Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0412/09
Data do Acordão:05/06/2010
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:PAIS BORGES
Descritores:ABASTECIMENTO PÚBLICO
ÁGUAS
CULPA
ILICITUDE
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
SERVIÇOS MUNICIPAIS
REDE DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACTO ILÍCITO
Sumário:I - Para efeitos de responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas públicas, a ilicitude consiste na violação, pelos seus órgãos ou agentes, de "normas legais e regulamentares", dos "princípios gerais aplicáveis" e ainda das "regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração" (art. 6º do Dec. Lei nº 48.051, de 21.11.1967).
II - Embora os pressupostos "ilicitude" e "culpa" (imputação objectiva e subjectiva do facto ao lesante) sejam em si mesmos realidades distintas, sucede que, face à definição ampla de ilicitude constante daquele art. 6º, se torna difícil estabelecer uma linha de fronteira entre ambos os elementos, assumindo a culpa o aspecto subjectivo da ilicitude.
III - Tendo a cave do prédio da Autora sido inundada por água proveniente da ruptura de uma conduta de abastecimento público, cuja manutenção e conservação pertence aos SMAS do Município Réu, e tendo ficado provado que "a conduta entrou em ruptura por falta da devida manutenção e conservação", é forçoso concluir pela verificação de culpa efectiva do Réu, por omissão imputável aos seus agentes, e que foi causa adequada da ruptura da conduta e consequente inundação da cave do prédio da Autora.
IV - Tendo ficado igualmente provado que parte do caudal de água proveniente da conduta em ruptura passou pelos cabos da caixa da EDP, cuja saída não se encontrava devidamente isolada e vedada, como era prática habitual da EDP, e que essa circunstância contribuiu para a inundação da cave, é correcta a decisão que considerou a interveniente EDP co-responsável pelos danos resultantes da inundação, em termos de concorrência de culpas graduada na proporção de ¾ para o Réu Município e ¼ para a Interveniente EDP.
Nº Convencional:JSTA00066416
Nº do Documento:SA1201005060412
Data de Entrada:04/14/2009
Recorrente:EDP DISTRIBUIÇÃO - ENERGIA, SA E MUNICÍPIO DE ...
Recorrido 1:B... E OUTROS
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAC PORTO DE 2008/10/30 PER SALTUM.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - RESPONSABILIDADE EXTRA.
Legislação Nacional:CCIV66 ART483.
DL 48051 DE 1967/11/21 ART2 ART6.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC38737 DE 1998/11/25.; AC STA PROC903/02 DE 2002/11/20.
Referência a Doutrina:JEAN RIVERO DIREITO ADMINISTRATIVO PAG320.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
(Relatório)
I. “B…, S.A.”, com os sinais dos autos, intentou no Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, contra o MUNICÍPIO DE …, acção declarativa de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, pedindo a condenação do Réu no pagamento da quantia de 62.272,80 €, acrescida de juros legais, a título de indemnização por danos patrimoniais resultantes da inundação, na madrugada de 17/09/2001, da cave de um prédio pertencente à A., sito em S. Cosme, …, em resultado da ruptura de uma conduta de abastecimento público ali existente, por falta da devida manutenção e conservação por parte dos SMAS do Município de …, tendo a cave sido inundada de água até uma altura de 80 a 90 cms, ficando submersos e irremediavelmente danificados o poço e a casa das máquinas dos elevadores, a respectiva instalação eléctrica de suporte, os cabos de suspensão das cabinas e componentes do sistema de pára-quedas, e ainda as bombas de alimentação e escoamento de água do prédio e um seu veículo ali estacionado.
Foi posteriormente admitida a intervenção a título principal, como associada do R., da “EDP- DISTRIBUIÇÃO ENERGIA, S.A.”, e a intervenção a título acessório da “C…, S.A.” e da “D…, S.A.”
Por sentença de 30.10.2008 (fls. 530 e segs.), foi a acção julgada parcialmente procedente e, em consequência, condenado o R. Município de … a pagar à A. a quantia de 26.373,94 €, acrescida de juros à taxa legal de 7% de 16.05.2002 até 30.04.2003, e de 4% desde esta última data até integral pagamento, e ainda condenada a interveniente EDP a pagar à A. a quantia de 8.791,32 €, igualmente acrescida de juros calculados nos termos atrás referidos.
Desta decisão foram interpostos recursos jurisdicionais pelo R. Município de … e pela interveniente EDP.
O recorrente Município de … rematou a sua alegação com as seguintes conclusões:
1- Como decorre da matéria de facto, foi dado como provado que os técnicos SMAS do M… vigiavam o estado de conservação das condutas de água e reparavam as deficiências que iam detectando.
2- Ou seja, ficou provado que o Recorrente tomou todas as providências possíveis e exigíveis para manter em bom estado de conservação as condutas de água, não podendo afirmar-se que outro comportamento lhe era exigido, que podia e devia ter agido de outro modo.
3- O Recorrente provou que adoptou todas as providências que segundo a experiência comum e as regras técnicas aplicáveis fossem susceptíveis de evitar o dano, o qual não se teria ficado a dever a culpa da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
4- Acresce ainda que foi dado como provado que a saída dos cabos da caixa da EDP para a cave da Recorrida não se encontrava isolada e vedada, como era prática habitual na EDP, sendo certo que tal falta de isolamento e tapamento contribuiu para a entrada da água na cave do prédio da Recorrida,
5- pelo que mais uma vez se verifica que não está preenchido o requisito de culpa da responsabilidade por parte do Recorrente.
6- Assim sendo, não se comprovou a verificação dos pressupostos de responsabilidade civil extracontratual, dado que foi afastada a presunção de culpa, e como são de verificação cumulativa os respectivos pressupostos, haverá que concluir-se, em contrário do que foi decidido, que a acção deve improceder.
7- Não se pode, por tudo o que ficou demonstrado, assacar qualquer responsabilidade ao Recorrente, por não estarem reunidos todos os pressupostos da obrigação de indemnizar,
8- Violou assim a sentença recorrida a norma legal do artigo 483º C.C.
A recorrente EDP, por seu lado, formulou na sua alegação as seguintes conclusões:
A- Do julgamento da matéria de facto resultou provado, além do mais, que devido à falta de manutenção e de conservação de uma conduta de água, cuja guarda e manutenção cabe ao R. Município de … Serviços de Águas e Saneamento, esta infra estrutura entrou em ruptura gerando inundação na cave de um prédio de propriedade da A.
B- Provou-se, ainda, que a indemnização peticionada diz respeito aos danos directamente resultantes da inundação.
C- Apurou-se, por outro lado, que uma parte da água que inundou a cave da A. entrou através de um tubo, destinado a proteger os cabos eléctricos de Média Tensão que abastecem de energia eléctrica o Posto de Transformação instalado na cave do edifício da A.
D- A EDP não está obrigada a tapar, nas suas extremidades, os tubos protectores de cabos eléctricos subterrâneos (cfr., nomeadamente, n° 3 do artigo 79º do Regulamento de Segurança de Linhas Eléctricas de Alta Tensão, aprovado pelo Decreto Regulamentar 1/92).
E- Nada fazia prever que no local onde se verificou o incidente pudesse acontecer uma inundação, não sendo exigível à EDP que procedesse ao tapamento do tubo subterrâneo.
F- A inundação verificada foi devida à falta de cuidado e de zelo do R. Município de …, Serviços de Águas e Saneamento, que não fez a conveniente conservação e manutenção da conduta de água que veio a rebentar, agindo por isso com culpa efectiva.
G- A ruptura da conduta de água e o período de tempo durante o qual esta se manteve (algumas horas), foram a causa adequada a produzir os danos sofridos pela A.
H- A matéria de facto apurada preenche todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.
I- À interveniente EDP não é assinalável qualquer acção ou omissão potencialmente geradora da obrigação de indemnizar a lesada, devendo por isso ser absolvida.
J- Decidindo, como se decidiu no douto acórdão recorrido, fez-se errada interpretação e aplicação do direito ao caso aplicável, violando ou não atendendo, além do mais, ao estatuído no artigo 483º do Código Civil e no artigo 79º do Regulamento de Segurança de Linhas Eléctricas de Alta Tensão, aprovado pelo Decreto Regulamentar 1/92.
II. A Exma Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal emitiu nos autos o seguinte parecer:
“I- Recurso interposto pelo R., Município de …
Afigura-se-nos que não assiste razão ao Recorrente.
Vejamos.
Cabia ao Réu provar que não teve qualquer culpa na ocorrência da ruptura, uma vez que tinha tomado todas as providências adequadas à conservação e manutenção da conduta em causa, e que aquela se ficou a dever apenas a caso fortuito (art° 493°, n° 1 do C.C.).
Prova que o R. alega ter feito.
Ora, resultou provado que «a conduta entrou em ruptura por falta da devida manutenção e conservação» (n 2.1 da MF).
No que concerne às providências tomadas no âmbito do dever de conservação das condutas, que impendia sobre o SMAS, apenas se provou que:
«Os técnicos do M… vigiavam o estado de conservação das condutas de água e reparavam as deficiências que iam detectando» (nº 2.16 da MF).
Para ilidir a presunção legal de culpa estabelecida no art° 493°, n° 1 do C.C. é insuficiente a prova em abstracto de que os serviços do Réu fiscalizam o estado de conservação das condutas e reparavam as deficiências.
Tornava-se necessário provar a periodicidade com que as mesmas eram fiscalizadas, o que é que compreendiam essas acções de fiscalização, bem como qual o tempo de duração das condutas, a fim de que o Tribunal tendo em conta as regras técnicas a observar e os meios ao dispor do Réu, pudesse concluir pela adequação da fiscalização que foi desenvolvida e consequente cumprimento, com a diligência exigível, do dever de manutenção que sobre ele recaía.
Conforme é entendimento da jurisprudência deste S.T.A.
Cfr. Acs. de 14.04.2005, Proc. 86/04, de 16.02.2006, Proc. 1039/05, de 18.05.2006, Proc. 226/06, de 12.07.2007, Proc. 321/07 e de 26.09.2007, Proc. 522/07.
Essa prova, de ter existido uma adequada acção de conservação das condutas, não foi feita.
Pelo que, deverá considerar-se verificada a culpa, por parte do R Município, na ocorrência da ruptura, como a sentença recorrida bem entendeu.
A falta de isolamento e vedação da saída dos cabos da caixa de visita da EDP, para a cave da recorrida, operações que de acordo com as regras da prudência comum, deviam ter sido observadas, apenas «contribuiu» (nº 2.18 da MF) para a entrada da água na cave.
Não resulta, por isso, excluída a responsabilidade do Recorrente.
Apesar de os danos terem tido a sua origem em mais que um facto ilícito, provou-se que eles são maioritariamente imputáveis à falta de manutenção da conduta pelo M…, a qual originou o rebentamento.
Devendo ser negado provimento ao recurso.
II - Recurso interposto por «EDP Distribuição-Energia, S.A.»
Somos de parecer que, relativamente à EDP, deverá ser mantida a sentença recorrida pelos fundamentos constantes da mesma.
Negando-se, provimento ao recurso.”
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
(Fundamentação)
OS FACTOS
A sentença recorrida considerou assentes, com relevância para a decisão, os seguintes factos:
Matéria Assente:
1. A Autora é proprietária do prédio urbano sito no gaveto da Rua … - com a Rua …, em S. Cosme [al. A)];
2. Na madrugada de 17 de Setembro de 2001, a cave deste prédio foi inundada por água proveniente da ruptura de uma conduta de abastecimento público existente ali perto, e cuja manutenção e conservação pertence aos SMAS do M… [al. B)];
3. O piquete de serviço dos SMAS do M… confirmou a inundação e procedeu, desde logo, à reparação da conduta [al. C)];
4. Os Bombeiros Voluntários de … chegaram ao local pouco depois das 09H15 e utilizando duas bombas médias durante várias horas removeram toda a água da cave [al. D)];
5. Um agente da Polícia da Segurança Pública chegou ao local cerca das 09H45 e elaborou a respectiva participação [al. E)];
6. Em 18 de Fevereiro de 2002 a Autora reclamou junto do Réu indemnização no montante de € 57.587,21 pelos danos provocados pela inundação [al. F)];
7. Junto do prédio da Autora existe uma caixa de visita de linhas subterrâneas da EDP [al. G)];
8. O Réu transferiu a responsabilidade perante terceiros derivada da ruptura de condutas de água para a C… através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º … [al. H)];
9. Aquando do sinistro, este contrato garantia - por anuidade - um de € 24.939,89 sujeito a uma franquia contratual - a cargo do segurado - no valor de 10% e no mínimo de € 99,76 [al. I)];
10. Na anuidade de 2001 a C… pagou - ao abrigo deste contrato de seguro - a quantia de € 12.558,48 [al. J)];
11. A EDP havia transferido para a D… a responsabilidade civil decorrente da exploração das suas linhas subterrâneas através do contrato de seguro titulado pela apólice nº … [al. K)];
12. Aquando do sinistro, este contrato limitava a responsabilidade da seguradora - por anuidade - ao montante de € 99.959,58 [al. L)];
13. Na anuidade de 2001 tal contrato vigorou com uma franquia - a cargo do segurado - de 30% dos prejuízos indemnizáveis, no máximo - para danos materiais - de € 14.963,94 por ocorrência [al. M)].
Da Base Instrutória da Causa:
1. A conduta entrou em ruptura por falta da devida manutenção e conservação (resposta ao facto 1º);
2. A cave ficou inundada até uma altura de cerca de 80 a 90 centímetros (resposta ao facto 2º);
3. O piquete de serviço do R., os BV… e a PSP foram chamados ao local (resposta ao facto 4º);
4. Pelo serviço prestado pelos BV… pagou a autora a quantia de € 739,97 (resposta ao facto 5º);
5. A inundação atingiu o poço e a casa das máquinas dos elevadores (resposta ao facto 6º);
6. Ambas as máquinas ficaram submersas quase por completo (resposta ao facto 7º);
7. E restaram irremediavelmente danificadas, assim como toda a instalação eléctrica que as fazia funcionar, os comandos dos elevadores, os cabos de suspensão das cabinas e alguns componentes do sistema de pára-quedas existentes em ambos os elevadores (resposta ao facto 8º);
8. A autora dada a necessidade dos elevadores, contratou a E… para proceder à reparação dos mesmos e à substituição das peças danificadas (resposta ao facto 9º);
9. Por este serviço pagou a quantia de € 30.930,48 (resposta ao facto 10º);
10. A inundação atingiu o compartimento onde se situam as bombas de alimentação e escoamento de água do prédio (resposta ao facto 11º);
11. Na cave do prédio encontrava-se estacionado o veículo de matrícula … Opel Corsa, que ficou parcialmente submerso (resposta ao facto 15º);
12. Restando, com o motor, parte eléctrica, mecânica e carroçaria danificados (resposta ao facto 16º);
13. E tendo de ser rebocado para a oficina onde foi reparado (resposta ao facto 17º);
14. Nessa reparação a Autora gastou € 3.494,81 (resposta ao facto 18º);
15. Uma vez retirada a água, a cave ficou com o chão e as paredes sujas e cheias de lama (resposta ao facto 22º);
16. Os técnicos do SMAS e do M… vigiavam o estado de conservação das condutas de água e reparavam as deficiências que iam detectando (resposta aos factos 25º e 26º);
17. A saída dos cabos da caixa da EDP para a cave da autora não se encontrava isolada e vedada, como era prática habitual da EDP (resposta ao facto 29º);
18. Esta falta de isolamento e tapamento contribuiu para a entrada de água na cave do prédio da autora (resposta ao facto 30º).
O DIREITO
A sentença recorrida julgou parcialmente procedente a acção de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito intentada por “B… S.A.” contra o MUNICÍPIO DE …, e na qual foi admitida a intervenção a título principal, como associada do R., da “EDP – DISTRIBUIÇÃO ENERGIA, S.A.”, tendo condenado o R. Município de … a pagar à A. a quantia de 26.373,94 €, acrescida dos juros legais, e a interveniente EDP a pagar à A. a quantia de 8.791,32 €, igualmente acrescida dos juros legais, a título de indemnização por danos patrimoniais resultantes da inundação, na madrugada de 17/09/2001, da cave de um prédio pertencente à A., sito em S. Cosme, …, em resultado da ruptura de uma conduta de abastecimento público ali existente, tendo a cave sido inundada de água até uma altura de 80 a 90 cms, ficando submersos e irremediavelmente danificados o poço e a casa das máquinas dos elevadores, a respectiva instalação eléctrica de suporte, os cabos de suspensão das cabinas e componentes do sistema de pára-quedas, e ainda as bombas de alimentação e escoamento de água do prédio e um seu veículo ali estacionado.
A sentença considerou as duas entidades demandadas (Réu e Interveniente) como responsáveis pelos danos verificados, em termos de concorrência de culpas graduada na proporção de ¾ para o Réu Município e ¼ para a Interveniente EDP.
Contra esta decisão se insurgem os recorrentes Município de … e EDP, sacudindo e atribuindo-se reciprocamente a responsabilidade pela produção dos danos sofridos pela A., e pugnando assim pela inexistência – no que a cada um respeita – dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito.
Vejamos da consistência das respectivas impugnações, apreciando separadamente os dois recursos.
Recurso do R. Município de …
Como se vê da sua alegação e respectivas conclusões, o recorrente sustenta a inexistência de culpa sua na produção dos danos, alegando, em suma, ter ficado provado que os técnicos dos SMAS do Município de … “vigiavam o estado de conservação das condutas de água e reparavam as deficiências que iam detectando”, o que, em seu entender, atesta que o recorrente adoptou todas as providências possíveis e exigíveis para manter em bom estado de conservação as condutas de água, não podendo afirmar-se que outro comportamento lhe era exigido, ou que podia e devia ter agido de outro modo.
E alega ainda ter ficado também provado que “a saída dos cabos da caixa da EDP para a cave da Recorrida não se encontrava isolada e vedada, como era prática habitual na EDP”, sendo certo que esta falta de isolamento e tapamento “contribuiu para a entrada da água na cave do prédio”, concluindo que foi afastada a presunção de culpa do recorrente, e, por isso, a sua responsabilidade, face à necessidade de verificação cumulativa dos respectivos pressupostos.
Diz ter sido violado pela sentença impugnada o art. 483º do C.Civil.
Não tem, porém, qualquer razão.
Como refere a sentença, os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas públicas decorrem do enunciado no art. 22º da Constituição da República, estando tal responsabilidade concretizada, a nível de legislação ordinária, no art. 2º do DL nº 48.051 de 21.11.1967.
Neste se afirma o princípio geral de que “O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados no exercício das suas funções e por causa desse exercício” (art. 2º).
E para que se verifique tal responsabilidade por parte daquelas entidades, por actos (acções ou omissões) dos seus órgãos ou agentes, no exercício das suas funções e por causa delas, é necessária a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: facto ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano.
Para efeitos de responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas públicas, a ilicitude consiste na violação, pelos seus órgãos ou agentes, de “normas legais e regulamentares”, dos “princípios gerais aplicáveis” e ainda das “regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração” (art. 6º do citado Dec. Lei 48051).
E embora os pressupostos “ilicitude” e “culpa” (imputação objectiva e subjectiva do facto ao lesante) sejam em si mesmos realidades distintas, sucede que, face à definição ampla de ilicitude constante do aludido art. 6º do DL nº 48.051, se torna difícil estabelecer uma linha de fronteira entre ambos os elementos, assumindo a culpa o aspecto subjectivo da ilicitude, como a jurisprudência deste STA tem reiteradamente sublinhado.
E, neste domínio, assume especial relevo a chamada “faute de service”, assente numa culpa não estruturada em termos individuais mas funcionais, e que não depende do apuramento de comportamento censurável de certo e determinado funcionário ou agente, mas sim de falha do serviço (cfr. J. Rivero, “Direito Administrativo” p. 320).
Como se afirma no Ac. de 20.11.2002 – Rec. 903/02, “A culpa de uma pessoa colectiva como o município, não se esgota na imputação de uma culpa psicológica aos agentes que actuaram em seu nome, pois o facto ilícito gerador dos danos pode resultar de um conjunto, ainda que imperfeitamente definido, de factores próprios da deficiente organização ou falta de controlo, de vigilância ou fiscalização exigíveis em determinadas funções, ou de outras falhas que as reportam ao serviço como um todo.
Nestes casos, verifica-se uma culpa do serviço.”.
Ou, segundo o Ac. de 25.11.98 – Rec. 38.737, “a culpa do ente colectivo não depende da imputação subjectiva de certa conduta censurável a determinado agente, podendo resultar da conjugação de diversas faltas, de variável gravidade, que, no seu conjunto, merecem juízo de censura em que se traduz a imputação da culpa.”.
O recorrente, dispensando-se de tecer quaisquer considerações atinentes aos demais pressupostos daquele tipo de responsabilidade, resume a sua impugnação ao alegado erro de julgamento decorrente da afirmação, pela sentença, do pressuposto “culpa”, sustentando que foi afastada a presunção de culpa que sobre si impende, uma vez que ficou provado ter adoptado todas as providências possíveis e exigíveis para manter em bom estado de conservação as condutas de água, não podendo afirmar-se que outro comportamento lhe era exigido, ou que podia e devia ter agido de outro modo, e, por outro lado, que se provou igualmente que foi a falta de isolamento e tapamento da saída dos cabos da caixa da EDP para a cave da Recorrida que contribuiu para a entrada da água na cave do prédio.
Mas é infundada tal alegação.
Contrariamente ao que diz o recorrente, e como resulta da matéria de facto assente, o que de relevante ficou provado nos autos é que, na madrugada de 17 de Setembro de 2001, a cave do prédio da A. foi inundada, até uma altura de cerca de 80 a 90 cms, por água proveniente da ruptura de uma conduta de abastecimento público ali existente, cuja manutenção e conservação pertence aos SMAS do Município de …, e que, sendo embora certo que os técnicos do SMAS “vigiavam o estado de conservação das condutas de água e reparavam as deficiências que iam detectando” (resposta aos factos 25º e 26º da Base Instrutória), ficou provado que “a conduta entrou em ruptura por falta da devida manutenção e conservação” (resposta ao facto 1º da Base Instrutória).
Mais se provou que a saída dos cabos da caixa da EDP para a cave da autora não se encontrava isolada e vedada, como era prática habitual da EDP (resposta ao facto 29º), e que essa falta de isolamento e tapamento “contribuiu para a entrada de água” na cave do prédio da A. (resposta ao facto 30º).
Ou seja, face à resposta positiva dada pelo Tribunal ao quesito 1º da Base Instrutória (acima assinalado a negrito), a matéria de facto assente não permite outra conclusão que não seja a da verificação de culpa do Réu Município de …, pela omissão da devida manutenção e conservação da conduta de abastecimento de água, imputável aos seus agentes, e que foi causa adequada da ruptura da mesma e consequente inundação da cave do prédio da A.
Com efeito, era sobre o R. Município de …, através dos respectivos SMAS, que impendia a obrigação de vigilância, manutenção e conservação da rede de distribuição de água, nomeadamente ao nível das condutas de abastecimento público, uma vez que a mesma se encontra sob a sua jurisdição, pelo que, não o tendo feito, ocorre culpa do serviço.
Como se afirma na sentença:
In casu, o R. não conseguiu demonstrar que a culpa na verificação do sinistro (inundação) se tivesse ficado a dever a algo alheio à sua conduta, não legitimando a matéria de facto dada como provada a referência a qualquer elemento nesse sentido, razão pela qual provada também está a culpa, enquanto nexo de imputação ético-jurídico que liga o facto à vontade do agente, exprimindo uma ligação reprovável ou censurável da pessoa com o facto ilícito...”.
É que, para ilidir a presunção legal de culpa que sobre ele impende, é insuficiente a simples prova em abstracto, de que os serviços do Réu vigiavam o estado de conservação das condutas e reparavam as deficiências que iam detectando, não constituindo isto, como refere a sentença, senão o mero enunciado daquilo que compete ao R., constituindo como que um princípio geral de actuação.
E essa culpa do R. Município não é, de forma alguma, afastada pelo facto de ter sido dado como provado que a falta de isolamento e tapamento da saída dos cabos da caixa da EDP para a cave da recorrida contribuiu para a entrada da água na cave do prédio.
Na verdade, essa circunstância foi valorada pelo tribunal como tendo contribuído para o evento danoso, em termos de concorrência de culpas, na proporção de ¼. Ao afirmar que tal circunstância “contribuiu”, nessa medida, para a entrada da água na cave do prédio, a sentença está, não a afastar a culpa do R. Município, mas sim a esclarecer que a este cabe, em maior grau (¾), a culpa na produção do evento danoso, para o qual a referida circunstância de facto imputável à interveniente EDP apenas contribuiu em menor grau.
É, aliás, sintomática a resposta negativa (não provado), dada pelo tribunal colectivo ao quesito 31º da Base Instrutória, no qual se perguntava: “Caso estivesse isolada e tapada essa saída (dos cabos da caixa da EDP), a água teria seguido o seu curso normal através do sistema de drenagem de águas pluviais?”.
A resposta negativa a tal quesito, igualmente relevante em sede de nexo de causalidade, significa que não é possível afirmar, como pretenderia o R. Município, que, apesar da rotura da conduta, a cave não teria sido inundada se a saída dos cabos da caixa da EDP para a cave da autora estivesse, como devia, devidamente isolada e vedada.
Em suma, ficou provado nos autos que a rotura da conduta se deveu a falta da devida manutenção e conservação por parte dos serviços do R., e que a inundação da cave e a destruição das máquinas, bombas de alimentação e veículo ali existentes, que dela resultaram, se deveu primacialmente à referida omissão dos agentes dos SMAS do Município de ….
O que traduz, aliás, a existência de culpa efectiva, e não meramente presumida, por parte do R. Município, uma vez que o tribunal não se limitou a dar como indemonstrada a devida manutenção e conservação da conduta por parte dos SMAS, antes afirmou positivamente como demonstrada a falta dessa manutenção e conservação.
Bem andou, pois, a sentença recorrida ao afirmar a culpa do R. Município na produção do evento danoso, ainda que nos apontados termos de concorrência de culpas, não tendo pois a mesma violado o art. 483º do C.Civil.
Improcede, assim, a alegação do recorrente.
Recurso da Interveniente EDP
Como resulta da sua alegação e respectivas conclusões, a recorrente sustenta, em suma, que ficou provado que a inundação verificada foi devida à falta de cuidado e de zelo dos Serviços de Águas e Saneamento do R. Município, que não fez a conveniente conservação e manutenção da conduta de água que veio a rebentar, agindo por isso com culpa efectiva.
E que, relativamente à entrada de água através de um tubo de protecção dos cabos eléctricos que abastecem o Posto de Transformação instalado na cave do edifício da A., a EDP não está obrigada a tapar, nas suas extremidades, os tubos protectores de cabos eléctricos subterrâneos, como se vê do n° 3 do art. 79º do Regulamento de Segurança de Linhas Eléctricas de Alta Tensão, aprovado pelo Decreto Regulamentar 1/92, de 18 de Fevereiro).
Diz ter sido violado pela sentença recorrida o referido preceito regulamentar, bem como o art. 483º do C.Civil.
Não assiste qualquer razão à recorrente.
É evidente que a maior proporção de culpa na produção do evento danoso do qual decorreram os prejuízos sofridos pela A. foi, e bem, imputada ao R. Município, nos termos atrás aludidos.
E isto pela simples e evidente razão de que, no plano naturalístico, a causa directa daqueles prejuízos é a inundação desencadeada pela ruptura da conduta de abastecimento de água.
Mas isso não permite afirmar a inocuidade, para o desencadeamento da inundação, dos factos 17 e 18 resultantes das respostas à Base Instrutória, nos quais o tribunal deu como provado que a saída dos cabos da caixa da EDP para a cave da A. não se encontrava isolada e vedada, como era prática habitual da EDP, e que essa falta de isolamento e tapamento contribuiu para a entrada de água na cave.
Ou seja, o tribunal entendeu, bem a nosso ver, que parte do caudal de água proveniente da conduta em ruptura passou pelos referidos cabos da caixa da EDP, cuja saída não se encontrava devidamente tapada, nessa medida contribuindo para a inundação da cave.
Diga-se, por fim, que não colhe o argumento esgrimido pela recorrente de que não está obrigada a tapar os tubos protectores de cabos eléctricos subterrâneos, como decorre do art. 79º, nº 3 do Regulamento de Segurança de Linhas Eléctricas de Alta Tensão, aprovado pelo Dec. Regulamentar 1/92, de 18 de Fevereiro.
Na verdade, este preceito regulamentar dispõe sobre as condições técnicas do estabelecimento de linhas enterradas e das respectivas valas de enterramento (que não é o caso), bem como da protecção mecânica dos respectivos cabos, não impondo nem deixando de impor a diligência que aqui está em causa: a falta de isolamento e tapamento da saída dos cabos da caixa da EDP para a cave da A.
Diligência que, segundo ficou provado (nº 18 da matéria de facto), “era prática habitual da EDP”.
Não foi pois violado o referido preceito regulamentar, tal como não foi o art. 483º do C.Civil.
Improcede, assim, a alegação do recorrente.
(Decisão)
Com os fundamentos expostos, acordam em negar provimento aos recursos, confirmando a sentença impugnada.
Custas apenas pela recorrente EDP, dada a isenção de que goza o recorrente Município.
Lisboa, 6 de Maio de 2010. – Luís Pais Borges (relator) – Adérito da Conceição Salvador dos Santos – Jorge Artur Madeira dos Santos (vencido, nos termos da declaração que junto).
VOTO DE VENCIDO

Voto vencido quanto à confirmação da sentença na parte em que condenou a EDP.
O facto de a EDP habitualmente isolar e vedar a saída de cabos em caixas do género não permite concluir que essa prática correspondia a uma regra técnica cuja não observância denota ilicitude ou culpa.
É certo que se provou que tal falta de isolamento contribuiu para a entrada de água na cave da autora. Mas isso corresponde somente a uma descrição do evento lesivo; pois, não se destinando o referido isolamento a impedir que a caixa fosse atravessada por água, a falta dele foi uma causa meramente acidental do facto danoso, que não descaracteriza nem diminui a causa «per se», atribuível ao município. Portanto, também este ponto não mostra que a EDP agiu ilícita ou culposamente.
É certo que a EDP argumentou mal ao tentar persuadir da sua falta de culpa. Mas isso é irrelevante, pois a culpa da EDP devia ser provada pelo lesado (artº 487º, nº 1, do Código Civil).
Assim, e porque a autora não demonstrou, como lhe competia nos termos gerais do artº 342º do Código Civil, que a EDP actuara ilícita e culposamente, alteraria a sentença por forma a absolver essa ré e a atribuir ao município toda a responsabilidade pelos danos apurados.
Jorge Artur Madeira dos Santos