Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0483/18
Data do Acordão:06/20/2018
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:SENTENÇA
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário:A Insuficiência da matéria de facto levada ao probatório da sentença recorrida, que serviu de fundamento ao conhecimento da questão de mérito e da litigância de má fé, determina a revogação da sentença e a remessa dos autos ao Tribunal recorrido para que se amplie o probatório e se profira nova sentença.
Nº Convencional:JSTA000P23426
Nº do Documento:SA2201806200483
Data de Entrada:05/10/2018
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A......, LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam os juízes da secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:



A AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, inconformada, interpôs recurso da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF do Porto) datada de 28 de Fevereiro de 2018, que julgou procedente a reclamação interposta pelo A………., Lda, contra o despacho do Chefe do Serviço de Finanças do Porto 5, pelo qual foi indeferido o seu pedido de cancelamento das penhoras bancárias com restituição dos valores penhorados.
Foi ainda condenada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, por litigância de má fé.
Alegou, tendo apresentado conclusões, como se segue:
A) Vem o presente recurso interposto da douta sentença que concedeu provimento à reclamação apresentada e anulou o despacho “que indeferiu o requerimento a solicitar o cancelamento das penhoras bancárias com a consequente libertação dos valores cativos”, penhora esta efectuada no âmbito da penhora do estabelecimento comercial oferecido como garantia pela aqui reclamante, para suspensão dos processos de execução fiscal (PEFs) abaixo elencados;
B) A sentença proferida conclui como segue:
Termos em que, pelos fundamentos exposto e ao abrigo das normas citadas:
A) Julgo a presente reclamação totalmente procedente e, em consequência, anulo o ato reclamado, com as legais consequências.
B) Condeno a Autoridade Tributária como litigante de má-fé.”
C) Com o assim decidido não pode a Fazenda Pública conformar-se, por entender que a sentença prolatada enferma de erro de julgamento de direito pelos motivos que passa de imediato a expor:
D) O cerne da questão nos presentes autos consiste, pois, em saber se as contas bancárias fazem parte do estabelecimento comercial, tendo a sentença proferida a quo que “não cabe na noção de estabelecimento comercial a titularidade de bens da sociedade proprietária do estabelecimento comercial, mormente contas bancárias”, conclusão com a qual a Fazenda Pública não pode concordar.
E) Com efeito, a noção de estabelecimento comercial como universalidade, recolhe-se da lei (apadrinhada pela doutrina e pela jurisprudência), é de que se trata de uma universalidade de direito, o que vale por dizer que estamos em presença de um conjunto de bens, móveis e/ou imóveis, direitos e/ou obrigações - de natureza patrimonial ou não.
F) O estabelecimento comercial, como universalidade, não é apenas uma unidade económica, uma empresa, embora possa participar de ambas as coisas. Uma empresa pode ter vários estabelecimentos.
G) O estabelecimento comercial não compreende só as mercadorias e o local; Inclui os créditos, os débitos, as patentes, as marcas, o nome comercial, os meios tecnológicos, as matérias-primas, o «know-how» do seu pessoal, as máquinas ou os instrumentos produtivos, o capital, a natureza e o trabalho, etc.
H) E não são só as coisas singularizadas que contam, mas a unidade formada pelo conjunto e pelas potencialidades do conjunto — o que não é a mesma coisa que o valor somado das parcelas componentes.
I) É uma noção que não tem necessariamente que coincidir com o conceito de empresa definido pelo artigo 5° do CIRE, (ou com o do artigo 230° do Código Comercial), onde se determina que “Para efeitos deste Código, considera-se empresa toda a organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer actividade económica.”.
J) Por outro lado, o CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) assumiu, no seu art. 5.°, uma noção abrangente de empresa, associando-a a um conceito prático e despido de tecnicidade que se apoia na noção estrutural de «organização de capital e de trabalho» e na orientação para, o «exercício uma qualquer actividade económica» (ou, na terminologia de LUIS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA in «Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado», Lisboa, Quid Juris, 2009, pág. 82, num conceito «de índole eminentemente pragmática, válida apenas no âmbito do Código, sem que necessariamente lhe deva ser imputada outra pretensão ou alcance jus-científico») — vd. neste sentido e com idêntica referência doutrinal, o Acórdão da Relação do Porto de 17-06-2013, processo n.° 1387/13.OTBGDM.P1, do qual foi Relatora Exma. Sra. Juíza Desembargadora Dra. ANA PAULA AMORIM, bem como os demais arestos jurisprudenciais aí invocados.
K) Assim, estabelecimento comercial como universalidade, compreende uma organização de conjunto, inteirada pelas virtualidades expansivas que comporta, imprimindo coerência de funcionalidade e unidade de fim — o que constitui um valor novo, acrescido e autónomo, em relação ao conjunto dos elementos singulares integrantes, enquanto organização com funcionalidade de meios e unidade de destino lucrativo.
L) E não é essencial que a organização comercial esteja em movimento. Essencial é que a estrutura organizativa esteja potencialmente apta, ou vocacionada, à funcionalidade e ao destino, ou seja, «tenha aptidão para entrar em movimento».
M) Neste sentido v.g., entre outros, os Acórdãos do STJ de 18/04/2002 e 19/04/2012, in proc. N° 02B538 e N° 5527/04.2TBLRA.C1.S1, e o Acórdão do TRL de 22/01/2015, in proc n° 853/14.5TJLSB.L1-8, e os vários autores doutrinais, nacionais e estrangeiros, também acordam nestes aspectos:
«Empregadas as palavras na sua acepção mais lata e em sentido mais objectivo, estabelecimento comercial vem a significar o mesmo que complexo da organização comercial do comerciante, o seu negócio em movimento, ou apto para entrar em movimento». (v.g. Professor Ferrer Correia, Reivindicação do Estabelecimento Comercial, como Unidade Jurídica - Estudos de Direito Civil, Comercial e Criminal, página 255).
N) E a nossa lei (à semelhança de outras no espaço Europeu) reflecte este conceito de unidade jurídica, diferente da soma atomística das partes ou seus valores componentes. Já não falar nos instrumentos comunitários mais representativos em matéria civil e comercial, que elegem o estabelecimento comercial como elemento material de conexão, referenciador de competência judiciária ou de lei material aplicável a certa relação jurídica em conflito.
O) Vejam-se também os diferentes instrumentos normativos comunitários publicados no J.O.L. 160, de 30 de Junho de 2000; e os instrumentos normativos de cooperação, no JOC 189, de 28 de Julho de 1990 e no JOC 221, de 16 de Julho de 1998. E ainda a Convenção de Lugano, entre os quinze Estados comunitários e os três Estados EFTA, publicada no D.R. n.° 250, de 30 de Outubro de 1991.
Em conclusão:
P) Partindo deste conceito de estabelecimento comercial, acolhido na nossa lei, e pacífico, quer em termos de direito da União Europeia ou do direito nacional, estamos perante um conceito normativo cuja identidade se revela através da funcionalidade económica e destino, comercial, industrial, ou agrícola, de prestação de serviços, ou outro fim empresarial lícito, como objecto negocial de livre circulabilidade, como individualidade de direito.
Q) Pelo que, e concretizando, as contas bancárias fazem parte integrante do activo circulante da empresa, ou seja, constituem parte do património da empresa como um todo.
R) Aliás, por essa razão fazem parte da demonstração financeira das empresas (balanço), do mesmo modo que os activos fixos tangíveis, tais como os inventários / stocks, os créditos sobre clientes, etc..
S) Tanto assim é que ao avaliar uma empresa, por exemplo para efeitos de trespasse, se parte duma análise financeira do balanço, compreendendo este os saldos das contas de depósitos bancários, o valor que lhe é atribuído tem necessariamente de ter em consideração esses valores; logo, são parte integrante desse estabelecimento comercial.
T) Face ao exposto, não restam dúvidas que a actuação da AT se pautou pelo escrupuloso cumprimento do Direito aplicável, e até na delimitação do que lhe oferecido pela reclamante à penhora, e, por conseguinte, deverá ser mantido o acto administrativo em apreço.
Quanto ao decidido sobre a condenação da Autoridade Tributária como litigante de má-fé:
U) Refere-se na sentença: “Argui ademais a Reclamante que a AT ao manter as penhoras das contas bancárias viola o princípio da boa-fé.”
V) Vindo a concluir: “Ora, tendo a AT aceite a garantia prestada pela Reclamante e destinando-se esta a garantir os créditos do exequente nos termos supra citados, resulta que a garantia prestada pelo Reclamante se revelou idónea e suficiente para garantir os referidos créditos. Na verdade, se a garantia prestada pela Reclamante não fosse suficiente e idónea a caucionar a divida exequenda, a AT não a tinha aceite ou teria considerado insuficiente.
Assim, do expendido conclui-se que a manutenção das penhoras das contas bancárias da Reclamante — posteriormente à prestação de garantia suficiente e idónea pela Reclamante - excede o necessário, revelando-se, por isso, uma conduta desproporcional e violadora do princípio da boa-fé.
Pelo exposto, o ato reclamado enferma de ilegalidade, por violação do art.° 782° do CPC, aplicável ex vi do art° 2.°, al. e) do CPPT e ainda do disposto no art.° 59°, n.° 2 da LGT, devendo por isso ser anulado.”
W) Daqui vindo a decidir, como decidiu: B) Condeno a Autoridade Tributária como litigante de má-fé.
X) E ordenando: “Notifique as partes para se pronunciarem quanto á indemnização devida pela má-fé.”
Ora,
Y) Em primeiro lugar há que salientar que a reclamante não pediu qualquer indemnização, nem suscitou a questão da litigância de má-fé.
Z) Por outro lado, do teor da sentença se retira que, após se debruçar sobre o princípio da boa-fé, conclui, como supra se transcreveu, para a conclusão / decisão de condenar a AT como litigante de má-fé, determinando a pronúncia das partes quanto à indemnização.
AA) Embora a condenação em multa como litigante de má-fé não estar dependente de pedido, podendo o tribunal arbitrá-la oficiosamente, após apuramento da responsabilidade da parte pelo seu comportamento processual, como resulta do n.° 1 do art. 542.° do CPC, que apenas faz depender de pedido da parte contrária a condenação em indemnização também aí prevista, o que não aconteceu;
Vejamos.
BB) Dispõe o artigo 542° do Código de Processo Civil, nos seguintes termos:
Responsabilidade no caso de má-fé — Noção de má-fé
1. Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2. Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”.
CC) O dever de litigar de boa-fé, com respeito pela verdade é corolário do princípio da cooperação a que se reporta o art.° 266° do Código de Processo Civil, e vem consignado no art.° 266°-A, do mesmo diploma legal.
DD) Em qualquer caso, a conclusão pela actuação da parte como litigante de má-fé será sempre casuística, não se deduzindo mecanicamente da previsibilidade legal das alíneas do art.° 456° do Código de Processo Civil e a responsabilização e condenação da parte como litigante de má-fé só deverá ocorrer quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a acção da justiça.
EE) Atentos os autos, cremos não ser de manter tal decisão, considerando-se, contrariamente ao juízo sobre tal matéria desenvolvido pelo Tribunal a quo, que a aludida litigância de má-fé não resulta provada, nem se manifesta nos autos, não se demonstrando qualquer actuação dolosa ou gravemente negligente por parte da AT, com vista a conseguir um objectivo ilegal, a impedir a descoberta da verdade, ou a entorpecer a acção da justiça, não decorrendo a verificação de actuação de litigância de má-fé, por si só, da circunstância de a parte ter decidido como decidiu no despacho que aqui se reclama.
FF) A AT actuou dentro das suas competências legalmente atribuídas, convicta da sua posição, desprovida de qualquer actuação dolosa ou gravemente negligente, antes se entendendo que a sua preenche os pressupostos quer de facto, quer de direito, para agir como agiu, em cumprimento da lei e das orientações internas a que se encontra vinculada — v.g. que no despacho que incidiu sobre o pedido de isenção parcial de prestação de garantia, se determina: “(...)
5- Dos elementos de prova juntos nomeadamente o balancete contabilístico de Dezembro de 2016, verifica-se que o valor de activos fixos tangíveis é de € 179.396,70.
D) Análise da garantia: (...)
2. Calculada a garantia, nesta data, nos termos acima referidos esta deve ser do montante de € 591.653,95.
3. A executada, oferece como garantia o estabelecimento comercial, se este se mostrar insuficiente, solicita a isenção de garantia pelo remanescente.
E) Conclusões:
1- Face ao exposto, afigura-se estarem reunidas as condições necessárias para que seja aceite a penhora do estabelecimento comercial para efeitos de garantia, nos termos do n°4 do art. 199° do CPPT. (…)
3- A suspensão das execuções só poderá ocorrer após a constituição da penhora do estabelecimento comercial.
4- Na penhora de estabelecimento comercial deverá o SF seguir ainda as instruções veiculadas pelo ofício-circulado n°60010 de 22.10.1999 da DSGCT.”
GG) Vigorando no nosso ordenamento jurídico o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, enunciado no n.° 2 do Art.° 30° da LGT e aflorado no n.° 3 do Art.° 85° do CPPT, para tanto, disponibilizando meios capazes de assegurar, para o credor/exequente (Estado), a garantia do pagamento (se necessário) dos créditos tributários, no período em que não é possível movimentar a execução fiscal, dado o prosseguimento dos seus termos poder ser temporariamente paralisado pela apresentação de meio de reacção que tenha por objecto a legalidade ou inexigibilidade da liquidação subjacente à dívida exequenda, em sentido amplo.
HH) Ora, nos termos do Art.° 169° do CPPT, e n°s 1 e 2 do Art.° 52° da LGT, a execução para cobrança coerciva do montante liquidado suspende-se até à decisão do pleito daquela acção, desde que se verifique uma qualquer de três situações: tenha sido constituída garantia nos termos do Art° 195°, ou haja sido prestada garantia nos termos do Art.° 199°, ou exista penhora que garanta a totalidade da quantia exequenda e do acrescido, durando aquela suspensão até que esteja decidido definitivamente o referido processo.
II) I.e., a execução terá necessariamente que suspender-se após a prestação de garantia ou a penhora de bens suficientes (no caso de não ser requerida a prestação de garantia ou, sendo-o, não chegar a ser prestada).
JJ) Após o que, a suspensão manter-se-á até que a causa esteja decidida definitivamente, ou seja, por decisão insusceptível de impugnação administrativa ou contenciosa.
KK) Daí que, o núcleo das garantias constitucionais fica salvaguardado com este regime de suspensão obrigatória, pois se a decisão da impugnação administrativa ou contenciosa for indeferida, a execução extinguir-se-á necessariamente.
LL) Importa ainda ter presente o disposto no artigo 104° da LGT, que dispõe sobre a litigância de má-fé no processo judicial tributário. Em tal disposição legal pode ler-se que:
1 - Sem prejuízo da isenção de custas, a administração tributária pode ser condenada numa sanção pecuniária a quantificar de acordo com as regras sobre a litigância de má fé em caso de actuar em juízo contra o teor de informações vinculativas anteriormente prestadas aos interessados ou o seu procedimento no processo divergir do habitualmente adoptado em situações idênticas.
2 - O sujeito passivo poderá ser condenado em multa por litigância de má fé, nos termos da lei geral.
MM) Ora, estabelece o n° 1 do citado preceito uma sanção pecuniária com fundamento na litigância de má-fé da AT, o que, desde logo, mostra que, independentemente das questões doutrinárias que se possam colocar sobre a possibilidade de a Administração, sujeita ao princípio da legalidade, poder actuar com má-fé em juízo, a verdade é que o legislador da LGT tomou a opção no sentido de fazer actuar tal mecanismo relativamente à AT. E, assim sendo, fez depender a possível sanção por litigância de má fé de uma violação dolosa ou gravemente negligente (por aplicação do artigo 456°, n° 2 do CPC, a que actualmente corresponde o artigo 542°, 2 do CPC), quer do princípio da boa fé - actuar em juízo contra o teor de informações vinculativas anteriormente prestadas aos interessados - quer do princípio da igualdade - o seu procedimento no processo divergir do habitualmente adoptado em situações idênticas.
NN) De facto, no artigo 104° da LGT estabelece-se um regime de condenação por litigância de má-fé distinto para a administração tributária e para o sujeito passivo, pois enquanto este pode ser condenado em multa por litigância de má-fé nos termos da lei geral (n° 2 daquele artigo), a administração tributária apenas pode ser condenada numa sanção pecuniária, a quantificar de acordo com as regras sobre litigância de má fé, caso actue em juízo contra o teor de informações vinculativas anteriormente prestadas aos interessados ou o seu procedimento no processo divergir do habitualmente adoptado em situações idênticas (n° 1 do mesmo artigo).
OO) Ou seja, apenas no caso de se verificarem estas duas situações - actuar contra o teor de informações vinculativas anteriormente prestadas aos interessados ou o seu procedimento no processo divergir do habitualmente adoptado em situações idênticas - pode a AT ser condenada como litigante de má-fé, o que não se encontra provado na hipótese dos autos.
PP) Temos, pois, um regime mais restritivo que o previsto na lei processual civil, o que nas palavras de A. Lima Guerreiro, in LGT, anotada, Editora Reis dos Livros, pág. 425, resulta da circunstância de se ter tido em conta “(...) o quadro jurídico peculiar da actuação do Estado no processo judicial tributário, que é substancialmente diferente do das partes no processo comum”, sendo certo, por seu turno, que sempre se poderá questionar se a diferença de tratamento da AT, quando comparada com o contribuinte, não será discriminatória, isto é, se “terá fundamento material bastante e não violará o princípio fundamental da igualdade na modalidade de igualdade de armas” — vide, LGT, anotada e comentada, Diogo Leite Campos e outros, 4ª edição, 2012, Encontro da Escrita, pág. 893.
QQ) Sem prejuízo da pertinência destas questões doutrinárias, interessa-nos, sim, o caso concreto, com os seus contornos próprios e, no circunstancialismo dos autos, não é de sufragar aquele que foi o entendimento defendido pelo Tribunal a quo.
RR) Com efeito, e desde logo, não se vislumbra aqui qualquer violação dos princípios da boa-fé e da igualdade nos termos que ressaltam do n° 1 do artigo 104° da LGT, aplicável ao processo tributário.
Assim,
SS) A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 30° e 52° da LGT, 169°, 195° e 199° do CPPT, e ainda os artigos 104° da LGT e 542° do CPC,
Pelo que o despacho reclamado não padece de quaisquer vícios, devendo, manter-se na ordem jurídica; e,
E a condenação da AT em litigante de má-fé não deve manter-se por ilegal e infundada.
TT) Mostram-se, assim, violadas as seguintes disposições legais: art. 52° da LGT, 169° e 199° do CPPT, cotejado com o disposto no art. 686°, 693° e 810º do CC.

Não houve contra-alegações.

O Ministério Público notificado, pronunciou-se no sentido da revogação da sentença na parte em que condena a Administração tributária em litigância de má fé por entender não estarem reunidos os requisitos para tal. Entendeu ainda que a sentença deve ser revogada por insuficiência de matéria de facto, devendo baixarem os autos à 1ª instância a fim da mesma ser ampliada.

Cumpre decidir.

Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte factualidade concreta:
A) Consta da “Informação” emitida, em 31/12/2017, pela Direção de Finanças do Porto 5, entre o mais, o seguinte:” (…)
Assunto:
Nº ProcessoData InstauraçãoProveniênciaValor Total em Dívida
3190201701040812
01-03-2017
IVA
22.355,62
3190201701040820
01-03-2017
IVA
4.324,08
3190201701040871
01-03-2017
IVA
22.640,07
3190201701040880
01-03-2017
IVA
4.156,56
3190201701040898
01-03-2017
IVA
12.396,81
3190201701040901
01-03-2017
IVA
2.151,10
3190201701040910
01-03-2017
IVA
4.765,15
3190201701040928
01-03-2017
IVA
781,35
3190201701040936
01-03-2017
IVA
55.939,28
3190201701040944
01-03-2017
IVA
8.573,52
3190201701040995
01-03-2017
IVA
9.671,75
3190201701041002
01-03-2017
IVA
1.937,34
Reclamação de actos do órgão de execução fiscal n.° 3190201720000120
Reclamante: A…….. LDA NIF: ………. (...)
3 - Em 01-03-2017 foram instaurados os seguintes processos executivos:
4 - A citação pessoal do executado nestes processos ocorreu a 02-03-2017;
5 - Por despacho de 06-04-2017 foram ordenadas as penhoras n.° 319020170000378310 e 319020170000378329, associadas aos processos executivos supra identificados, incidindo sobre os saldos bancários existentes em nome da sociedade executada na Caixa Geral de Depósitos e no Banco Comercial Português SA:
6 - Através do documento com a ref.ª 17097980015771 de 07-04-2017 veio a Caixa Geral de Depósitos informar que procedeu à penhora do saldo bancário existente nas contas do executado, no montante de € 59.229,43;
7 - A 17-04-2017 o Banco Comercial Português SA respondeu à ordem de penhora, comunicando não existir saldo penhorável nas contas do executado; (...)
9 - A 17-04-2017 o processo n.° 3190201701040812 foi eleito processo principal, tendo-lhe sido apensados os processos identificados nos pontos 3 e 8 da presente informação; (…)
11 - A 19-04-2017 o executado informou ter reclamado da aplicação da coima em cobrança no processo n.° 3190201701014234, e requereu a isenção de prestação de garantia com vista à suspensão do mesmo. Requereu ainda o cancelamento das penhoras efectuadas sobre os saldos das contas bancárias; (...)
13 - Por despacho da Directora de Finanças Adjunta da Direcção de Finanças do Porto de 19-05-2017, exarado no processo n.° 3190201701040812 e apensos, foi determinada a penhora do estabelecimento comercial da sociedade para efeitos de garantia, e concedida a isenção de prestação de garantia pelo remanescente caso a penhora se mostrasse insuficiente;
14- Cumpridas as condições impostas pelo despacho da Directora de Finanças Adjunta, nomeadamente a penhora de todo o estabelecimento comercial onde a sociedade executada exerce a sua actividade, foi determinada a suspensão do processo n.° 3190201701040812 e aps por despacho da Chefe de Finanças de 05-07-2017; (…)
16 - A 07-08-2017 veio o executado requerer os valores penhorados nas contas da Caixa Geral de Depósitos e Millennium BCP fossem libertados, alegando que, com vista à suspensão do processo, foi penhorado o estabelecimento comercial e concedida a isenção de prestação de garantia pelo restante, e que as contas bancárias, não fazendo parte do estabelecimento comercial, não deveriam estar penhoradas;
17 - Em resposta foi elaborada informação e proferido despacho de indeferimento, notificado ao executado a 28-09-2017; (...)
- Uma vez que não existia saldo penhorável nas contas em nome do executado no BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS SA, esta penhora foi levantada a 18-09-2017.
- Conforme determinou o despacho de 25-09-2017, a penhora de saldo bancário efectuada sobre as contas em nome do executado na Caixa Geral de Depósitos poderá ser levantada logo que o Banco entregue os montantes penhorados, que deverão ficar depositados à ordem dos processos. (…)
B) A petição inicial da presente reclamação deu entrada no Serviço de Finanças do Porto 5 em 06/10/2017 e no presente Tribunal a 22/11/2017.
Nada mais se deu como provado.

Há agora que apreciar o recurso que nos vem dirigido, bem como a questão suscitada pelo Ministério Público no tocante à insuficiência da matéria de facto que suporta a decisão recorrida.
Porque esta questão é de conhecimento prioritário, uma vez que julgada procedente determina a revogação da decisão (das decisões) começaremos pela sua análise.
Seguiremos de perto o que refere com pertinência o Magistrado do Ministério Público no seu parecer.
Embora o tribunal "a quo" tenha levado ao probatório apenas dois factos (o teor de uma informação prestada no processo pelo Serviço de Finanças e a data da apresentação da reclamação), resulta da discussão da matéria de direito que o tribunal deu como provados alguns dos factos relatados na informação prestada pelo Serviço de Finanças, pelo que apesar de tal método de elaboração da sentença não ser o mais correcto, importa apreciar que factualidade o tribunal deu como assente para proferir a decisão impugnada.
Resulta, assim, da sentença que no âmbito de processos de execução fiscal instaurados contra a aqui Recorrida e apensos ao processo nº 3190201701040812, que foi elegido como "principal”, foi em 06/04/2017 determinada a penhora dos saldos bancários, tendo em 07/07/2017 sido realizada a apreensão do valor de € 59.229,43 euros em conta bancária existente na C.G.D. e titulada pela Recorrente. Posteriormente e na sequência de apresentação de pedido de prestação de garantia para efeitos de suspensão da execução fiscal, a executada e aqui Recorrida deu como garantia a penhora do seu estabelecimento comercial e peticionou a isenção de garantia do remanescente, com base na inexistência de outros bens, pedido que lhe foi deferido em 19/05/2017.
Posteriormente, em 07/08/2017, a Executada apresentou pedido de levantamento da penhora dos saldos bancários, que foi indeferido. E é desta decisão de indeferimento que foi apresentada a reclamação ao abrigo do artigo 276º do CPPT.
Afigura-se-nos que o tribunal não fez uma correcta ponderação dos factos nem uma adequada interpretação e aplicação das normas legais aplicáveis. Desde logo porque é manifesta a insuficiência da matéria de facto de que padece a sentença, pois nem sequer consta da mesma o teor do pedido apresentado pela executada e o teor da decisão de indeferimento proferida pelo órgão de execução fiscal, que no fundo constituem o núcleo do ato impugnado, nem os mesmos se encontram nos autos. Com efeito, a informação vertida no ponto "A" do probatório foi emitida já depois de apresentada a reclamação dirigida ao tribunal. Por outro lado, tendo a penhora do estabelecimento comercial sido efectuada após a penhora dos saldos bancários e se na tese da sentença estes não fazem parte do estabelecimento comercial, cuja fundamentação não subscrevemos, não se percebe em que medida haveria fundamento para o levantamento da penhora, pois o valor global dos bens apreendidos não atinge o valor fixado para a garantia (que a sentença também omitiu), motivo pelo qual foi emitida a declaração de isenção de garantia na parte restante. Do mesmo modo que não resulta minimamente assente na sentença que a penhora do estabelecimento comercial se destinasse a levantar a penhora do saldo bancário, seja por cobrir o valor da garantia (e isso não sabemos, pois não resulta assente os termos dessa penhora), seja porque a executada tenha feito essa especificação, invocando algum argumento pertinente. Na verdade, se de facto foi pedido esse levantamento com o fundamento de que os valores apreendidos se mostram indispensáveis para o giro do estabelecimento, então temos que concluir que os mesmos constituem uma componente desse estabelecimento (independentemente de alguma divergência sobre a noção que se der a este) e como resulta do nº 5 do artigo 782º do CPC, a penhora do "direito ao estabelecimento comercial" não afecta a penhora anteriormente realizada sobre bens que o integrem (sendo certo que no caso não existe qualquer conflito, uma vez que as penhoras visam garantir o mesmo crédito exequendo).
Ora, para apreciar da ilegalidade do ato impugnado -que fundamenta a condenação em litigância de má fé- há que ampliar a matéria de facto que é significativamente escassa e que o tribunal "a quo" simplesmente ignorou.
Impõe-se, assim, a revogação da sentença recorrida e a baixa dos autos ao tribunal “a quo” para que sejam carreados para os autos os elementos de prova necessários a que se possa considerar na sentença recorrida a factualidade relevante à decisão de mérito tal como atrás apontado.

Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em:
-conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a sentença recorrida, “in totum” com os fundamentos atrás expostos;
-ordenar a baixa dos autos ao tribunal “a quo” para que seja ampliada a matéria de facto nos termos anteriormente apontados e posteriormente seja proferida nova decisão de mérito sobre a questão
Sem custas.
D.n.
Lisboa, 20 de Junho de 2018. – Aragão Seia (relator) – Dulce Neto – Pedro Delgado.