Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0655/07
Data do Acordão:12/05/2007
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:FREITAS CARVALHO
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
PRESUNÇÃO DE CULPA
SINALIZAÇÃO DA VIA PÚBLICA
SEMÁFORO
Sumário:I - É aplicável à responsabilidade civil extracontratual das autarquias locais, por factos ilícitos culposos praticados no exercício da gestão pública, a presunção de culpa estabelecida no artigo 493, nº 1, do Código Civil, competindo ao Réu a prova de que não teve qualquer culpa na produção do acidente gerador dos danos, bem como de que tomou todas as providências necessárias para impedir o acidente ou de que este se deveu a caso fortuito ou de força maior, determinante, por si só, do evento danoso.
II – Tal ónus não se apresenta como excessivo ou desproporcionado para o Réu uma vez que se trata da prova de factos positivos, sendo que o cumprimento do dever de fiscalizar o estado e funcionamento da coisa constitui facto inerente à organização e desenvolvimento da actividade do ente público, cuja demonstração em juízo está ao seu alcance, em regra por meios probatórios extraídos dos seus próprios serviços
III - Sendo o acidente causado por deficiente funcionamento da sinalização luminosa existente no local em que se registou, a presunção de culpa só ficaria ilidida com a prova do adequado cumprimento por parte da ré, relativamente a tal sinalização luminosa, de todas as obrigações de manutenção e vigilância, de forma a assegurar o seu regular funcionamento, ou pela prova de o acidente ser imputável ao próprio lesado ou a terceiro concretamente identificado, ou causado por caso fortuito ou de força maior.
Nº Convencional:JSTA0008570
Nº do Documento:SA1200712050655
Recorrente:EP - ESTRADAS DE PORTUGAL, EPE
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso do Supremo Tribunal Administrativo
EP- Estradas de Portugal, EPE, recorre da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que, julgando procedente a acção de responsabilidade civil extracontratual proposta por A…, identificado nos autos, condenou o recorrente no pagamento da indemnização de € 4.518,56, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até efectivo pagamento .
I. O recorrente formula as conclusões seguintes:
1. O n.° 1, do artigo 493.° do CC é inaplicável ao regime legal da responsabilidade civil da administração por actos de gestão pública;
2. A responsabilidade civil da administração por actos de gestão pública é regulada substantivamente pelo Decreto-Lei n.° 48051, de 21 de Novembro de 1967, o qual não contem qualquer remissão para o n.° 1, do artigo 493.° do CC;
3. A inversão do ónus da prova, atentas as particulares circunstâncias da intervenção réu, seria excessiva e desproporcionada;
4. O disposto no artigo 8.° do Decreto-Lei n.° 48051, de 21 de Novembro de 1967 não é aplicável ao caso dos autos porquanto não está aqui em causa uma coisa excepcionalmente perigosa;
5. Os factos provados não permitem concluir que tenha havido culpa do réu na ocorrência da avaria do semáforo;
6.A decisão recorrida viola o disposto nos artigos 487.°, 493.°, n.° 1 e 562.° do Código Civil e o artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 48051, de 21 de Novembro de 1967.
Contra alegou o recorrido formulando as seguintes conclusões :
1- A douta sentença sob censura subsume, de forma primorosa, os factos ao direito, sendo de um rigor inabalável.
II- O regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e das demais pessoas colectivas públicas por actos de gestão pública, que é o que está em causa nos autos, consta do Dec. Lei n° 48051, de 27.11.67, cujo art° 2° n° 1 dispõe: “O estado e demais pessoas colectivas publicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger interesses, resultantes de actos ilícitos, culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício.”
III- A responsabilidade civil das pessoas colectivas públicas por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes no exercício das suas funções ou por causa desse exercício corresponde ao conceito civilístico da responsabilidade civil extracontratual regulada no art° 483° e sg. do cód. Civil.
IV- Para que se verifique tal responsabilidade é necessário que se preencham os requisitos ou pressupostos clássicos da obrigação de indemnizar no âmbito do direito civil: facto voluntário, ilicitude, culpa, dano, nexo de causalidade entre facto e dano.
V- A apreciação desses pressupostos passa necessariamente pelo conceito civilista da responsabilidade civil extracontratual.
VI- O próprio Dec. Lei n° 48051, de 27.11.67, cujo art°4° no 1 dispõe: “A culpa dos titulares dos órgãos ou dos agente é apreciada nos termos do artigo 487° do Código Civil”
VII- Conforme doutamente refere a sentença, A existência de culpa no âmbito da responsabilidade ora em análise (...) traduz a censura dirigida ao agente por não ter adoptado a conduta exigível, não ao homem médio, mas sim ao funcionário competente, zeloso, cumpridor de técnicas, dos regulamentos e das leis - cfr. Ac. do STA de 20.10.87 in BMJ, 370 -392.
VIII- “A presunção do art.° 493°, n° 1 do Cód. Civil é aplicável à responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos, atento o carácter unitário do regime de responsabilidade civil que a lei pretendeu introduzir com o Cód. Civil de 1967 e o Dec. Lei 48 051, unidade que também está no art° 22 da Constituição da República Portuguesa.” - Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 03/03/1998”
IX- no caso em apreço nos presentes autos, está aqui em causa um dano causado por uma coisa imóvel - a Estrada Nacional - em poder da ré, sujeita à vigilância desta, no desempenho das suas funções públicas, não sendo a deficiência ou falta de sinalização e iluminação devida a terceiros, pelo que há que concluir que é imputável aquele instituto, a título de mera culpa, a responsabilidade, tanto mais quanto é certo que sobre ele recai uma presunção de culpa, nos termos do art° 493° no 1 do Cód. Civil.
X- Tão pouco é relevante a afirmação de que a recorrente, particularmente em situações como a dos autos, em termos probatórios, se encontra numa situação de indefesa e de clara desvantagem face ao autor.
XI- Com efeito, como de forma eloquente, se referiu na douta sentença, é jurisprudência comum do S.T.A. que a responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos por facto ilícito de gestão pública é aplicável a presunção de culpa prevista no art° 493° n° 1 do Cód.
XII- A douta sentença sob censura não violou qualquer uma das disposições legais invocadas pelo recorrente, na parte em que é posta em causa por estes;
II. A decisão recorrida considerou assente a seguinte matéria de facto:
A) No Lugar de São Bento, na freguesia de Balugães, no Concelho de Barcelos, a E.N. n° 308 cruza-se com a E.N. n° 204.
B) Esse cruzamento tem visibilidade reduzida e encontra-se regulado por sinalização luminosa, vulgo semáforos.
C) Na madrugada de 15 de Agosto de 2000, encontrava-se a funcionar a iluminação dos semáforos referidos em B) virados para o sentido de marcha dos veículos que seguiam pela E.N. n° 204, no sentido de marcha Ponte de Lima - Barcelos.
D) O Autor, na madrugada do dia 15 de Agosto de 2000, pela 01h50 m, conduzia o seu veículo automóvel, de matrícula “…”, de marca …, modelo …, pela Estrada Nacional n° 308, no sentido Viana do Castelo! Vila Verde.
E) Fazia-o pela sua hemi-faixa direita de rodagem.
F) Ao aproximar-se do cruzamento referido em A), reparou que os semáforos que estavam à sua frente e no seu sentido de marcha não funcionavam, não estando nenhuma luz ligada.
G) O Autor, apercebendo-se do não funcionamento dos semáforos, abrandou a marcha do seu veiculo.
H) Já se encontrava no meio do cruzamento quando foi embatido pelo veículo “…”.
1) Que surgiu da sua esquerda, vindo da Estrada Nacional n° 204, circulando no sentido de marcha que liga Ponte de Lima a Barcelos.
J) Estava ligada a luz verde para o “…”, quando este passou o cruzamento e no momento do embate.
L) O piso estava seco.
M) Mercê do embate, o “…” sofreu estragos na parte frontal e lateral esquerda, em toda a sua estrutura frontal.
N) E sofreu estragos ao nível de chaparia, pintura, sistema eléctrico e mecânica em geral.
O) O “…” valia cerca de 3.000 Euros.
P) A sua reparação ultrapassa esse valor.
Q) O “…” encontra-se por reparar.
R) O Autor ficou privado de poder utilizar esse veículo desde a data do embate até hoje.
S) Em consequência do embate, o Autor teve de ser transportado de ambulância ao Hospital de ….
T) Mercê do acidente, o A., além de várias escoriações, sofreu fractura da clavícula esquerda.
U) E esteve em tratamento ambulatório durante cerca de um dia.
V) Foi sujeito a tratamento conservador, tendo recuperado das lesões.
X) O Autor sofreu dores.
Z) O Autor à data do embate era um jovem.
AA) O Autor despendeu seis euros e setenta e três cêntimos, no atendimento no serviço de urgência do Hospital de Barcelos.
AB) E gastou onze euros e oitenta e três cêntimos num medicamento para o período de convalescença.
AC) Eram frequentes as faltas de funcionamento de semáforos naquele cruzamento da E.N. n° 308 com a E.N. 204, sendo causadores de imensos acidentes automóveis naquele cruzamento.
III. A sentença recorrida, considerando verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas públicas por actos ilícitos de gestão pública (artigo 2º, n.º 1, do DL n.º 48.051, de 21-11-1967) - designadamente a culpa já que o recorrente não conseguiu elidir a presunção estabelecida no artigo 493, n.º 1, do C. Civil - julgou procedente a acção proposta, condenando o Réu, aqui recorrente, a pagar ao Autor o montante peticionado acrescido dos respectivos juros de mora.
Conforme decorre das conclusões da respectiva alegação, o recorrente apenas questiona a aplicabilidade da presunção de culpa estabelecida no n.° 1, do artigo 493.° do C.Civil ao regime legal da responsabilidade civil da administração por actos de gestão pública, regulado pelo DL n.º 48.051, pelo que, não se tendo provado a culpa do Réu no mau funcionamento do semáforo na altura do acidente do qual resultaram os danos peticionados pelo Autor, não se pode julgar verificado um dos pressupostos da responsabilidade civil – a culpa -, razão por que a decisão recorrida ao condenar o recorrente violou os artigos 487.°, 493.°, n.° 1 e 562.° do Código Civil e o artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 48051, de 21 de Novembro de 1967, incorrendo em erro de julgamento.
Não lhe assiste, razão.
Constitui jurisprudência pacífica que os pressupostos da responsabilidade extracontratual das pessoas colectivas públicas por actos ilícitos de gestão pública se reconduzem, no essencial, aos da responsabilidade civil por facto ilícito: o facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Tem este Supremo Tribunal Administrativo entendido que o DL. 48.051, de 21-11-67 não contém uma regulamentação fechada e acabada da matéria, que deve ser analisada nos moldes traçados no Código Civil, para o qual aquele diploma remete – cfr. artigo 4º, quanto à culpa . É igualmente pacífico, com excepção dos arestos citados pelo recorrente (aliás, o de 16-05-95, Proc.º n.º 36.463, foi revogado pelo acórdão do Pleno de 29-09-98, in AP DR 12-4-2001, 709), que a presunção de culpa estabelecida no artigo 493, do C. Civil é aplicável ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas – cfr. entre outros, os acórdãos do Pleno de 29-04-98, Proc.º n.º 36463; de 27-04-99, Proc.º n.º 41712; de 25-10-2000, Proc.º n.º 37510; de 20-03-2002, Proc.º n.º 45831 e de 3-10-2002, Proc.º n.º 45160
Nem se diga, como o recorrente, que a aplicação daquela presunção se apresenta como excessivo ou desproporcionado para o Réu.
Ao contrário, como se demonstra no acórdão deste Tribunal citado pela decisão recorrida – acórdão de 16-05-1996, Proc.º n.º 36075, in AP DR 23-10-98, 3697 –, é para o lesado que “a tarefa de demonstração do incumprimento culposo dos deveres de organização e de actuação necessários para prevenir o dano por coisas se apresenta como excessivamente onerosa”, pois ” trata-se de demonstrar factos negativos - a inobservância do dever de adequada, continuada e sistemática fiscalização técnica - que, por via de regra, não estão numa relação de simultaneidade com o evento e são relativos ao modo de organização ou disciplina de acção dos serviços e, portanto, sem a inerente visibilidade e acessibilidade de prova para o particular lesado. Por tudo isto, o lesado teria muita dificuldade em identificar e provar em juízo a conduta omissiva.”
Ao invés, prossegue o dito aresto, o regime da presunção de culpa nada tem de violento, injusto, ou desrazoavelmente oneroso para os entes públicos, uma vez que o serviço público obrigado a vigilância pode ilidir a presunção demonstrando quer a intercorrência de caso fortuito ou de força maior, quer a adopção das providências para uma adequada, continuada e sistemática fiscalização do estado e comportamento da coisa em ordem a evitar o evento danoso. Trata-se de factos positivos, estes últimos inerentes à organização e desenvolvimento da actividade do ente público, cuja demonstração em juízo está ao seu alcance em regra por meios probatórios extraídos dos seus próprios serviços”.
Dispõe o artigo 493, n.º 1, do C. Civil, que, quem tiver em seu poder uma coisa imóvel, com o dever de a vigiar, responde pelos danos que ela causar, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
No caso em apreço, provado que foi que, no momento em que o Autor que circulava, ao volante do seu automóvel, na estrada nacional n.º 308 , no sentido Viana do Castelo / Vila Verde, na parte em que esta via cruza com a estada nacional n.º 204, os semáforos colocados na EN 308, não estavam a funcionar ao passo que para quem circulava na EN 204 os mesmos se apresentavam com o sinal verde, o que provocou o embate do veiculo do Autor com o de um terceiro que circulava nesta última estrada, do qual resultaram os danos cuja indemnização aquele peticiona na presente acção, uma vez que o Réu, aqui recorrente, nenhuma prova fez que cumprira o seu dever de vigilância do funcionamentos dos semáforos em questão ou que, aquela avaria se devera a circunstâncias anormais e imprevisíveis, é que a sentença impugnada atribuiu ao réu a responsabilidade pelos ocorridos danos, nos termos do mencionado art. 493º, n.º 1, e em conjugação com o estatuído no DL n.º 48.051, de 21/11/67- – cfr. neste sentido os acordãos deste STA de 23-05-2000, de 15-01-2003, de 9-03-2006 nos Proc.ºs n.º 46008, 1253/02 e 69/05, respectivamente
Neste último acórdão, tratando de situação idêntica à dos presentes autos, escreve-se:
“ … dada a presunção de culpa da Ré recorrente, à Autora recorrida incumbia, apenas, o ónus da prova da base da presunção, ou seja, o facto conhecido de o acidente ter sido causado pelo deficiente funcionamento da sinalização luminosa, cuja operacionalidade incumbia à Ré, ficando a Autora dispensada, assim, da prova da culpa concreta ou de serviço, por parte da Ré.
Sobre esta última impendia o ónus da prova de que haviam sido adoptadas todas as providências que, segundo a experiência comum e as regras técnicas aplicáveis, fossem susceptíveis de afastar o perigo, prevenindo o dano, que se não teria ficado a dever a culpa sua, ou que se teria igualmente produzido, ainda que não existisse culpa da sua parte.
Assim, tendo o Autor feito a prova que lhe competia – cfr. pontos A) a J) e AC) -, sendo que a Ré recorrente não fez prova, como lhe competia, de factos que ilidissem a presunção de culpa que sobre ela recaía, conclui-se, tal como a decisão recorrida, pela verificação da sua culpa na produção do evento danoso e, verificados que estão os restantes pressupostos, pela responsabilidade civil do recorrente pelo danos sofridos pelo Autor, aqui recorrido .
Improcede, deste modo toda a alegação do recorrente.
IV. Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Sem custas.
Lisboa, 5 de Dezembro de 2007. - Freitas Carvalho (relator) – Santos BotelhoRui Botelho.