e que os factos determinantes em ambos os julgamentos tenham sido subsumidos a um regime jurídico substancialmente idêntico. Se o regime aplicado numa e noutra das decisões não for substancialmente idêntico - o que ocorrerá sempre que à luz de eventuais alterações de regime possam ser suscitados e valorados argumentos capazes de conduzir a outra solução - então não pode afirmar-se que num e noutro dos arestos foi apreciada uma mesma questão fundamental de direito.

Sintetizando: a apreciação do mérito do Recurso para Uniformização de Jurisprudência depende de um conjunto de pressupostos substantivos e o Supremo Tribunal Administrativo só o aprecia e uniformiza jurisprudência se esses requisitos estiverem cumulativamente preenchidos. Estes pressupostos destinam-se a confirmar que a questão de direito suscitada em ambas decisões (recorrida e fundamento) é substancialmente idêntica e que as respostas dadas por cada um dos julgamentos convocados são opostas.

É o que resulta, tendo presente que este Recurso para Uniformização de Jurisprudência foi interposto de decisão arbitral, do preceituado nos artigos 25.º, n.ºs 2 e 3 do RJAT, 281.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), 140.º, n.º 3 e 152.º, n.º 3 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e 688.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC).

Posto isto, e revertendo ao caso concreto, podemos já adiantar que não é discutido pelas partes, nem é discutível atento o teor do processo arbitral junto e das decisões convocadas, que quer na decisão recorrida quer na decisão fundamento os Tribunais apreciaram o mérito das pretensões apresentadas pelos Requerentes dos pedidos de pronúncia arbitral e através desses julgamentos de mérito foi posto termo aos respectivos processos.

A questão que permanece é, pois, tão só, a de saber se nesses julgamentos foram proferidas decisões opostas relativamente a uma mesma questão de direito.

Vejamos, então, o que aí ficou decidido.

Na decisão recorrida estava em causa a legalidade do ISV liquidado sobre uma viatura importada, tendo o julgador, após concluir que o artigo 11.º do Código do ISV era desconforme o direito da União Europeia, decidido anular a liquidação, reconhecer ao contribuinte o direito o reembolso do que indevidamente tinha pago e, bem assim, condenar a Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios contados sobre esse valor desde a data de pagamento ao abrigo do preceituado nos artigos 43.º, n.º 1 al. d) da LGT e 61.º, n.º 5 do CPPT (sublinhado de nossa autoria, tal como os demais que infra se encontram realizados nas decisões recorrida e fundamento).

Recuperemos o seu discurso fundamentador:

«Em conclusão, subscrevendo a posição que o TJUE tem expressamente assumido, não se afiguram dúvidas quanto à incompatibilidade do artigo 11.º do Código do ISV, na redação em vigor à data da emissão das liquidações em crise, com o direito da União Europeia, ao fazer impender uma carga tributária agravada sobre os veículos usados provenientes de outros Estados-Membros, comparativamente com os nacionais, ao não ter em conta a necessária redução do montante do imposto na componente ambiental.

Acresce que o n.º 4 do artigo 8.º da CRP, estabelece o primado do direito comunitário, quando determina que as disposições dos tratados que regem a União Europeia prevalecem sobre as normas de direito nacionais, nos termos definidos pelos órgãos do direito da União, desde que respeitados os princípios fundamentais do Estado de direito comunitário.

Logo, quando as normas de direito ordinário interno não são compatíveis com o direito comunitário, o Tribunal não as pode aplicar suspendendo a sua força vinculativa no caso concreto. “O juiz nacional, encarregado de aplicar, no âmbito da sua competência, as disposições do direito comunitário, tem a obrigação de assegurar o pleno efeito dessas normas, deixando se necessário inaplicadas, por sua própria autoridade, qualquer disposição contrária da legislação nacional, ainda que posterior, sem que tenha de pedir ou aguardar a eliminação prévia desta por via legislativa ou por qualquer outro processo constitucional” (Acórdão de 09.03.1978 do TJUE, proferido no processo C-106/77 - Acórdão Simmenthal).

Daqui se retira que o primado do direito da União Europeia é absoluto e impõe-se à própria Constituição. Assim, a legalidade da liquidação em crise deve aferir-se, em última instância, pela sua conformidade com o direito da União Europeia que compete aos Estados-Membros, designadamente através dos tribunais, aplicar e fazer respeitar. Facto que o legislador português também já reconheceu ao alterar, através da Lei n.º 75-B/2020, de 31/12, a redação do artigo 11.º do Código do ISV, por forma a que a mesma ficasse em conformidade com o direito da União Europeia.

Nestes termos, julga-se incompatível com o direito comunitário a norma do artigo 11.º do Código do ISV (em particular, a redação em vigor à data dos factos), na medida em que sujeita os veículos usados provenientes de outros Estados-Membros a uma carga tributária superior ao do imposto residual contido nos veículos usados similares transacionados no mercado nacional.

Consequentemente, o ato de liquidação em causa, desconsiderando a redução na vertente relativa à componente ambiental do ISV, encontra-se feridos de ilegalidade devendo ser anulado (…)

A par da anulação parcial do ato de liquidação, e consequente reembolso da importância indevidamente cobrada, o Requerente solicita ainda que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da LGT, “desde a data do pagamento do imposto até à efetiva restituição”.

A este respeito, refira-se que, no Acórdão proferido no Processo 0735/19.4BEBRG, o STA reconheceu o pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º, n.º 3, alínea d) da LGT, “desde o pagamento indevido do tributo, nos termos do estatuído no artigo 61.º/5 do CPPT”.

Com efeito, de acordo com o referido artigo 43.º, n.º 3, alínea d) da LGT, são também devidos juros indemnizatórios “[e]m caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução”.

Conforme é referido por Iara Marques Freitas e Mariana Mendonça Saraiva no artigo “O Direito a Juros Indemnizatórios em caso de Inconstitucionalidade da Norma Aplicada e o Erro Imputável aos Serviços” (publicado na Revista Electrónica de Fiscalidade da AFP (2019), Ano I, n.º 1) “ao contrário do que sucede com as situações de erro imputável aos serviços da Administração Tributária – cuja verificação e reconhecimento é condição sine qua non para o nascimento do direito a juros indemnizatórios –, o n.º 3 do artigo 43.º da LGT determina directamente que o (único) pressuposto de que depende aquele direito é a existência de «decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respectiva devolução»”.

Neste sentido, entende o presente Tribunal que não tem acolhimento a fundamentação invocada pela Requerida nas suas Alegações, na medida em que, com exclusão das situações de erro imputável aos serviços (da AT), há lugar a direito a juros indemnizatórios sempre que se verifique uma das situações elencadas no n.º 3 do artigo 43.º da LGT. Consequentemente, no caso sub judice, bastará verificar-se a aplicação da alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT para que possa operar o direito aos juros indemnizatórios.

Tem também direito ao recebimento dos correspondentes juros indemnizatórios, nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, a partir do trânsito da presente decisão – não por erro dos seus serviços, mas por erro do legislador.

Ainda se poderia invocar, como obstáculo à aplicação da norma da referida alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, que, em rigor, a violação de normas do Direito da União por leis internas não constitui propriamente nem “inconstitucionalidade” nem “ilegalidade”. Contudo, […] a desconformidade de uma lei com o Direito da União configura uma situação análoga à de inconstitucionalidade (ou, pode admitir-se agora, de inconstitucionalidade indirecta, por violação do disposto no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição através da desconformidade com o parâmetro interposto do Direito da União).

Em qualquer caso – e reconduza-se o juízo de desconformidade de uma norma legal interna com o Direito da União a inconstitucionalidade ou a ilegalidade (e não se vê que possa ser outra coisa) –, certo é que não faria sentido que tal situação tivesse um tratamento diferente do que o legislador de 2019 criou para as situações de desconformidade com normas de valor reforçado ou com a Constituição.

Assim, só a partir do trânsito em julgado de um juízo de desconformidade com o Direito da União – como o que dependerá do trânsito da presente decisão – haverá lugar ao pagamento de juros.”

De reforçar, porém, que os juros indemnizatórios, sem prejuízo de serem reconhecidos ao abrigo da alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, são devidos “desde o pagamento indevido do tributo, nos termos do estatuído no artigo 61.º/5 do CPPT” (cfr. Acórdão proferido pelo STA no Processo 0735/19.4BEBRG).».

No acórdão fundamento também estão em causa pedidos de revisão oficiosa, no caso de actos de liquidação de Imposto de Selo (IS), referentes aos anos de 2012 e 2013, cujo prazo de pagamento terminou, respectivamente, em 2013 e 2014, pedindo-se igualmente a sua anulação, acrescida de juros indemnizatórios, tendo os mesmos sido deferidos parcialmente, por decisão de 11 de Maio de 2017, indeferindo-se, todavia, o pedido de juros indemnizatórios.

Debruçando-se sobre a questão, que enunciou como sendo a de saber qual «a extensão temporal dos juros indemnizatórios devidos em caso de procedência total ou parcial do pedido de revisão do acto tributário», o Supremo Tribunal Administrativo considerou que «A decisão arbitral recorrida atribuiu a indemnização a partir da ocorrência do evento danoso, sendo que face às normas de direito tributário vigente tal indemnização não tem assento legal, pelo menos sob a égide do processo de impugnação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa do acto de liquidação».

Fundamentando a sua decisão escreveu-se no aresto identificado que não há lugar «a juros indemnizatórios visto o pedido de revisão do acto tributário haver sido decidido em período inferior a um ano contado da apresentação deste pedido de revisão, como resulta do disposto no art.º 43.º, n.º 3, c) da Lei Geral Tributária».

Em suma, do confronto dos julgamentos invocados resulta que não há - como bem sublinhou o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer e este Pleno da Secção de Contencioso Tributário vem julgando em idênticas circunstâncias de direito, que aqui se convocam, nos termos e ao abrigo do preceituado no artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil, como fundamento da nossa decisão – uma efectiva oposição de decisões quanto a uma mesma questão fundamental de direito.

Como lapidarmente se exarou no acórdão proferido pelo Pleno desta Secção, a 26 de Abril de 2023, processo n.º 81/22.6BALSB, integralmente disponível em www.dgsi.pt [com inteira aplicação nos autos uma vez que também aí se discutiu a eventual oposição de julgados nas situações em que numa decisão a atribuição de juros se funda na al. c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT e outra na al. d) do n.º 3 do mesmo artigo e diploma legais]: «a diferença quanto ao termo inicial do prazo de contagem dos juros indemnizatórios não resulta de um diverso entendimento da mesma questão jurídica fundamental, mas antes de nas decisões arbitrais em confronto ser diverso o quadro jurídico de referência concretamente aplicado: os juros indemnizatórios foram concedidos com base em pressupostos diversos e ao abrigo de diferentes previsões legais; a diversidade de decisões quanto à questão do dies a quo dos juros indemnizatórios não resultou de uma diferença na interpretação e aplicação de um mesmo quadro jurídico, mas antes ficou a dever-se à circunstância de as decisões em confronto terem conteúdo e âmbito diverso, o que retira relevância à divergência quanto ao termo inicial da contagem dos juros indemnizatórios

Sublinhamos que como mero reforço argumentativo, que o quadro jurídico tido por referência na decisão arbitral recorrida, artigo 43.º, n.º 3 al. d) da LGT, nem sequer estava legalmente consagrado na data em que foi proferida a decisão arbitral recorrida apreciada no acórdão fundamento (A al. d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT foi aditada pela Lei nº 9/2019, de 1 de Fevereiro, que entrou em vigor no dia imediato.), que, por essa razão, igualmente o não considerou, como linearmente resulta da sua leitura. Sendo que foi este normativo (al. d), do n.º 3 d artigo 43.º da LGT), repita-se, não relevado minimamente no acórdão fundamento, que constituiu o critério interpretativo ou elemento normativo fulcral na decisão arbitral recorrida.

Em conclusão, e como começamos por adiantar no ponto 3.2.2., § 3, deste acórdão, em que densificamos o que constitui uma mesma questão fundamental de direito para efeitos de admissão de Recurso para Uniformização de Jurisprudência, se o regime aplicado numa e noutra das decisões não for substancialmente idêntico, o que ocorrerá sempre que à luz de eventuais alterações de regime possam ser suscitados e valorados argumentos capazes de conduzir a outra solução, então não pode afirmar-se que num e noutro dos arestos foi apreciado em sentido oposto uma mesma questão fundamental de direito.

E, assim sendo, não podendo afirmar-se que as decisões em confronto decidiram a mesma questão fundamental de direito em sentido divergente, divergência esta que seria imprescindível para o conhecimento do mérito do presente recurso para uniformização de jurisprudência, não há que tomar conhecimento do mérito do mesmo, como a final se decidirá.

3.3. As custas da presente acção serão suportadas pela Recorrente, integralmente vencida, nos termos do artigo 527.º do CPC, aplicável ex vi artigo 281.º do CPPT.

4. DECISÃO

Em face do exposto, acordam os Juízes do Pleno da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo, não conhecer o mérito do Recurso interposto para Uniformização de Jurisprudência.

Custas pela Recorrente

Registe, notifique e, transitado em julgado o acórdão comunique-se ao CAAD.

Lisboa, 21 de Fevereiro de 2024. – Anabela Ferreira Alves e Russo (relatora) – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia - Isabel Cristina Mota Marques da Silva – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes – José Gomes Correia - Joaquim Manuel Charneca Condesso – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz – Gustavo André Simões Lopes Courinha - Pedro Nuno Pinto Vergueiro – Fernanda de Fátima Esteves.