Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0986/14
Data do Acordão:05/30/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CARLOS CARVALHO
Descritores:NULIDADE
DECISÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário:Existe omissão de pronúncia e, consequente, nulidade da decisão [art. 668.º, n.º 1, al. d) 1.ª parte, do CPC] se o tribunal, contrariando o disposto no art. 660.º, n.º 2, do CPC, proferir uma decisão de fundabilidade ou infundabilidade de exceções e da pretensão [causa de pedir/pedido] sem apreciar os problemas/questões fundamentais objeto do litígio.
Nº Convencional:JSTA000P23371
Nº do Documento:SA1201805300986
Data de Entrada:09/08/2014
Recorrente:A... E OUTROS
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE LISBOA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
RELATÓRIO
1. B……….., A………….. e C……….., devidamente identificados nos autos [na qualidade de herdeiros de D…………], instauraram no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa [doravante «TAC/L»], o presente recurso contencioso de anulação contra o ”DIRETOR DA DIVISÃO de Cobrança e Controlo de Receitas do Departamento de Receitas” [«DDCCR»] da “Direção Municipal de Finanças, Planeamento e Controlo de Gestão da Câmara Municipal de Lisboa” e a “Coordenadora da Divisão de Recuperação de Edifícios Particulares [«CDREP»] do “departamento de Conservação de Edifícios e Obras Diversas da Direção Municipal de Construção e Conservação de Edifícios da Câmara Municipal de Lisboa”, formulando, pelas razões e motivação constantes da petição inicial de fls. 02/80 dos autos, os pedidos de: i) declaração de nulidade do «… “orçamento” apresentado aos Recorrentes, ao abrigo do artigo 15.º, n.º 2, do RAU (…), declarando-se a consequente irresponsabilidade dos Recorrentes quanto ao pagamento de qualquer valor por referência às obras coercivas efetuadas na Rua ………..»; e de, ii) declaração de nulidade ou, sem conceder, a anulação dos atos de liquidação do valor das obras em causa que os notificaram para procederem ao pagamento da quantia de Esc. 17.354.139$00 [atualmente 86.562,08 €], de «emissão de fatura e intimação para pagamento do seu valor (…), declarando-se a consequente irresponsabilidade dos Recorrentes quanto ao pagamento de qualquer valor por referência a obras na Rua …………. …».

2. Na sua contestação as autoridades recorridas apresentaram defesa, por exceção [ilegitimidade passiva, extemporaneidade e irrecorribilidade] e por impugnação, na qual concluíram pela rejeição do recurso ou, se assim não for entendido, pela improcedência do recurso contencioso de anulação e total manutenção dos atos em questão [cfr. fls. 185 e ss. - paginação processo suporte físico tal como as referências posteriores a paginação salvo expressa indicação em contrário].

3. Por decisão de fls. 353/354 dos autos foi admitido e julgado procedente o incidente de habilitação de herdeiros deduzido por morte da recorrente B……….., tendo sido habilitados judicialmente, como seus sucessores, o ora recorrente C……….. e E………...

4. Na sequência de requerimento dos recorrentes de fls. 391/392 dos autos foi, por despacho exarado a fls. 929, ordenada a apensação ao presente recurso contencioso dos recursos contenciosos n.ºs 876/00 e 641/01.

5. No primeiro apenso - respeitante ao recurso contencioso n.º 876/00 [tendo por objeto a impugnação do indeferimento tácito que havia recaído sobre o recurso hierárquico dirigido ao Presidente da Câmara Municipal de Lisboa relativamente aos atos de liquidação, emissão de fatura e intimação para pagamento do valor das obras praticados por funcionários da edilidade, mormente, o ”Diretor da Divisão de Cobranças e Controlo de Receitas do Departamento de Receitas” da “Direção Municipal de Finanças, Planeamento e Controlo de Gestão da Câmara Municipal de Lisboa” - cfr. cópias da petição inicial e da contestação, a fls. 405/550, e cópias do requerimento de interposição do recurso hierárquico e respetivos documentos anexos, a fls. 551/697] - veio a ser proferida sentença, datada de 17.01.2013 e já transitada em julgado, que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide [cfr. fls. 404 e segs. do recurso contencioso n.º 876/00 apenso e fls. 01 e 03 da decisão judicial recorrida - fls. 1096 e segs. dos autos].

6. No segundo apenso - relativo ao recurso contencioso n.º 641/01 [cfr. fls. 698/918 dos presentes autos e recurso n.º 641/01 apenso], A…………, E……….. e C…………, intentaram recurso contencioso de anulação contra o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa [«P/CML»], o “Diretor da Divisão de Cobrança e Controlo de Receitas” [«DDCCR»] do Departamento de Receitas da Direção Municipal de Finanças, Planeamento e Controlo de Gestão da «CML» e a “Coordenadora da Divisão de Recuperação de Edifícios Particulares” [«CDREP»] do Departamento de Conservação de Edifícios e Obras Diversas da Direção Municipal de Construção e Conservação de Edifícios da «CML», formulando, pelas razões e motivação constantes da petição inicial de fls. 02/73 dos referidos autos, os pedidos de: i) declaração de nulidade do «… “orçamento” apresentado aos Recorrentes, ao abrigo do artigo 15.º, n.º 2, do RAU (…), declarando-se a consequente irresponsabilidade dos Recorrentes quanto ao pagamento de qualquer valor por referência às obras coercivas efetuadas na Rua ……….»; ii) anulação da «… decisão final do recurso hierárquico, por falta de fundamentação, ou, sem prescindir, deve ser declarado extinto por prescrição qualquer direito que eventualmente assistisse à “CML” ao reembolso do alegado custos de obras e despesas de administração»; e de, iii) declaração de nulidade ou, sem conceder, a anulação dos atos de liquidação do valor das obras em causa que os notificaram para procederem ao pagamento da quantia de Esc. 17.354.139$00 [atualmente 86.562,08 €], de «emissão de fatura, intimação para pagamento do seu valor e rejeição do recurso hierárquico deles interposto, (…), declarando-se a consequente irresponsabilidade dos Recorrentes quanto ao pagamento de qualquer valor por referência a obras coercivas na Rua ……….. …».

7. O Presidente da «CML» e demais demandados contestaram, suscitando as exceções de irrecorribilidade dos atos, de litispendência e de extemporaneidade e, no demais, pugnaram pela improcedência do recurso contencioso, tendo os ali recorrentes respondido à matéria de exceção [cfr. resposta, a fls. 230/246 do Recurso n.º 641/01, apenso aos presentes autos] e o Ministério Público [«MP»] emitido parecer no sentido da rejeição do recurso, por irrecorribilidade dos atos [cfr. fls. 251/252 dos mesmos autos ora apensos].

8. O «TAC/L», por saneador/sentença datado de 22.04.2014 [cfr. fls. 1096/1110 dos presentes autos], decidiu:
«a) Julgar parcialmente verificada a exceção de litispendência no recurso n.º 641/01, por referência ao recurso n.º 424/00, quanto ao pedido formulado na respetiva alínea a) (Declaração de nulidade do orçamento apresentado aos recorrentes, ao abrigo do artigo 15.º/2 do RAU, declarando-se a consequente irresponsabilidade dos Recorrentes quanto ao pagamento de qualquer valor por referência às obras coercivas efetuadas na Rua ……….., ………..), o que determina a absolvição dos Recorridos da instância (641/01), nesta parte;
b) Rejeitar os recursos contenciosos n.ºs 424/00 e 641/01, na parte em que têm por objeto, respetivamente, os atos de liquidação do valor das obras na Rua ………, emissão de fatura e intimação para pagamento do seu valor e o ato de indeferimento do recurso hierárquico interposto daqueles atos, com fundamento na sua irrecorribilidade;
c) Rejeitar o recurso n.º 424/00, na parte em que tem por objeto o orçamento apresentado aos Recorrentes ao abrigo do artigo 15.º/2 do RAU, com fundamento na intempestividade do recurso;
d) Em consequência do decidido em b) e c), considerar prejudicada a apreciação das demais exceções de extemporaneidade e ilegitimidade passiva».

9. Não se conformando, os recorrentes interpuseram o presente recurso jurisdicional [cfr. fls. 1121/1156], apresentando o seguinte quadro conclusivo que se reproduz:
«
1. Não existe litispendência, sequer parcial, entre os recursos n.ºs 424/00 e 641/01: o pedido, a causa de pedir, as entidades recorridas são distintas, não se verificando os requisitos e pressupostos da litispendência, sequer quanto a parte do pedido formulado.
2. A decisão do recurso hierárquico tem natureza e efeitos absolutamente distintos dos atos recorridos, alterando por si só a esfera jurídica dos visados por tais atos administrativos e recorrentes em recurso hierárquico.
3. Ainda que pudesse admitir-se que um processo constituísse causa prejudicial do outro, que pudesse determinar a suspensão da instância. Não tendo essa suspensão sido determinada em relação a nenhum dos processos apensados, importaria então decidir ambas as petições em conjunto e englobá-las numa única decisão, evitando assim - até por força da apensação de processos -, a necessidade ou suscetibilidade de proferir duas decisões sobre a mesma questão essencial de facto e de direito, ainda que envolvendo partes processuais distintas.
4. Carece, pois, de fundamento legal a decisão - que deve ser revogada - no sentido de julgar parcialmente a exceção de litispendência no recurso 641/01 por referência ao recurso n.º 424/00, quanto ao pedido formulado na respetiva alínea a), com a absolvição dos Recorridos da instância (641/01), nesta parte, impondo-se ao invés a decisão de ambos os processos e petitórios, com as diversas partes envolvidas, o que poderia ter por instrumento uma única e mesma decisão final.
5. Os atos de “liquidação” do valor das obras na Rua ……….., “emissão de fatura” e “intimação para pagamento” do seu valor traduzem uma conduta voluntária da Administração, no exercício de um poder público distinguem-se dos atos anteriores e têm a virtualidade - independentemente de tudo o que anteriormente se processara, e mesmo que com isso os Recorrentes se houvessem conformado - de revelar vícios próprios (todos os que lhes são assacados em ambas as petições de recursos 424/00 e 641/00, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais) e de produzir direta e imediatamente efeitos jurídicos relevantes, distintos e lesivos dos direitos e interesses legalmente protegidos dos Recorrentes, sendo por isso contenciosamente impugnáveis.
6. Tais atos afetam por si só os legítimos direitos e interesses dos recorrentes, causando lesão direta e atual, envolvendo uma modificação da situação jurídica dos particulares envolvidos.
7. Para além de serem recorríveis, contrariamente ao decidido na douta sentença posta em crise no presente recurso, tais atos estão feridos de vícios que determinam a sua nulidade ou, sem de forma alguma conceder, a sua anulabilidade, sendo por isso inválidos e ilegais, não estando os Recorrentes obrigados ao seu pagamento, e sendo a decisão recorrida manifestamente violadora dos legítimos direitos e interesses legalmente protegidos dos Recorrentes.
8. Independentemente de tudo o que o antecedeu, não podem os Recorrentes aceitar o valor faturado, nem podem aceitar pagar o valor de PTE 17.354.139$00 que, sem qualquer fundamento nem justificação - quer nos documentos que lhes foram remetidos, quer nos que estão arquivados no respetivo processo da Divisão de Cobrança e Controlo de Receitas, quer perante a realidade que conheciam -, foram interpelados para pagar.
9. Não está em causa apenas o ofício de comunicação, mas todo o ato subjacente à emissão da fatura e inscrição das respetivas rubricas e valores, e ao modo de determinação concreta de tais valores.
10. Não se aceita que tal quantia corresponda “ao custo da obra coerciva realizada pela CML no imóvel em causa”, porque nenhum elemento constante no processo, e muito menos notificado aos Recorrentes, permite concluir dessa forma.
11. O ato de intimação à realização de obras (que os proprietários, pelos motivos expostos na P.I. do recurso, não realizaram) e o ato de posse administrativa para a realização de obras coercivas pela CML não justificaram em si mesmos a reação dos Recorrentes, por se verificarem os respetivos requisitos legais, pelo que seria injustificada e careceria de fundamento jurídico atendível uma reação a tais atos.
12. Os Recorrentes empenharam-se verdadeiramente no sentido de resolver os problemas do Bairro e das suas condições de habitabilidade - designadamente apresentaram dezenas de processos de candidatura ao programa RECRIA, procurando ainda formas de comparticipação e angariação de fundos para o início das obras -, não tendo, porém, os meios económico-financeiros disponíveis que lhes permitissem levar a efeito as obras que se revelavam necessárias.
13. No caso do imóvel sito na Rua ………… os Recorrentes apresentaram o processo RECRIA 3/R/90, que mereceu deferimento, tendo sido aprovada a correspondente comparticipação de PTE 2.014.667$00, dos PTE 6.153.805$60 orçamentados para as obras.
14. A CML tomou posse administrativa dos imóveis e procedeu à realização coerciva de obras, não tendo, porém, recorrido ao programa RECRIA, como poderia ter feito em conformidade com o então vigente Decreto-Lei n.º 4/88 de 14 de janeiro, e como impunha o dever de atuar com boa-fé, justiça e respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, atuando assim em claro e inequívoco abuso do direito e má fé.
15. A infração de disposições legais e constitucionais que limitam ou condicionam, de forma genérica, a discricionaridade administrativa, e a ofensa do conteúdo essencial de direitos fundamentais dos Recorrentes (ofensa gritante do seu direito à propriedade privada e a não verem arbitrariamente invadido e delapidado o seu património - imobiliário e financeiro), a ilegalidade, injustiça e iniquidade das obras alegadamente levadas a efeito, invalidam os atos administrativos recorridos e determinam a sua nulidade, estando os Recorrentes desobrigados de proceder ao pagamento do valor que foram intimados a pagar.
16. É o facto de a determinação do custo das obras e cobrança das mesmas aos proprietários, materializadas na respetiva fatura final, carecer em absoluto de qualquer justificação, medição ou certificação - evidente, exibida ou sequer existente -, não conter (nem existirem) quaisquer elementos que determinem e fundamentem o valor nela inscrito, materializar a inexistência de comparticipação do programa RECRIA, numa atuação abusiva e inconstitucional da CML, e padecer dos vícios invocados nas P.I. de recurso contencioso de anulação em apreço (que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais) que fundamenta em pleno a reação dos Recorrentes.
17. Sendo falsos, incompletos e impercetíveis os elementos constantes dos documentos que serviram de base à prática dos atos impugnados (liquidação do valor das obras, emissão da fatura, intimação para o seu pagamento e respetiva manutenção pela decisão negativa do recurso hierárquico, impugnada nos presentes autos), carecem em absoluto de fundamentação tais atos, não podendo os Recorrentes aceitá-los.
18. Mesmo conformando-se com a tomada de posse administrativa do imóvel, os Recorrentes não estão obrigados a aceitar todo e qualquer valor que a Câmara Municipal arbitrariamente lhes entenda cobrar na sequência ou a pretexto da realização da obra, e no caso concreto não podem os Recorrentes concordar com o valor que foram intimados a pagar, que consideram manifestamente excessivo, abusivo, ilegítimo, ilegal, inconstitucional e sem qualquer correspondência com a realidade.
19. O que evidencia que tais atos são em si mesmos verdadeiros e autónomos atos administrativos, por si só e de forma autónoma lesivos dos direitos e interesses dos Recorrentes, de forma direta e atual, envolvendo uma modificação da situação jurídica dos particulares envolvidos, portanto passíveis de recurso.
20. Não se aceita, consequentemente, a decisão recorrida, no sentido da irrecorribilidade de tais atos com o fundamento de se tratarem de atos meramente executórios, porque o não são, decisão essa que nesta sede deverá ser alterada, conhecendo-se dos vícios alegados relativamente a tais atos impugnados e declarando-se a irresponsabilidade dos Recorrentes quanto ao pagamento de qualquer valor.
21. Deveria, consequentemente, a decisão recorrida ter considerado recorríveis os atos atacados, e - na procedência da sua impugnação - deveriam tais atos ter sido declarados nulos ou, sem conceder, anulados.
22. Acresce que a decisão (de indeferimento) do recurso hierárquico não constitui uma decisão de segundo grau sobre meros atos materiais de execução de atos administrativos anteriores, antes se pronuncia negativamente quanto à alteração do conteúdo e sentido de tais atos administrativos definitivos e lesivos.
23. Tal como decorre da lei, unanimemente decide a jurisprudência e afirma a doutrina, a decisão de um recurso hierárquico (expressa ou tácita) tem natureza e efeitos distintos dos atos recorridos, sendo por isso atacável não só pelos seus próprios termos e eventuais irregularidades e ilegalidades, mas também relativamente às ilegalidades e vícios dos atos não alterados, impedindo assim a consolidação de uma decisão negativa na ordem e na sua esfera jurídica.
24. A decisão final do recurso hierárquico é, assim, recorrível e contenciosamente atacável, padecendo dos vícios invocados.
25. Acresce que, pelo menos em relação ao orçamento, a douta decisão recorrida considerou ser o mesmo recorrível, não se verificando litispendência entre os dois processos e pedidos, pelo que, tendo o mesmo sido objeto também do recurso hierárquico, pelo menos em relação à decisão que sobre ele incidiu, não tem qualquer aplicação a fundamentação contida na douta sentença recorrida para concluir pela irrecorribilidade da decisão final do recurso hierárquico.
26. Sem de forma alguma conceder, nessa parte pelo menos, deveria ter sido admitido o recurso interposto da decisão final do recurso hierárquico.
27. Acresce que, sem de forma alguma conceder, mesmo entendendo-se que os atos de liquidação do custo das obras na Rua …………, emissão de fatura e intimação para pagamento do seu valor não constituiriam atos administrativos, tal mais não significaria, também, que o interessado teria de interpor recurso hierárquico necessário para poder aceder à via contenciosa, o que não retiraria aos Recorrentes qualquer direito, apenas o condicionaria à via graciosa.
28. Tendo os ora Recorrentes interposto recurso hierárquico para o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa e tendo havido decisão expressa, agora objeto de recurso, é este ato, manifestamente, recorrível, padecendo de vícios próprios e podendo ser-lhe assacados também os vícios dos atos que não alterou, decidindo desfavoravelmente o recurso.
29. Deveria, consequentemente, a decisão recorrida ter considerado recorrível a decisão final do recurso hierárquico e - na procedência da sua impugnação - deveria tal ato ser declarado nulo, como nesta sede deve ser.
30. A decisão recorrida, considerando recorrível o orçamento apresentado aos Recorrentes ao abrigo do artigo 15.º/2 do RAU, rejeitou, porém, o recurso n.º 424/00, na parte em que tem por objeto tal orçamento, com fundamento na intempestividade desse recurso.
31. A sentença recorrida é manifestamente restritiva e redutora na descrição dos invocados fundamentos da invalidade do orçamento impugnado.
32. Na P.I. do recurso 424/00 (e da mesma forma na do recurso 641/01) os Recorrentes invocam expressamente que o orçamento notificado nos termos previstos no então vigente artigo 15.º, n.º 2 do RAU padece de vício de nulidade que fundamentam detalhadamente, como claramente resulta do relato que ali articulam, e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
33. Os Recorrentes invocam consubstanciadamente a lesão ilícita e ilegítima dos seus interesses legalmente protegidos e do seu direito a não verem arbitrariamente atingido o seu património, importando a nulidade do orçamento impugnado.
34. Os vícios assacados ao orçamento das obras coercivas podem ser invocados a todo o tempo, sem sujeição ao prazo previsto no artigo 28.º da LPTA.
35. Acresce que a apreciação dos vícios dos atos impugnados é feita na apreciação do mérito do recurso, e só com esta poderia o Tribunal a quo concluir que tais vícios seriam determinantes de nulidade ou anulabilidade do ato, designadamente apreciando todos os factos invocados pelos Recorrentes e a documentação constante no processo, pelo que nunca poderia importar a rejeição do recurso, que consiste precisamente em negar o conhecimento do mérito do mesmo.
36. A douta sentença recorrida esquece os demais vícios assacados ao ato no recurso contencioso apresentado, recusando tomar conhecimento do recurso com fundamento num único argumento, mas desconsiderando todos os demais, relativamente aos quais sequer se refere e que, porém, não se mostram prejudicados pela apreciação assim feita.
37. Tendo, designadamente, a nulidade do ato nos termos do artigo 133.º, n.º 2, alínea d) do CPA sido expressamente suscitada pelos Recorrentes nas suas petições de recursos contenciosos de anulação, por violação do conteúdo essencial de direitos fundamentais dos Recorrentes (ofensa gritante do seu direito à propriedade privada e a não verem arbitrariamente invadido e delapidado o seu património), não teve a mesma, na douta sentença recorrida, qualquer apreciação e nem decisão, que se pronunciasse - deferindo-o ou não - sobre o invocado vício do ato recorrido.
38. A alegação supra constitui uma das causas de pedir que suportam o pedido formulado pelos Recorrentes, constituindo assim uma questão que os Recorrentes submeteram à apreciação do Tribunal a quo e que este deveria ter resolvido, mas não resolveu, viciando de nulidade a sentença recorrida.
39. Nulidade que para todos os efeitos legais se invoca e deve ser declarada, com a declaração e reconhecimento dos invocados vícios, que cominam o ato impugnado com o mesmo vício de nulidade.
40. O mesmo sucede com as alegadas prescrição do crédito correspondente ao custo das obras coercivas realizadas pela Câmara Municipal (prescrição dos valores cobrados pela CML) e inconstitucionalidade e prescrição das despesas de administração, bem como de quaisquer normas regulamentares que as hajam criado e disciplinado, sobre as quais o Tribunal a quo também não emitiu qualquer pronúncia e a sentença recorrida é absolutamente omissa.
41. A douta sentença recorrida é, pois, nula também com esse fundamento, nulidade que igualmente deve ser declarada, e, conhecendo-se da questão invocada, mas totalmente olvidada na sentença recorrida, não pode senão dar-se-lhe provimento, julgando procedente a invocada exceção de prescrição.
42. Na data em que os Recorrentes foram intimados para pagar os alegados custos das obras coercivas, há muito se encontrava prescrito o direito da CML ao reembolso das quantias de que, no entender da CML, os Recorrentes terão beneficiado com a execução das obras, como expressamente e para todos os legais efeitos se invocou e requereu fosse declarado.
43. No conhecimento daquela exceção, expressamente invocada pelos Recorrentes, mas cujo conhecimento foi omitido na sentença recorrida, deve, pois, nesta sede de recurso, considerar-se a mesma procedente, isentando-se os Recorrentes da obrigação do pagamento do valor que foram intimados a pagar, por extinção do correspondente direito da Câmara Municipal de Lisboa.
PRECEITOS E PRINCÍPIOS DE DIREITO INFRINGIDOS
44. A decisão recorrida mostra-se assim nula, por total omissão de pronúncia sobre questões que ao julgador foram colocadas e de que deveria tomar conhecimento, decidindo-as, nos termos previstos no artigo 668.º, n.º 1, alínea d) do CPC/615.º n.º 1, alínea d) do NCPC, aplicável ex vi do artigo 1.º da LPTA, e, mantendo os atos contenciosamente impugnados, não obstante os fundamentos que importam a sua nulidade e anulabilidade, incorre em erro de julgamento e mostra-se violadora, entre outras que V. Ex.ªs mui doutamente suprirão, das normas contidas nos artigos:
- 660.º, n.º 2, do CPC/608.º, n.º 2 do NCPC;
- 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 6.º-A, 7.º, 10.º, 68.º, 69.º, 120.º, 124.º a 126.º, 133.º, 168.º, 173.º, b) do CPA;
- 18.º, n.º 2, 62.º, 65.º, n.º 2, alínea d), 81.º, alínea b), 103.º, n.º 2 e 3, 168.º, n.º 1, alínea i), 266.º e 268.º da CRP;
- 473.º e ss. e 482.º do CC;
- 15.º, n.º 2, do RAU;
- 14.º do Decreto-Lei n.º 13/85, de 6 de julho;
- 2.º do Decreto-Lei n.º 4/88, de 14 de janeiro;
- no DL 211/79, de 12 de julho …».

10. Devidamente notificados os recorridos, foram produzidas contra-alegações, sem que nas mesmas haja sido formulado conclusões [cfr. fls. 1161/1164], pugnando para que seja negado provimento ao recurso jurisdicional sub specie e mantida a decisão recorrida por esta não merecer qualquer censura.

11. A Digna Magistrada do Ministério Público teve vista dos autos e emitiu parecer no sentido da procedência do recurso [cfr. fls. 1170/1171], sendo que esta pronúncia objeto de contraditório não mereceu qualquer resposta [cfr. fls. 1172, 1173 e 1174].

12. Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à Conferência para o seu julgamento.


DAS QUESTÕES A DECIDIR

13. Face aos fundamentos e questões aduzidos nos autos pelas partes constituem objeto de apreciação nesta sede:
A) a nulidade da decisão judicial recorrida por alegada omissão de pronúncia [cfr. arts. 660.º, n.º 2, e 668.º, n.º 1, al. d), do CPC/608.º, n.º 2, e 615.º, n.º 1, al. d), do CPC/2013] [conclusões 36.ª a 44.ª das alegações];
B) o erro no julgamento de direito, nos juízos de procedência das exceções de litispendência [litispendência parcial entre os recursos n.ºs 424/2000 e 641/2001, quanto aos pedidos formulados sob a al. a)], de irrecorribilidade [quanto aos recursos contenciosos n.ºs 424/2000 e 641/2001 no segmento respeitante à impugnação dos atos de liquidação do valor das obras, emissão de fatura e intimação para pagamento do seu valor, e do ato de indeferimento do recurso hierárquico interposto daqueles atos], e de intempestividade/extemporaneidade [no âmbito do recurso contencioso n.º 424/2000 e tendo por objeto o orçamento apresentado ao abrigo do art. 15.º, n.º 2, do «RAU»], com consequente rejeição dos recursos contenciosos, já que em infração, mormente, dos arts. 03.º, 04.º, 05.º, 06.º, 06.º-A, 07.º, 10.º, 68.º, 69.º, 120.º, 124.º a 126.º, 133.º, 168.º, 173.º, al. b), todos do CPA [na redação anterior à introduzida pelo DL n.º 4/2015], 18.º, n.º 2, 62.º, 65.º, n.º 2, al. d), 81.º, al. b), 103.º, n.ºs 2 e 3, 168.º, n.º 1, al. i), 266.º e 268.º, todos da CRP, 473.º e ss. e 482.º do Código Civil [CC], 15.º, n.º 2, do «RAU», 14.º, do DL n.º 13/85, de 06.07, 02.º do DL n.º 4/88, de 14.01, e do DL n.º 211/79, de 12.07 [conclusões 01.ª a 35.ª e 44.ª das alegações] [cfr. alegações/contra-alegações e conclusões supra reproduzidas].


FUNDAMENTAÇÃO
DE FACTO
14. Resulta como assente na decisão judicial recorrida o seguinte quadro factual:
I) Pelo mandado de notificação da PSP de Lisboa, de 10.01.1989, foi B……….. notificada, em 13.01.1989, na qualidade de cabeça de casal dos herdeiros de D……….., proprietário do prédio sito na Rua ………., ……….., Lisboa, para «executar obras de reparação e beneficiação geral do referido imóvel e cumprir as conclusões do auto da Comissão Permanente de Vistorias de 01JUN88, do qual se junta cópia (...)» [doc. fls. 18/18v. do processo instrutor].
II) Por ofício n.º 2444/DREP/91, de 10.07.1991, a Coordenadora da Divisão de Recuperação de Edifícios Particulares da CML notificou a referida B……….., na mesma qualidade de cabeça de casal dos herdeiros de D…………, proprietário do prédio sito na Rua ……….., ………., em Lisboa, do despacho do Vereador, de 08.09.1989, nos termos seguintes:
«(...) de que foi determinada a ocupação do prédio para execução de obras coercivas constantes das conclusões do Auto da Comissão Permanente de Vistorias de 01.06.88 e de Beneficiação Geral, que lhe foram intimadas através da PSP, Divisão de Cascais, em 13/1/89, ao abrigo do artigo 166.º do RGEU. (…) Na devida oportunidade, a Câmara atuará e apresentará uma conta que terá força executiva …» [docs. fls. 33/35 do processo instrutor].
III) Foi emitido «Aviso de Posse Administrativa», com teor da notificação acima referida, datado de 10.07.1991, e publicado como Aviso n.º 51/91 no Diário Municipal n.º 16173, de 26.07.1991 [docs. fls. 34 e 41 do processo instrutor].
IV) Por despacho de 22.07.1991, do Vereador, foi aprovado o Orçamento n.º 20/91/DREP relativo às obras coercivas no imóvel em causa [docs. fls. 974/980 do recurso contencioso n.º 424/00 e docs. fls. 26/32 do processo instrutor].
V) Por ofício n.º 2638/DREP/91, de 25.07.1991, dirigido a B………., e subscrito pela Coordenadora da Divisão de Recuperação de Edifícios Particulares do Departamento de Conservação de Edifícios e Obras Diversas da CML, foi comunicado o seguinte:
«Em cumprimento do despacho 57/P/87, publicado no Diário Municipal de 87/03/10, informa-se que a CML vai iniciar obras no prédio de que V. Ex.ª é proprietário sito na Rua ……….., ……….., que lhe foram intimadas em 13/1/89 pela Polícia de Segurança Pública de Lisboa. (…) De igual modo foi determinada, ao abrigo do artigo 166.º do RGEU, a ocupação do prédio por despacho de 8/9/89 e notificada a V. Ex.ª, por carta registada e aviso de receção. (…) Mais se informa, nos termos do n.º 2 do artigo 15.º do RAU (...), que para a execução das obras foi elaborado um orçamento e determinado o respetivo custo no valor de Esc. 19.335.217$00 (...)» [doc. fls. 81 do recurso contencioso n.º 424/00 e fls. 35/40 do processo instrutor].
VI) Por carta de 19.08.1991, dirigida à Coordenadora da Divisão de Recuperação de Edifícios Particulares, a referida B………… acusa receção do ofício em que se refere o orçamento com base no qual foi determinado o custo das obras no montante de Esc. 19.335.217$00; solicita que lhe seja remetido o respetivo mapa de medições e orçamento com a indicação discriminada da previsão do custo da reparação; informa que não aceita o valor indicado, uma vez que obteve um orçamento, no âmbito do «RECRIA», no valor de Esc. 6.153.805$00; e requer que lhe sejam remetidas e transcritas todas as propostas das firmas concorrentes ou consultadas [doc. fls. 46 do processo instrutor].
VII) No verso da referida carta, a Coordenadora da Divisão exarou o seguinte despacho, datado de 22.08.1991: «Sr. Eng. ………, Para envio do orçamento com os preços do adjudicatário à requerente…» [doc. fls. 46 v. do processo instrutor].
VIII) Por ofício n.º 344/DREP, de 16.10.1991, subscrito pela Coordenadora da Divisão, a referida B………. foi notificada do seguinte: «Acuso a receção da carta de V. Ex.ª datada de 91/08/19 que passo a responder. Relativamente à questão que coloca, junta fotocópia do orçamento dos trabalhos previstos, a executar no prédio em causa. O valor de Esc. 19.335.217$00 indicado no ofício 2638/DREP/91 resulta de percentagens acrescidas ao orçamento, correspondentes a trabalhos adicionais, IVA, revisão de preços e encargos de administração só corretamente quantificáveis após a execução dos trabalhos …» [docs. fls. 78/80 do processo instrutor].
IX) Por carta de 15.10.1991, subscrita por C………., em representação dos proprietários do ………, os mesmos expuseram ao Vereador ………., as «… suas dúvidas sobre o processo de tomada de posse e execução de obras compulsivas no prédio sito na Rua ………, Lisboa», questionando-se, além do mais, que o valor das obras ascenda a Esc. 19.335.217$00 e que esse valor tenha sido notificado aos proprietários sem ser acompanhado do referido orçamento [doc. fls. 81 do processo instrutor].
X) Sobre esta comunicação recaiu despacho do Diretor do Departamento, no qual se refere, além do mais, que «… o estado de degradação do imóvel (...) não permitiria a situação de impasse em que se caiu e que o decurso dos prazos para início de obras com financiamento pelo RECRIA ilustra» e que os serviços devem «analisar cuidadosamente as questões colocadas quanto à execução das obras e materiais utilizados» [doc. fls. 81 v. do processo instrutor].
XI) Em ofício n.º 151/DREP, de 19.01.1995, dirigido à Coordenadora da Divisão de Recuperação de Edifícios Particulares, os serviços da mesma Divisão prestam informação sobre a «faturação de obras coercivas» no imóvel em causa, identificando a respetiva empreitada, os proprietários, o período de execução dos trabalhos, os autos de medição dos trabalhos e o respetivo valor [num total de 05 autos], bem como o valor total dos trabalhos de Esc. 17.354.139$50 [doc. fls. 111 do processo instrutor].
XII) Os referidos cinco autos de vistoria e medição dos trabalhos constam a fls. 113 a 133 do processo instrutor.
XIII) Por ofício n.º 337/DR/DCCR/2000, de 13.04.2000, subscrito pelo Diretor da Divisão de Cobrança e Controlo de Receitas do Departamento de Receitas da «CML», a referida B………. e Outros foram notificados de que se encontrava a pagamento, pelo prazo de 30 dias, a quantia de Esc. 17.354.139$00 correspondente ao custo da obra coerciva realizada pela «CML» ao abrigo do artigo 21.º da Lei n.º 46/85 no imóvel sito na Rua ………., ………. [doc. fls. 82/83].
XIV) Do processo instrutor constam inúmeras cartas e queixas de arrendatários do prédio em causa sobre problemas e deficiências do mesmo e sobre problemas no decurso das obras coercivas.
XV) O recurso contencioso n.º 424/00 foi intentado, em 19.06.2000, pelos Recorrentes, contra o Diretor da Divisão de Cobrança e Controlo de Receitas [DDCCR] do Departamento de Receitas da Direção Municipal de Finanças, Planeamento e Controlo de Gestão da Câmara Municipal de Lisboa, a Coordenadora da Divisão de Recuperação de Edifícios Particulares [CDREP] da CML, bem como a «CML», como contrainteressada, nele se formulando os seguintes pedidos:
a) Declaração de nulidade do orçamento apresentado aos recorrentes, ao abrigo do artigo 15.º/2 do RAU, declarando-se a consequente irresponsabilidade dos Recorrentes quanto ao pagamento de qualquer valor por referência às obras coercivas efetuadas na Rua ………., ………..;
b) Anulação dos atos de liquidação do valor das obras em causa, que os notificaram para procederem ao pagamento de Esc. 17.354.139$00, de emissão de fatura e de intimação para pagamento do seu valor, declarando-se a consequente irresponsabilidade dos Recorrentes quanto ao pagamento de qualquer valor por referência àquela obra.
XVI) O recurso contencioso n.º 641/01 foi intentado, em 17.09.2001, por A……….., E……….. e C……….. contra o Presidente da «CML», o Diretor da Divisão de Cobrança e Controlo de Receitas [DDCCR] do Departamento de Receitas da Direção Municipal de Finanças, Planeamento e Controlo de Gestão da Câmara Municipal de Lisboa e a Coordenadora da Divisão de Recuperação de Edifícios Particulares [CDREP] da «CML», bem como contra a «CML», como contrainteressada, com os seguintes pedidos:
a) Declaração de nulidade do orçamento apresentado aos recorrentes, ao abrigo do artigo 15.º/2 do RAU, declarando-se a consequente irresponsabilidade dos Recorrentes quanto ao pagamento de qualquer valor por referência às obras coercivas efetuadas na Rua …………, ………….;
b) Anulação da decisão final do recurso hierárquico que os Recorrentes haviam interposto para o Presidente da «CML», dos atos de liquidação do custo da obra coerciva acima referida, da emissão da correspondente fatura e de intimação para pagamento do respetivo valor.

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DE DIREITO
15. Passemos, então, à apreciação dos fundamentos recursivos, começando, prioritariamente, pela análise da arguida nulidade, para depois, e no caso de esta inexistir, nos centrarmos naquilo que constituem as demais críticas dirigidas à decisão judicial recorrida integrantes do objeto do recurso perante este Tribunal, analisando, desde logo, do acerto do juízo nela feito quanto à exceção de litispendência e, de seguida, por esta ordem, da bondade dos juízos efetuados quanto à procedência das exceções de irrecorribilidade e de extemporaneidade.

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DA NULIDADE DE DECISÃO POR OMISSÃO PRONÚNCIA

16. Sustentam os recorrentes de que a decisão judicial recorrida padece de nulidade dada a infração do n.º 2 do art. 660.º e da al. d) do n.º 1 do art. 668.º ambos do CPC [atuais arts. 608.º, n.º 2, e 615.º, n.º 1, al. d), do CPC/2013], porquanto ao julgar procedente a exceção de caducidade do direito/extemporaneidade da dedução do recurso contencioso n.º 424/00 o fez sem levar em atenção e, assim, emitir concreta pronúncia considerando todos os fundamentos de ilegalidade conducentes à nulidade do ato administrativo recorrido que os mesmos haviam invocado na sua petição inicial [cfr. seus arts. 04.º, 05.º, 07.º, 09.º, 10.º, 12.º a 16.º, 23.º, 24.º, 28.º a 36.º e 200.º], nem ter também atentado nos invocados vícios quanto à prescrição do crédito reclamado quanto às despesas de obras realizadas e de inconstitucionalidade [cfr. seus arts. 99.º a 116.º da mesma peça processual ou os arts. 78.º a 104.º da petição inicial do recurso contencioso n.º 641/01] [conclusões 36.ª a 44.ª das alegações].
Analisemos.

17. Preceituava-se no n.º 1 do art. 668.º do CPC de que «[é] nula a sentença quando: … d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento ...» [n.º 1], derivando ainda do mesmo preceito que «[a]s nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades» [n.º 4].

18. Caraterizando aquilo em que se traduzia a nulidade de decisão arguida a mesma consistia na infração ao dever que impendia sobre o tribunal de, em decorrência do princípio da disponibilidade objetiva [cfr. art. 264.º, n.º 1, e 664.º, 2.ª parte, do CPC], resolver todas as pretensões/questões que as partes tinham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão estivesse ou ficasse prejudicada pela solução dada a outras [cfr. art. 660.º, n.º 2, do mesmo Código] ou, ainda, cujo conhecimento se mostre, entretanto, abrangido pelo efeito de caso julgado que se haja formado.

19. Questões para este efeito são, assim, todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que exigem decisão do julgador, bem como, ainda, os pressupostos processuais [gerais e específicos] debatidos nos autos, sendo que não podem confundir-se aquilo que são as questões que os litigantes submetem à apreciação e decisão do tribunal com o que são as razões de facto ou de direito, os argumentos, ou os pressupostos em que cada parte funda a sua posição quanto às questões objeto de litígio.

20. Daí que as questões suscitadas pelas partes e que justificam a pronúncia do tribunal terão de ser determinadas pelo binómio causa de pedir-pedido, pelo que não incorrerá na nulidade em referência o julgador que, apreciando na decisão todos os problemas/questões fundamentais objeto do litígio, não se pronunciou, todavia, sobre a bondade de todas as considerações, razões ou argumentos apresentados pelas partes.

21. Só existe omissão de pronúncia e, consequente, nulidade [art. 668.º, n.º 1, al. d) 1.ª parte, do CPC] se o tribunal na decisão, contrariando o disposto no art. 660.º, n.º 2, do CPC, proferir uma decisão de fundabilidade ou infundabilidade das exceções e da pretensão [causa de pedir/pedido] sem apreciar os problemas/questões fundamentais objeto do litígio.

22. Presentes os considerandos caraterizadores do fundamento de nulidade de decisão invocado temos que, no caso, no segmento acometido de nulidade efetivamente a mesma ocorre.

23. Com efeito, vistos e analisados os termos da pronúncia inserta no despacho saneador-sentença recorrido em contraposição com aquilo que constituem os fundamentos aduzidos na petição inicial em referência, mormente o que se mostra alegado nos artigos supra convocados, temos que, na verdade, do despacho em crise e quanto ao juízo nele realizado em sede de procedência da exceção de extemporaneidade da dedução do recurso contencioso de anulação não deriva uma pronúncia na qual hajam sido analisados e considerados todos os vícios que foram tidos na alegação dos recorrentes como geradores de nulidade.

24. A pronúncia feita mostra-se reconduzida à alegação de que «nunca foi determinado em definitivo o seu exato valor» e que este «se mostra manifestamente excessivo», tendo-se afirmado, de seguida, que tal invocação «não configura uma causa de nulidade, nos termos do disposto no artigo 133.º do CPA, o que, aliás, resulta manifesto da própria alegação dos Recorrentes, que não se mostram capazes de precisar a invocada nulidade», na certeza de que «a verificar-se o vício invocado pelos Recorrentes, o mesmo consubstanciaria uma mera anulabilidade, por erro sobre os pressupostos de facto e/ou de direito e não um qualquer fundamento de nulidade».

25. Não podemos acompanhar esta análise e juízo porquanto, não cumprindo cuidar nesta sede da bondade, nem do acerto, daquilo que constitui a alegação na qual os recorrentes fundaram a sua pretensão, temos, no entanto, que os mesmos em sede de articulado inicial, ao invés do que se afirma na decisão, haviam concretizado e motivado com suficiência e profusão os fundamentos nos quais fizeram assentar a imputação das ilegalidade ou dos vícios acometidos e correspondente desvalor em termos de nulidade, apelando e concretizando em sede própria o quadro normativo infringido, nomeadamente, na infração dos comandos constitucionais insertos nos arts. 62.º, 65.º, n.º 2, al. d), 268.º, n.º 1, todos da CRP, e sua articulação com o art. 133.º, n.º 2, al. d), do CPA, por estar em causa a pretensa violação dos direitos à propriedade privada e à informação, participação e fundamentação, tal como se mostra aduzido e convocado nas alegações de recurso produzidas perante este Tribunal.

26. Dado a pronúncia firmada na decisão recorrida em sede de apreciação da exceção em referência não possuir a abrangência e amplitude exigidas e devidas à luz da necessária consideração de todas as causas de pedir que suportam o pedido invalidatório formulado pelos recorrentes daí decorre que a mesma enferma de nulidade por omissão de pronúncia, visto existir questão que, submetida à apreciação do tribunal a quo, não foi considerada na pronúncia por ele proferida.

27. Consequentemente, por omissão de pronúncia, o saneador-sentença recorrido enferma da nulidade prevista no art. 668.º, n.º 1, al. d), do CPC, procedendo a alegação dos recorrentes nesta parte.

28. Cientes do ora afirmado e concluído, seguimos a repetida e abundante jurisprudência deste Supremo Tribunal respeitante aos recursos jurisdicionais submetidos ao regime da LPTA, no sentido de que no recurso para o STA, por força do art. 762.º, n.º 2, na remissão que faz para o art. 731.º, n.º 1, onde se exclui possibilidade de reforma da decisão recorrida quando se verifique a nulidade da 1.ª parte da al. d) do art. 668.º - omissão de pronúncia - o julgamento pelo Supremo deve limitar-se (no regime da LPTA e CPC) a revogar a decisão para que o tribunal recorrido se pronuncie, decidindo a questão que deixou de conhecer [cfr., entre outros, os Acs. de 19.06.2002 - Proc. n.º 045695, de 12.04.2007 - Proc. n.º 01102/06, de 05.07.2007 - Proc. n.º 0227/07, de 29.01.2004 - Proc. n.º 0539/14].

29. Assim, devem os autos baixar ao TAC de Lisboa para que o tribunal a quo supra a omissão de pronúncia verificada.




DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em conceder provimento ao recurso e anular a decisão recorrida e, em consequência, ordenar a baixa dos autos ao TAC de Lisboa para os efeitos determinados.


D.N.



Lisboa, 30 de Maio de 2018. – Carlos Luís Medeiros de Carvalho (relator) – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano - Alberto Acácio de Sá Costa Reis.