Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:048332
Data do Acordão:02/28/2002
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:SANTOS BOTELHO
Descritores:ORDEM DOS ADVOGADOS.
INCOMPATIBILIDADE.
INSCRIÇÃO.
Sumário:O princípio da liberdade de escolha da profissão não obsta a que o exercício de determinadas profissões, como a de Advogado, possa ser regulamentado e, inclusivamente, sujeito à inscrição dos que a pretendem exercer .
Nº Convencional:JSTA00057407
Nº do Documento:SA120020228048332
Data de Entrada:12/05/2001
Recorrente:CONSELHO DA ORD DOS ADVOGADOS
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAC DE LISBOA DE 2001/07/10.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR ADM GER - ASSOC PUBL.
Legislação Nacional:EOA84 ART53 N1 ART68 ART69 N1 I ART155 N1 N5 ART156 N1 D ART156 N2.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:
1 - RELATÓRIO
1.1. O Conselho Distrital da Ordem dos Advogados recorre da sentença do TAC de Lisboa, de 10-7-01, que, concedendo provimento ao recurso contencioso interposto por A..., anulou a sua deliberação, de 31-3-00, “na parte em que torna extensível a incompatibilidade ao exercício da advocacia pelo recorrente em causa própria ou do seu cônjuge.”
Nas suas alegações formula as seguintes conclusões:
“1ª Admitindo-se o pressuposto segundo o qual o Estatuto da Ordem dos Advogados apenas rege o exercício profissional da advocacia, como é admitido pela douta sentença recorrida, não podem interpretar-se os artigos 53º, nº 1, 65º a 68º, 76º, nº 1, e 83º do Estatuto da Ordem como permitindo o exercício da advocacia em causa própria por aqueles a quem esteja vedado o respectivo exercício profissional, como acontece com o recorrente;
2ª Considerando que o Estatuto da Ordem é apenas aplicável ao exercício profissional da advocacia, as respectivas normas não podem ser interpretadas no sentido de permitir o exercício da advocacia em causa própria quando falhe aquele pressuposto da sua aplicação, como acontece manifestamente no caso dos autos;
3ª Ao permitir o exercício da advocacia em causa própria a quem se encontra com a inscrição suspensa e não se encontra autorizado a exercer a advocacia nessas condições pelo respectivo estatuto profissional, a douta sentença faz errada interpretação do disposto nos artigos 53º, nº 1, 65º a 68º, 76º, nº 1, e 83º do Estatuto da Ordem;
4ª O entendimento sufragado pela douta sentença recorrida viola ainda o disposto no artigo 158º do E.O.A., uma vez que esta disposição não ressalva o exercício da advocacia em causa própria por não inscritos.
Nestes termos Deve,..., ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a doutra sentença recorrida...” - cfr. fls. 112-113.
1.2 Por sua vez, o agora Recorrido, tendo contra-alegado, apresentou as seguintes conclusões:
“1º Ao contrário do que o recorrente quer fazer crer, a douta sentença de 10/7/2001 não põe em causa as competências e atribuições da Ordem dos Advogados para regular em exclusivo - através do seu Estatuto - o exercício da actividade de advocacia, seja como profissão ou em causa própria.
2º Por isso, como a douta sentença naturalmente reconhece, só um advogado pode exercer a actividade de advocacia, seja profissionalmente ou em causa própria.
3º Ora, o recorrido é efectivamente advogado inscrito na Ordem em 2/7/85, e - ao contrário do que o recorrente alega - não tem a sua inscrição suspensa, antes a mantém em vigor desde 5/12/97, data em que lhe foi levantada a suspensão da mesma para exercer a advocacia exclusivamente em causa própria.
4º Ao contrário do que o recorrente alega, a incompatibilidade entre o exercício da profissão de funcionário público e o exercício da profissão de advogado não implica, necessariamente, a incompatibilidade com o mero exercício da advocacia em causa própria.
5º Na verdade, ao suspender a inscrição do recorrido como advogado por, enquanto funcionário público, exercer funções incompatíveis com o exercício da advocacia em causa própria ou do seu cônjuge, o recorrente fez um errada interpretação e aplicação dos artºs 68º e 69º nº 1 al. i) do EOA que invocou como suporte jurídico.
6º Daí ter a douta sentença de 10/7/2001 anulado, e bem, a deliberação do recorrente, porque a profissão de funcionário público que o recorrido exerce não pode diminuir a independência e a dignidade do mero exercício da advocacia em causa própria, pois aqui não se representam nem defendem os interesses de clientes mas apenas os interesses do advogado que se representa e defende a si próprio, estando tecnicamente habilitado para o efeito
7º Por isso, não se tratando do exercício da profissão de advogado que o artº 68º do EOA expressamente refere, não pode o recorrente - ao abrigo deste preceito - suspender a inscrição do recorrido como advogado, com o fundamento de que exerce uma outra profissão (funcionário público) incompatível com aquela.
8º Ao contrário do que o recorrente quer fazer crer, o exercício da advocacia em causa própria (não profissional) por parte de um advogado que é funcionário público, não é proibido nem impedido por qualquer norma do EOA, porque obviamente não põe em causa nenhum dos deveres, princípios ou valores essenciais que norteiam a Advocacia, nomeadamente a independência e a dignidade referidas no art. 68º desse Estatuto.
9º Assim, como bem concluiu a douta sentença do TAC de Lisboa, além dos artigos 68º e 69º do EOA, também os artigos 53º nº 1, 65º a 67º, 76º nº 1 e 83º do mesmo Estatuto se referem expressamente ao exercício da advocacia em causa própria (portanto, não profissional), pelo que esta não será incompatível com a qualidade de funcionário público do recorrido, que é advogado inscrito e por isso está tecnicamente habilitado.
10º E também não se diga - como vem dizer o recorrente - que o recorrido não se encontra autorizado pelo seu estatuto de funcionário público a exercer a advocacia em causa própria, porque esse estatuto não só não proíbe tal exercício aos funcionários que já foram advogados, como permite que a respectiva autorização seja solicitada e obtida ao abrigo do preceituado no Dec-Lei nº 413/93, de 23 de Dezembro, como foi o caso.
11º Efectivamente, por despacho de 3/8/98 de Sua Excelência o Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Justiça, o recorrido foi já autorizado a exercer a advocacia em causa própria nos termos do mencionado Dec-Lei nº 413/93, precisamente porque tal não diminui a independência, a dignidade, a isenção e a imparcialidade que lhe são exigíveis como profissional da Administração Pública.
12º Assim, como bem decidiu a douta sentença do TAC de Lisboa, a profissão de funcionário público do recorrido não é incompatível com o seu exercício não profissional da advocacia exclusivamente em causa própria ou do seu cônjuge, por não ser susceptível de diminuir a independência e a dignidade referidas no artº 68º do EOA.
Termos em que deve ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional, mantendo-se na íntegra a douta sentença de 10/7/2001 do TAC de Lisboa” - cfr. fls. 121-123.
1.3 No seu Parecer o Magistrado do M. Público pronuncia-se pelo provimento do recurso jurisdicional.
1.4 Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO
2 - A MATÉRIA DE FACTO
A matéria de facto pertinente é a dada como provada na sentença recorrida, que aqui consideramos reproduzida, como estabelece o nº 6, do artigo 713º do CPC.
3 - O DIREITO
3.1 O agora Recorrido impugnou contenciosamente junto do TAC de Lisboa, o Acórdão, de 31-3-00, do Conselho Geral da Ordem de Advogados que suspendeu a sua inscrição na dita Ordem.
Tal decisão foi, contudo, anulada pela sentença recorrida “na parte em que torna extensível a incompatibilidade ao exercício de advocacia pelo recorrente em causa própria ou do seu cônjuge.”, neste contexto concedendo provimento ao recurso contencioso - cfr. fls. 100.
3.2 Outra é, porém, a posição defendida pelo Recorrente, que pretende obter a revogação da aludida sentença, por esta ter feito errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 53º, nº 1, 65º a 68º, 76º, nº 1, 83º e 158º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA).
E, isto, fundamentalmente, por se “permitir o exercício da advocacia em causa própria a quem se encontra com a inscrição suspensa e não se encontra autorizado a exercer a advocacia nessas condições pelo respectivo estatuto profissional...” - cfr. as conclusões 1ª a 4ª da sua alegação.
Vejamos se lhe assiste razão.
3.3 Como é sabido, o desempenho de cargos em áreas particularmente sensíveis, como a da justiça, justifica que o Legislador preveja um conjunto de atributos e aptidões que pode vir a condicionar o livre exercício de uma determinada profissão, como é o que sucede com a advocacia.
Assim, é que o estatuto legal da advocacia consagra certo tipo de regras destinadas, precisamente, a acautelar determinados interesses que o Legislador teve por merecedores de tutela, designadamente, os inerentes aos valores de independência e da dignidade da profissão de advogado.
É por isso que, a este nível, a liberdade de escolha de profissão não significa liberdade do seu exercício em concreto, podendo, naturalmente, estar sujeito a limites (neles se inserindo, por exemplo, os relacionados com as incompatibilidades do exercício da advocacia com o desempenho de funções públicas), sendo estes legítimos desde que se possam justificar, designadamente, pela necessidade de preservar os mencionados valores de independência e dignidade da profissão de advogado, bem exemplificativos da função ético-social da advocacia.
No quadro atrás desenhado, as incompatibilidades pertencem ao estatuto da advocacia, estando vocacionadas para a protecção da advocacia.
Nada obsta, por isso, a que o exercício de determinadas profissões, como a advocacia, possa ser regulamentado e, inclusivamente sujeito à inscrição dos que a pretendam exercer.
A inscrição na Ordem condiciona, em regra, o exercício da profissão de advogado.
Ora, o agora Recorrido, tendo a sua inscrição suspensa, não detém a qualidade de advogado, não podendo, por isso, beneficiar de um estatuto profissional (o de Advogado), para, com base nele, pretender exercer a advocacia, ainda que, apenas, em causa própria e nas do seu cônjuge.
É que, convenhamos, ao advogar em causa própria e nas de seu cônjuge o Recorrido não deixaria de estar a exercer a advocacia, não acolhendo o EOA qualquer distinção entre aquilo que se possa pretender qualificar como o “exercício profissional da advocacia” e o mero “exercício pontual da advocacia”, nesta última situação se pretendendo enquadrar o exercício da advocacia em causa própria e do seu cônjuge.
A situação do Recorrido está, por isso, submetida, designadamente, à disciplina dos artigos 68º e 69º, nº 1, alínea i) do EOA, sendo que a legislação atinente com o seu estatuto profissional (enquanto director de serviços de administração e gestão de recursos humanos do quadro do pessoal da Secretaria-Geral do Ministério da Defesa Nacional, para que foi nomeado, em comissão de serviço por despacho do Secretário de Estado da Defesa Nacional - cfr. a alínea xi) da matéria de facto dada como provada na sentença) não contém qualquer norma que habilite o Recorrido (que, como já se viu, tem a sua inscrição suspensa na Ordem dos Advogados) a advogar em causa própria e do seu cônjuge (cfr., em especial, a Lei nº 49/99, de 22-6).
Por outro lado, das disposições combinadas dos artigos 53º, nºs 1 e 5, 155º nºs 1 e 5 e 156º, nº 1, al. d) e nº 2 do EOA decorre que, para o que ao caso dos autos interessa, a suspensão da inscrição equivale à não inscrição na Ordem dos Advogados.
É o que bem se evidencia do nº 1, do artigo 53, que estatui que:
“Só os advogados e advogados estagiários com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados podem, em todo o território nacional e perante qualquer jurisdição, instância, autoridade ou entidade pública ou privada, praticar actos próprios da profissão...”.
A sentença recorrida, partindo do pressuposto de que o Recorrido tinha a sua inscrição na Ordem dos Advogados suspensa, concluiu que, ainda assim, o Recorrente contencioso podia advogar em causa própria e de seu cônjuge, daí que tivesse anulado a “deliberação recorrida na parte em que torna extensível a incompatibilidade ao exercício de advocacia pelo recorrente em causa própria ou do seu cônjuge” - cfr. fls. 93 e 100 -, ao mesmo tempo que se decidiu que “a deliberação em causa, no que toca esta vertente, qual seja a de existe incompatibilidade do recorrente enquanto director de serviços da Administração e Gestão de Recursos Humanos do Quadro de pessoal da Secretaria Geral do Ministério das Defesa Nacional, exerce funções incompatíveis com o exercício da advocacia, nos termos do artigos 68º e 69º, nº 1, al. i) do EOA, não sofre de qualquer vício, mostrando-se conforme aos citados preceitos legais, cuja aplicação aos factos e interpretação nos parece indubitável...” - cfr. fls. 93.
Ou seja, o que foi objecto de invalidação foi “a vertente em que nessa deliberação...se diz ainda que exercida em causa própria ou do seu cônjuge.” - cfr. fls. 93.
Ora, não se pode esquecer que o acto contenciosamente impugnado (o Acórdão do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, de 31-3-00), se consubstanciou na suspensão da inscrição do agora Recorrido como Advogado (cfr. o doc. de fls. 27).
Tal suspensão baseou-se no Parecer, de 22-3-00, a que se reporta o documento de fls. 19-26, onde se propõe a suspensão da inscrição como Advogado do Recorrido, por exercer “funções incompatíveis com o exercício da advocacia, ainda que exercida em causa própria ou do seu cônjuge, nos termos dos artºs 68º e 69º, nº 1 al. i) do E.O.A...”.
A sentença do TAC apenas anulou a dita decisão do Conselho Geral da Ordem dos Advogados na parte já antes explicitada.
Vê-se, por isso, que à luz do decidido na sentença do Tribunal “a quo”, ficou intocada a outra “vertente” da pronúncia contida no aludido Acórdão do C.Geral da O.A (cfr. fls. 93), neste específico enquadramento não se tendo invalidado a decretada suspensão de inscrição, irrelevando, a este nível, o decidido no meio processual acessório de suspensão de eficácia a que se refere o Recorrido nas suas contra-alegações, já que a decisão de suspensão não eliminou da ordem jurídica o já mencionado Acórdão do C. Geral, na vertente atrás referenciada, tudo se tendo situado ao nível da eficácia do questionado Acórdão.
Só que, então, face ao assim decidido, razão assiste ao Recorrente, na medida em que, ao permitir o exercício da advocacia a quem se encontra com a inscrição suspensa, a sentença inobservou o disposto no artigo 53º, nº 1 e 69º, nº alínea i), do EOA.
3.4 Procedem, assim, as conclusões da alegação do Recorrente.
4 - DECISÃO
Nestes termos, acordam em conceder provimento ao recurso jurisdicional, revogando a sentença recorrida e negando provimento ao recurso contencioso.
Custas pelo Recorrente contencioso, fixando-se as devidas no TAC em 150 € (taxa de justiça) e 75 € (procuradoria) e em 200 € (taxa de justiça) e100 € (procuradoria) as devidas neste STA.
Lisboa, 28/2/2002
Santos Botelho - Relator
Macedo de Almeida
Alves Barata