Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01065/17.1BEPRT
Data do Acordão:02/19/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NEVES LEITÃO
Descritores:IRC
REGIME ESPECIAL DE TRIBUTAÇÃO
SOCIEDADE
TRIBUTAÇÃO AUTONOMA
Sumário:I - O acórdão do Tribunal Constitucional nº 395/2017, 12 julho 2017 julgou inconstitucional, por violação do princípio da retroactividade dos impostos, consagrado no artigo 103º, nº 3 da Constituição, o segmento normativo do artigo 135º da Lei nº 7-A/2016, de 30 março, que atribui natureza interpretativa ao artigo 133º do mesmo diploma, na parte em que vem fixar o sentido do artigo 88º, nº 14, do CIRC, nos termos do nº 20 desse artigo.
II - Não obstante o juízo de inconstitucionalidade (recusando uma interpretação legislativa do art.88º nº 14 CIRC por via da norma interpretativa constante do art.135º Lei nº 7-A/2016,30 março), o Supremo Tribunal Administrativo não está impedido de efectuar uma interpretação jurisdicional da norma interpretanda, com o mesmo sentido fixado pelo art.88º nº 20 CIRC, convocando os princípios hermenêuticos aplicáveis.
III - O teor literal do art.88º nº 14 CIRC permite, por mera interpretação declarativa atribuir a qualificação de sujeito passivo à sociedade dominante dos grupos submetidos ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS), por subsunção ao conceito legal de sujeito passivo e em virtude da sua qualidade de responsável, em primeira linha, pelo pagamento do IRC do grupo (art.18º nº 3 LGT; art.115º CIRC)
IV - Em consequência, é relevante para o agravamento das taxas de tributação autónoma o prejuízo fiscal do grupo declarado pela sociedade dominante, e não o prejuízo fiscal de cada uma das sociedade integrantes do grupo que realizaram as despesas sujeitas a tributação autónoma
Nº Convencional:JSTA000P25625
Nº do Documento:SA22020021901065/17
Data de Entrada:01/09/2019
Recorrente:A............, SA.
Recorrido 1:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: 1. RELATÓRIO
1.1. A…………, S.A. interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto em 10 julho 2018 que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra decisão de indeferimento de reclamação graciosa tendo por objecto autoliquidação de IRC (exercício de 2015) do qual resultou € 55 752,39 a reembolsar

1.2. A recorrente apresentou alegações que sintetizou com a formulação das seguintes conclusões:
i. A solução jurídica propugnada pelo Tribunal a quo acarreta, salvo o devido respeito, a violação dos princípios da legalidade e tipicidade fiscais, - arts. 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, i) da CRP – na medida em que o artigo 88.º n.º 14 do CIRC, vigente no exercício de 2015, foi interpretado no sentido que apenas lhe veio a ser ulteriormente conferido, no exercício de 2016, pelo n.º 20 do artigo 88.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30.03.
ii. Só através da Lei n.º 7-A/2016, de 30.03, veio o legislador a aditar ao artigo 88.º n.º 1 do CIRC o seguinte: «20 - Para efeitos do disposto no n.º 14, quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades estabelecido no artigo 69.º, é considerado o prejuízo fiscal apurado nos termos do artigo 70.º. – com (suposta) natureza interpretativa.
iii. Através do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 395/2017, de 12.07 - aqui dado como reproduzido - foi julgado inconstitucional por violação da proibição da retroatividade fiscal, consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da CRP, o segmento normativo do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, que atribui natureza interpretativa ao artigo 133.º do mesmo diploma, na parte em que vem fixar o sentido do artigo 88.º, n.º 14, do CIRC, nos termos do n.º 20 desse artigo.
iv. Vale isto por dizer que, no caso dos autos - e pese embora directamente confrontada com a existência de falsa lei interpretativa - com inerente violação dos princípios da segurança jurídica e irretroactividade fiscal - o Tribunal a quo aplicou uma norma que viola a lei fundamental, o que determina a anulação da sentença.
v. Sem prejuízo, além de estar em causa uma tributação materialmente distinta do IRC, a consideração da tributação autónoma para efeitos do RETGS carece totalmente de sentido - quer literalmente, quer em substância.
vi. O n.º 14 do artigo 88.º do CIRC refere-se apenas "aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período de tributação", nada estabelecendo, especificamente, quanto às empresas enquadradas no RETGS - ao invés do que expressamente sucede noutros pontos da lei fiscal23 (23 Cfr. Artigo 14.º n.º 8 da Lei n.º 2/2007; artigos 87.º-A, 104.º-A e 105.º-A CIRC.).
vii. Como os lucros tributáveis positivos ou negativos e a matéria colectável positiva ou negativa em nada afectam a tributação autónoma, a agregação das tributações autónomas das empresas que compõem o Grupo em nada difere das somas das suas tributações autónomas individuais.
viii. Quando a lei vigente no exercício de 2015 estabelece o agravamento das tributações autónomas em 10% quando os sujeitos passivos apresentem prejuízo fiscal, não pode deixar de ter por referência as despesas concretas sobre as quais incidem aquelas tributações autónomas.
ix. De igual modo, e na medida em que se refere a despesas concretas, a lei tampouco pode deixar de ter por referência, portanto, as empresas concretas que realizaram essas mesmas despesas.
x. Dentro desta evidente lógica, inerente à técnica legislativa e fiscal subjacente à tributação autónoma, também o critério da existência de prejuízos fiscais é igualmente aplicável, obviamente, a cada uma das empresas que realiza a despesa autonomamente tributada.
xi. O legislador criou as taxas de tributação autónoma com o intuito de dissuadir as sociedades de apresentar determinado tipo de despesas, e de forma a evitar, igualmente, que os sujeitos passivos utilizassem determinadas despesas para proceder à distribuição camuflada de lucros, bem como para evitar a fraude e a evasão fiscal.
xii. Paralelamente, por exemplo, também os pagamentos especiais por conta foram criados, pelo Decreto-Lei n.º 44/98, de 03.03, com idêntica justificação do combate «às práticas evasivas de ocultação de rendimentos ou de empolamento de custos», sendo que, no RETGS, o pagamento especial por conta é calculado e pago por cada uma das empresas que compõem o Grupo e por referência aos seus resultados individuais24 (24 Cfr. artigo 106.º n.º 13 do CIRC.).
xiii. Caso o propósito do legislador - ao proceder ao agravamento da taxa de tributação autónoma - fosse considerar os prejuízos fiscais do grupo, em detrimento dos prejuízos fiscais de cada uma das empresas onde são realizadas as despesas que se pretendem tributar, constata-se que falharia por completo o desígnio subjacente a esta técnica tributária.
xiv. É que, como o resultado do grupo depende da soma aritmética de resultados positivos e negativos, não existiria qualquer indicador fiável para o destinatário da norma aferir o pretendido agravamento da taxa de tributação autónoma, gorando-se também o efeito dissuasor e extrafiscal da norma - e continuando cada uma das empresas a incorrer nas despesas que o legislador pretendera desincentivar pela via fiscal...
xv. Com a interpretação da AT, uma empresa que venha a integrar o grupo fiscal já no decurso do respectivo período económico25 (25 Cfr. Art. 69.º n.º 7 do CIRC) veria agravadas, a posteriori, as tributações autónomas relativas às despesas anteriormente efectuadas, por força do apuramento de um prejuízo fiscal do grupo (!).
xvi. Por outro lado, se é certo que não podem integrar o grupo fiscal, em determinadas circunstâncias, empresas que tenham apurado prejuízos fiscais, o que dizer da integração de empresas com resultado positivo que realizaram despesas sujeitas a tributação e que, pela sua integração num grupo fiscal com prejuízos fiscais, passam a ser sujeitas a agravamento?
xvii. A norma em apreço, o artigo 88.º n.º 14 do CIRC, na redacção aplicável ao exercício de 2015, estabelece o agravamento das taxas de tributação autónoma para os sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período de tributação a que respeitam as despesas em causa.
xviii. Quando a lei vigente fala em "sujeito passivo" refere-se à entidade que realiza as despesas tributada autonomamente e, portanto, no caso do RETGS, considera os prejuízos fiscais individuais da empresa que realizou a despesa tributada autonomamente.
xix. A "especialidade" do RETGS restringe-se à determinação do lucro tributável e dos prejuízos fiscais e não à tributação autónoma de despesas26 (26 Cfr. Artigos 70.º e 71.º do CIRC.) - peIo que, ao invés do pretendido peIa AT, mormente no instrumento administrativo interno referido - Informação n.º 405/2012 da DSIRC - no RETGS, o agravamento das taxas de tributação autónoma tem em consideração a situação individual (prejuízo) de cada uma das empresas que o compõem.
xx. Em matéria fiscal é proibida a integração de lacunas por recurso à analogia27 (27 Cfr. art. 11.º n.º 4 da LGT.) - Sendo que o artigo 88.º n.º 14 do CIRC é uma norma de incidência tributária, na medida em estabelece critérios de agravamento da tributação autónoma, estando também em causa o agravamento da própria taxa aplicável.
xxi. No caso em apreço, através da interpretação que faz da norma - com sustentação em "doutrina administrativa" interna -, a AT pretende introduzir critérios que não constam da lei, quanto ao RETGS - e que são, aliás, frontalmente contrários à sua letra e ao seu espírito.
xxii. O acto tributário impugnado está, assim, inquinado de vício de violação de lei, gerador da sua anulabilidade, e também inconstitucionalidade por violar o disposto nos arts. 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, i) da CRP.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deve conceder-se provimento ao presente recurso, com anulação da sentença recorrida e sua substituição por uma decisão que julgue pela procedência da impugnação, o que se deverá fazer por obediência à Lei e por imperativo de JUSTIÇA

1.3. A Fazenda Pública não apresentou contra-alegações.

1.4. O Ministério Público emitiu parecer no sentido do provimento do recurso e da devolução do processo ao tribunal recorrido para proferimento de nova decisão (processo físico fls.117/119)

1.5. Após os vistos dos juízes conselheiros adjuntos cumpre apreciar e decidir em conferência

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DE FACTO
A sentença recorrida julgou provados os seguintes factos:
a) A impugnante é uma sociedade comercial anónima, tributada segundo o Regime de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS), assumindo a posição de sociedade dominante do grupo constituído pela sociedade B………… - SGPS; SA; C…………, Lda., D………… – SGPS, SA; E…………, SA; F…………, SA; G…………, SA e H…………, SA (cf. fls. 32 do processo administrativo apenso aos autos, doravante, apenas, PA).---
b) Em 23/05/2016 a impugnante submeteu, por via electrónica, a declaração e rendimentos Modelo 22, relativa a IRC do ano de 2015, do grupo do qual é dominante, apresentando um prejuízo fiscal no montante de €80.764,03 (cf. fls. 19/29 do PA).---
c) Em resultado dos valores declarados na declaração referida em b) foi emitida a liquidação nº 2016 2500449237, com valor a reembolsar no montante de €55.753,39 (cf. fls. 16 do PA). ---
d) Por não se conformar com a liquidação referida em c), a impugnante apresentou via correio registado em 08/11/2016, reclamação graciosa da autoliquidação (cf. fls. 2/14 do PA). ---
e) Sobre a reclamação referida em d) foi elaborada informação cujo teor se considera reproduzido (cf.fls.47/48 do processo físico)
f) O projecto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa foi enviado à impugnante para efeitos de audição prévia através do ofício nº 2016S000221676, datado de 12/12/2016, sem que a impugnante tenha exercido aquele direito (cf. fls. 46v/49 do processo físico).---
g) A reclamação graciosa foi indeferida por despacho de 30/01/2017, comunicado à impugnante através do ofício nº 2017S00033227, datado de 30/01/2017, com o seguinte teor “Visto o que vem informado, concordo, pelo que converto em definitivo no sentido do INDEFERIMENTO, com os fundamentos já notificados em sede de audição e que aqui dou por transcritos…” (cf. fls. 44v/45v do processo físico). ---
h) A presente impugnação foi apresentada em 03/05/2017 (cf. fls. 2 dos autos).

2.2. DE DIREITO
2.2.1. Questão decidenda: determinação dos prejuízos fiscais relevantes para o agravamento das tributações autónomas no âmbito do regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS) no exercício do ano 2015: os do grupo ou os de cada uma das sociedades integrantes do grupo (art.88º nºs 14 e 20 CIRC)

2.2.2. Apreciação jurídica
Com interesse para a apreciação da questão enunciada transcrevem-se as seguintes normas:
Art.70º nº 1 CIRC
Relativamente a cada um dos períodos de tributação abrangidos pela aplicação do regime especial, o lucro tributável do grupo é calculado pela sociedade dominante, através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de cada uma das sociedade pertencentes ao grupo, corrigido, sendo caso disso, do efeito da aplicação da opção prevista no nº 5 do art.67º.
Art.88º nº 14 CIRC (aditado pela Lei nº 2/2014,16 janeiro aplicável aos períodos de tributação que se iniciem em ou após 1 janeiro 2014)
As taxas de tributação autónoma previstas no presente artigo são elevadas em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período a que respeitam quaisquer dos factos tributários referidos nos números anteriores relacionados com o exercício de uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola não isenta de IRC
Art.88º nº 20 CIRC (aditado pelo art.133º da Lei nº 7-A/2016, 30 de Março, com natureza interpretativa, segundo o art.135º da mencionada Lei)
Para efeitos do disposto no nº 14, quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades estabelecido no artigo 69º, é considerado o prejuízo fiscal apurado nos termos do art.70º

A sentença recorrida, acolheu por remissão, a fundamentação da decisão arbitral proferida em 9 maio 2016 processo 685/2015-T (da qual transcreve extenso excerto), onde se conclui:
No caso em apreço, como se referiu já, o teor literal do n.º 14 do artigo 88.º do CIRC permite, por mera interpretação declarativa, que tenha em mente o conceito de sujeito passivo alargado que resulta dos artigos 18.º, n.º 3, da LGT 115.º do CIRC, atribuir a qualificação de sujeito passivo às sociedades dominantes dos grupos abrangidos pelo RETGS, pelo que a consideração dos prejuízos do grupo como facto determinante do agravamento da tributação autónoma tem de considerar-se como uma interpretação com que os contribuintes poderiam e deveriam contar anteriormente.
Por isso, a interpretação autêntica efectuada pelo n.º 20 do artigo 88.º do CIRC, na redacção da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, não ofende a proibição constitucional de normas fiscais retroactivas
Apreciando recurso interposto de decisão arbitral proferida em 21 setembro 2016 (onde se apreciou questão jurídica idêntica), o acórdão do Tribunal Constitucional nº 395/2017 proferido em 12 julho 2017 decidiu:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da retroactividade dos impostos, consagrada no artigo 103, nº 3 da Constituição, o segmento normativo do artigo 135º da Lei nº 7-A/2016,de 30 de março, que atribui natureza interpretativa ao artigo 133º do mesmo diploma, na parte em que vem fixar o sentido do artigo 88º, nº 14,do CIRC, nos termos do nº 20 desse artigo
b) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 88º, nº 14,do CIRC, interpretada no sentido de que o agravamento de dez pontos percentuais se aplica no caso de sociedades sujeitas ao RETGS, em que a sociedade tributada não apresente prejuízo fiscal no período a que as tributações respeitem, mas o apresente o grupo de sociedades que a mesma integra

Este juízo de inconstitucionalidade da norma interpretativa foi posteriormente reiterado no acórdão nº 267/2017, 31 maio 2017 e no acórdão nº 107/2018, 22 fevereiro 2018.
Como contributo para a compreensão do juízo de inconstitucionalidade formulado transcrevemos excerto da fundamentação do acórdão nº 395/2017, 12 julho 2017, onde se discorre sobre a distinção entre interpretação legislativa e interpretação judicial nos seguintes termos:
As interpretações legislativas, como vimos, têm a natureza própria do poder de que emanam: não se destinam a dizer ou descobrir o direito vertido na lei interpretada, atividade que pressupõe uma competência jurisdicional, mas a privilegiar o sentido que o legislador entende politicamente mais vantajoso. Sem dúvida que os cidadãos destinatários das leis, designadamente de leis com uma vocação ablativa, não devem ter qualquer expectativa de que estas sejam, ou possam vir a ser, interpretadas no sentido que lhes é mais favorável; não existe, nem sequer nos domínios penal ou fiscal, um qualquer «princípio da interpretação 21 setembro 2016 mais favorável» ao cidadão. Mas têm a expectativa legítima, na qualidade de destinatários da lei, de formarem uma convicção sobre o direito nela vertido e de agirem com base nessa convicção jurídica — assim como, na eventualidade de se verificar um litígio, de recorrerem aos tribunais para que estes apreciem, no uso da autoridade jurisdicional que exclusivamente lhes cabe, e no âmbito de um processo de partes com igualdade de armas, o mérito jurídico do seu ponto de vista no caso concreto. Por outras palavras, os destinatários das leis têm a expectativa legítima de que estas sejam objeto de uma interpretação jurídica, porque é nesses exatos termos — enquanto sujeitos de direito — que aquelas se lhes dirigem. Ao consagrarem um sentido por razões de ordem política — constitutivas e não declarativas de direito —, as leis interpretativas frustram essa expectativa legítima dos cidadãos na juridicidade, adversariabilidade e justiciabilidade da sua relação com a lei.
(…)
Em termos gerais, pois, e ao contrário do que se afirma na decisão recorrida, as leis interpretativas devem ter-se por abrangidas pela proibição constitucional da retroatividade em matéria fiscal. Só assim não será naqueles casos em que, tendo os tribunais sido chamados a pronunciarem-se sobre a interpretação a dar a leis ambíguas e controvertidas, se tenha a propósito delas estabelecido uma controvérsia jurisprudencial. Se os tribunais, aos quais cabe a autoridade de dizer o direito ─ através de decisões juridicamente fundamentadas e no termo de um processo de partes com igualdade de armas -, refletem e alimentam a controvérsia propiciada pela ambiguidade da lei, é inevitável concluir que a questão jurídica é, no momento presente, incerta ou insanável; os destinatários desta não têm, nessas circunstâncias, qualquer razão para formarem expectativas na prevalência de uma das posições compreendidas nos «quadros da controvérsia», e não podem, por essa mesma razão, invocar a frustração das suas expectativas legítimas contra a decisão do legislador de interpretar a lei num dos sentidos já acolhidos em decisões judiciais. O mesmo se diga, por maioria de razão, nos casos em que a jurisprudência dominante for no sentido da solução consagrada pela lei interpretativa. Resta saber qual era, até à entrada em vigor da Lei do Orçamento do Estado de 2016, o estado da jurisprudência sobre a questão de interpretação que se colocou nos presentes autos.
No acórdão recorrido afirma-se (fls. 755) que «tem de se admitir a falta de clareza da solução [legal], como fica demonstrado com a jurisprudência arbitral divergente sobre esta matéria, designadamente os acórdãos de 01-09-2014, proferido no processo n.º 239/2014-T e de 24-04-2015, proferido no processo n.º 659/2014-T.» Há também uma referência (na nota de rodapé a fls. 756) a outro aresto arbitral de 12-02-2016, proferido no processo n.º 447/2015-T, que interpretou o artigo 88.º, n.º 14, do CIRC, no sentido que veio a ser consagrado pelo legislador orçamental no n.º 20 do mesmo artigo. Todavia, o Tribunal a quo considerou-o «não significativo» para efeitos de determinar a orientação da jurisprudência anterior à alteração legislativa, na medida em que «a tomada de posição que é efetuada neste acórdão arbitral é feita com conhecimento de que constava da proposta de Orçamento para 2016 futura norma do n.º 14 do artigo 88.º e a atribuição da natureza interpretativa, o que revela que não se chegou à interpretação apenas com base na legislação anterior…».
A circunstância de a jurisprudência se encontrar dividida depõe a favor do entendimento de que os contribuintes não podiam excluir a interpretação que veio a ser consagrada pelo legislador. Porém, para que se verifique uma controvérsia jurisprudencial, não basta que recaiam sobre uma determinada questão de interpretação decisões divergentes; é necessário que exista um corpo desenvolvido de pronunciamentos judiciais (ou arbitrais) no seio do qual se estabeleceram correntes opostas e não reconciliadas dentro da ordem jurisdicional a que respeitam.
Só na base deste lastro jurisprudencial estatisticamente significativo se pode dar por assegurada a evidência de que a questão jurídica é incerta ou insanável, pelo menos no momento presente. Ora, tal pressuposto não se pode dar como verificado no que diz respeito à questão de interpretação colocada nos presentes autos, pela circunstância de sobre ela terem incidido apenas duas decisões jurisdicionais.
Por outro lado, não se pode atribuir qualquer relevância ao facto, invocado na decisão recorrida como «decisivo para concluir que os contribuintes deviam contar com a interpretação que veio a ser consagrada na norma interpretativa», e referido em termos idênticos nas alegações da recorrida, de que existe «uma Informação Vinculativa proferida pela Autoridade Administrativa e Aduaneira datada de 30-03-2012, no sentido que esta defende no presente processo» (fls. 756-757). Embora as informações vinculativas da Autoridade Tributária e Aduaneira sejam publicadas, nem elas têm força de lei, nem correspondem senão à interpretação da lei feita por um dos seus destinatários — nem mais, nem menos, legítima do que a de qualquer outro; o mérito jurídico dessa interpretação, caso seja contrariada por um ou mais contribuintes, só pode ser apreciado e decidido pelos tribunais, enquanto órgãos especificamente incumbidos de exercer a autoridade jurisdicional. De resto, seria perverso que as interpretações da Administração Fiscal, por mais absurdas ou controversas que sejam, pudessem valer para afastar a legitimidade da expectativa dos contribuintes de que as leis fiscais venham a ser interpretadas de modo diferente pelos tribunais.
Por tudo isto, é de concluir que o segmento normativo do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, que atribui natureza interpretativa ao artigo 133.º do mesmo diploma, na parte em que vem fixar o sentido do artigo 88.º, n.º 14, do CIRC, nos termos do n.º 20 desse artigo, é materialmente inconstitucional, por violação da proibição da retroatividade fiscal, consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.

Como consequência do juízo de inconstitucionalidade formulado no acórdão, uma interpretação do art.88º nº 14 segundo a qual os prejuízos fiscais relevantes para a aplicação das taxas agravadas de tributação autónoma são os do grupo e não os de cada uma das sociedades que o integram não pode lograr fundamento legal numa interpretação legislativa da fixação do seu sentido pelo art.88º nº 20 CIRC, por via da natureza interpretativa conferida pelo art.135º Lei nº 7-A/2016,30 março.

Não obstante, a norma constante do art.88º nº 14 CIRC pode ser interpretada com o mesmo sentido fixado no nº 20 do preceito (agravamento de tributações autónomas no caso de prejuízo fiscal do grupo e não das sociedades integrantes do grupo que realizaram as despesas sujeitas a tributação) com base numa interpretação jurisdicional do preceito que convoque critérios hermenêuticos adequados.
A este propósito afirma o acórdão do Tribunal Constitucional:
Embora o juízo de inconstitucionalidade (…) obste a que se aplique à recorrida o disposto no art.88º, nº 20, do CIRC, na medida em que este deixa de revestir carácter interpretativo, (…) nada impede que o Tribunal recorrido (…) interprete o art.88º nº 14, no exacto sentido que lhe é fixado pelo nº 20, desde que o justifique com base, não na interpretação imposta pelo legislador, mas na interpretação jurisdicional do preceito
Neste contexto este Tribunal adere à interpretação da norma interpretanda efectuada na fundamentação do acórdão arbitral proferido em 9 maio 2016 (processo nº 685/2015-T) onde se afirma:
A expressão «sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal» que consta do n.º 14 do artigo 88.º do CIRC pode, pelo seu próprio teor literal, ser interpretada como reportando-se aos prejuízos do grupo ou aos de cada uma das empresas que os integram.
Na verdade, mesmo quando a tributação é feita com base no lucro tributável do grupo, não deixam de ser determinados os prejuízos fiscais de cada uma das sociedades que o integram, como resulta do artigo 70.º, n.º 1, do CIRC.
Por outro lado, o facto de o artigo 88.º, n.º 14, do CIRC fazer referência ao «sujeitos passivos» e o CIRC não indicar os grupos de sociedades entre os sujeitos passivos indicados no seu artigo 2.º, não exclui a possibilidade de a interpretação daquela expressão os abranger, pois o artigo 18.º, n.º 3, da LGT atribui tal designação à «pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável». Ora, no caso de tributação dos grupos de sociedades «o pagamento do IRC incumbe à sociedade dominante», em primeira linha, como decorre do artigo 115.º do CIRC, pelo que esta é, também nessa qualidade, sujeito passivo de IRC.
(…)o teor literal do nº 14 do art.88º do CIRC permite, por mera interpretação declarativa que tenha em mente o conceito de sujeito passivo alargado que resulta dos artigos 18º nº 3, da LGT, e 115º do CIRC atribuir a qualificação de sujeito passivo às sociedades dominantes dos grupos abrangidos pelo RETGS, pelo que a consideração dos prejuízos do grupo como facto determinante do agravamento da tributação autónoma tem de considerar-se como uma interpretação com que os contribuintes poderiam e deveriam contar anteriormente

3. DECISÃO
Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar na ordem jurídica a sentença recorrida, com a fundamentação enunciada
Custas pela recorrente (art. 527º nºs 1/2 CPC/art.2º al.e) CPPT)

Lisboa,19 de fevereiro de 2020. - José Manuel de Carvalho Neves Leitão (relator) - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia.