Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0942/08
Data do Acordão:07/02/2009
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CA
Relator:COSTA REIS
Descritores:NOTARIADO
REFORMA
BENS IMÓVEIS
TRANSMISSÃO
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
PRINCÍPIO DA CONCORRÊNCIA
DESBUROCRATIZAÇÃO PROCEDIMENTAL
Sumário:I - Apesar do legislador ter de acautelar a boa fé dos destinatários das normas e estes tenham o direito de verem salvaguardadas as legítimas expectativas que lhe foram criadas, só ocorre violação do direito à protecção da confiança quando a alteração introduzida se tenha traduzido numa mudança radical, inesperada, excessivamente onerosa e violadora de expectativas legítimas, consolidadas e consistentes dos destinatários afectados.
II - A CRP não contém nenhuma referência à profissão de notário ou, tão pouco, ao que se deve entender por acto notarial o que quer dizer que a substância da sua actividade não se encontra constitucionalmente balizada e, correspondentemente, que as únicas limitações com que o legislador ordinário se confronta quando tem de legislar sobre essa profissão ou actividade são as que resultam dos princípios fundamentais constantes daquele Texto.
IV - Se assim é, só se poderá concluir pela inconstitucionalidade da reforma operada pelo DL 263-A/2007, de 23/07 se a mesma violar algum desses princípios fundamentais, maxime o da protecção da confiança e da concorrência.
V - Ora, nem num nem outro desses princípios foram violados pelos procedimentos implementados pelo citado diploma.
Nº Convencional:JSTA00065860
Nº do Documento:SAP200907020942
Data de Entrada:12/17/2008
Recorrente:JUIZ PRESIDENTE DO TAF DE BRAGA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REENVIO PREJUDICIAL.
Objecto:DESP TAF BRAGA.
Decisão:EMITIDA PRONÚNCIA.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - REENVIO PREJUDICIAL.
Área Temática 2:DIR CONST - GARANTIAS ADMI.
Legislação Nacional:PORT 794-B/2007 DE 2007/07/23 ART15 N1 C D.
DL 263-A/2007 DE 2007/07/23.
CONST76 ART2 ART18 N2 N3.
Jurisprudência Nacional:AC TC PROC188/03 DE 2003/11/12.; AC TC PROC382/01 DE 2002/03/14.
Referência a Doutrina:JORGE REIS NOVAIS OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAL ESTRUTURANTES DA REPÚBLICA PORTUGUESA PAG263.
MARCELLO CAETANO MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO 10ED VI PAG378.
Aditamento:
Texto Integral: B… intentou no TAF de Braga acção administrativa especial contra o Ministério da Justiça – indicando como contra interessado o Instituto de Registos e Notariado, E.P – onde formulou os seguintes pedidos:
a) que se declarasse nulo, ou se anulasse, o acto administrativo constante das al.ªs c) e d) do n.º 1 do art.º 15.º da Portaria 794-B/2007, de 23/07, ou
subsidiariamente
b) se declarasse a ilegalidade, com efeito circunscrito ao caso concreto, das al.ªs c) e d) do n.º 1 do art.º 15.º da Portaria 794-B/2007, de 23/07, ou ainda
subsidiariamente, como medidas minimizadoras do impacto do programa «Casa Pronta»
c) 1. que se condenasse a Administração a permitir o acesso da Autora às bases de dados registrais e de identificação civil públicas
2. que se determinasse a liquidação do IVA na 1.ª e 2.ª Conservatórias Prediais de Braga, e
cumulativamente
d) que se declarasse a ilegalidade, com efeitos circunscritos ao caso concreto, do art.º 16.º da Portaria 385/2004, de 16/04.
Para o que invocou a violação da CRP, designadamente das normas que garantem o direito à escolha e ao exercício da profissão, do princípio da protecção da confiança e da violação das regras da concorrência.
O Ministério da Justiça contestou defendendo inexistirem as ilegalidades apontadas pela Autora.
Ambas as partes exerceram o direito de alegar.
A Autora formulou as seguintes conclusões:
I. A Reforma e a Contra-Reforma
1. No ano de 2004, através do Decreto-Lei n.º 26/2004, o Estado Português empreendeu uma reforma política, legislativa e administrativa de grande alcance: a privatização da função notarial.
2. Os notários que não quisessem abdicar do exercício da sua própria profissão teriam necessariamente que aceitar a nova lógica privada e investir.
3. Como é sabido, o Governo, no âmbito da concretização do XVII Programa lançou o programa de simplificação legislativa: o tão famoso Simplex, com que pretendeu uma desburocratização e uma simplificação transversal.
II. A Desigualdade de Condições
4. O Estado não se limitou a esvaziar o conteúdo das funções notariais que em outro momento tinha querido assegurar, mas vem efectivamente fazer-lhes concorrência, em contornos que tornam impossível o exercício efectivo da profissão.
5. Entre tais contornos, encontram-se (i) o facto de os notários estarem sujeitos à prática de preços tabelados, enquanto o Governo oferece os seus serviços a um preço inferior; (ii) a diferença de habilitações exigida aos funcionários das conservatórias e aos notários; (iii) as quantias obrigatoriamente pagas pelos actos por si praticados, ao abrigo do art.º 16.º da Portaria n.º 385/2004; (iv) a omissão de liquidação de IVA por banda do Estado; (v) as burocracias (e seus custos) inerentes aos serviços prestados no cartório, que impedem os notários de oferecer os pacotes que o Governo oferece, e, no fim de tudo, (vi) o facto de os actos dos notários ainda estarem sujeitos ao controlo do conservador.
III. A lnviabilidade da Subsistência da Profissão
6. Perante a desleal actuação exposta, não haverá utente - por mais negligente ou pouco informado que seja - que continue a dirigir-se aos cartórios notariais, contra o que os notários nada podem.
7. E à Autora apenas resta a exclusividade de pouquíssimos actos, ao contrário do que o Réu alegou na Contestação.
IV. O Acto Impugnado
8. O acto/norma em crise determinou a prestação daqueles serviços nas Conservatórias do Registo Predial de Braga "tout court" e consiste o acto/norma pelo qual aquele procedimento foi definitivamente criado nas Conservatórias do Registo Predial de Braga.
V. Das Invalidades
9. As alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 15° da Portaria n.º 794-B/2007, de 23/07, ao procederem à aplicação do regime previsto no Decreto-Lei n.º 263-A/2007 a uma situação individual e concreta, violam o conteúdo essencial do direito fundamental ao exercício da profissão da aqui Autora e atentam, claramente, contra o princípio da protecção da confiança, princípio básico e incontornável de um Estado de Direito (cfr. art. 2.º da CRP).
10. Do artigo 47°, n.º 1, da CRP decorre que todos têm o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho.
11. Ao retirar o conteúdo da profissão notarial dos seus serviços administrativos e confiar essa tarefa a um notariado privado, o Estado vinculou-se a respeitar o direito, liberdade e garantia ao exercício desta profissão e a abster-se de adoptar quaisquer medidas que possam configurar uma concorrência desleal dos poderes públicos nas mesmas actividades.
12. Ora, ainda que a Constituição autorize uma intervenção legislativa restritiva da liberdade do exercício e de escolha da profissão, há, no entanto, um limite absoluto que o Estado Português, através dos seus actos normativos e executivos, demonstra desconhecer: nenhuma profissão "[...] pode ser extinta, por via directa ou indirecta, sem salvaguarda daquele mesmo interesse colectivo e dos direitos e legitimas expectativas do que a escolheram e exercem." (cfr. parecer do Prof. Doutor Jorge Miranda, junto aos autos).
13. Assim, os actos que instituem o "Casa Pronta", últimos actos de todo um processo de sucessiva descaracterização da profissão notarial, são nulos por vulneração da alínea d) do n.º 2 do artigo 133.º do Código do Procedimento Administrativo.
14. O qual só não se revela ostensivamente inconstitucional aos olhos de qualquer leigo, pela adopção da chamada "táctica do salame" pela qual por pequenos passos se vai delapidando o exercício de uma profissão.
15. De igual modo, os actos em causa reflectem uma violação do princípio da protecção da confiança, princípio fundamental do Estado de Direito.
16. Do princípio da protecção da confiança, enquanto dimensão subjectiva do princípio da segurança jurídica, decorre a protecção das expectativas legítimas dos cidadãos que confiaram na manutenção de um determinado quadro legislativo (cfr. art. 2.º da CRP).
17. E em particular quando essas expectativas foram estimuladas, geradas pelo próprio Estado.
18. A protecção e tutela constitucional da confiança pressupõem, grosso modo, o preenchimento de quatro pressupostos: i) a criação de uma base de confiança gerada pelo poder público; ii) a confiança legitima do cidadão na continuidade da política estadual; iii) o investimento de confiança pelo cidadão através de actos que a concretizam; iv) a dignidade da protecção da confiança, ou dito de outro modo, que a mudança de atitude do poder público não seja exigida pela protecção de valores superiores.
19. Ora, não podem subsistir dúvidas quanto à criação de uma base de confiança na manutenção da Reforma empreendida pelo Governo.
20. Com base no diploma resultante de um “contrato normativo” celebrado entre o Estado e os profissionais do notariado, a Autora reorientou a sua actividade profissional e fundou toda uma série de decisões pessoais e profissionais, fazendo investimentos de vida.
21. O que nos permite concluir com o Prof. Doutor Jorge Miranda que: “O interesse público de desburocratização (art. 267.º, n.º 1 da Lei Fundamental) e de desformalização e simplificação de uma gama numerosa de actos jurídicos não pode sobrepor-se, de qualquer maneira, lepidamente e sem condições, ao investimento de confiança realizado pelos notários."
22. E assim “[...] agindo como agiu (ou como parece continuar a agir) através do programa Simplex, o Estado faltou ao dever constitucional de boa fé, quebrou a confiança dos destinatários das suas normas e ofendeu o princípio da segurança jurídica" (cfr. Parecer junto aos autos), circunstância esta que, se não fere esses actos da invalidade mais forte (art. 133.º, n.º 1 do CPA), ao menos os infecta com a anulabilidade (art. 135.º do CPA).
23. Finalmente, e como resulta de todo o exposto, a actuação do Estado constitui uma violação flagrante, do disposto no artigo 81.º, al. f), CRP, segundo o qual a defesa da concorrência é uma das incumbências prioritárias do Estado e um dos princípios jurídicos fundamentais do ordenamento jurídico comunitário (cfr. artigos 4°, n.º 1 e 86° e ss. do TCE).
24. Não restam pois dúvidas - seja por violação da Constituição (concretamente do direito ao exercício e escolha da profissão, do princípio da protecção da confiança e do princípio da concorrência), seja pela violação do direito comunitário, seja pela violação da lei que os actos instituidores do programa Casa Pronta constantes das alíneas c) e d) do n.° 1 do artigo 15.º da Portaria n.° 794-B/2007, de 23 de Julho, são manifestamente inválidos!
O Ministério da Justiça concluiu as suas alegações do seguinte modo:
1) Na petição inicial a Autora faz referência a um denominado "Relatório dos Factos", por si alegadamente elaborado que acompanhava o requerimento da providência cautelar por si apresentado como Doc. n.º 1, e que não foi junto à p..r. por motivos de economia de meios, dando-se, contudo, como reproduzido para todos os efeitos legais;
2) Trata-se de uma exposição de factos que não integra o articulado respectivo, e antes um documento da autoria da parte, não podendo, nem devendo, ser contraditado;
3) No processo conducente à privatização do notariado jamais se garantiu aos notários que viessem a transitar para o sector privado o direito à manutenção do existente grau de formalização dos actos;
4) Era pública e notória a adopção de uma política, publicamente referida e revelada, que ia no sentido da simplificação de procedimentos, desformalização dos actos e da eliminação da obrigatoriedade de celebração de escrituras;
5) As medidas simplificadoras previstas no Dec-Lei n.º 263-A/2007, de 23/07, reflectem-se, no essencial, na prática de actos que - maioritariamente - nunca foram da competência dos notários;
6) Aliás, já desde 1993, com o Dec.-Lei n.º 255/93, de 15/07, que muitas das transmissões e onerações constantes do Dec-Lei n.º 263-A/2007 não se encontravam sujeitas à forma obrigatória de escritura pública;
7) A mesma simplificação de procedimentos foi alcançada com o Dec.-Lei n.º 36/2000, de 14/03, Dec-Lei n.º 64-A/2000, de 22/04, Dec-Lei n.º 237/2001, de 30/08, Dec-Lei n.º 28/2000, de 13/03 e o Dec-Lei n.º 30/2000, de 13/03;
8) A desformalização prevista no regime "Casa Pronta" não impede, por si só, que os notários continuem a ter um vasto campo de actuação, mesmo em relação aos actos que ali são dispensados de escritura pública;
9) Para além do facto dos oficiais de registo terem formação específica obrigatória - o que não é exigido aos funcionários dos notários - os documentos que titulam os negócios jurídicos abrangidos pelo regime "Casa Pronta" são previamente elaborados - modelos - pelo que a função do oficial não pode ser comparada à do notário na elaboração de uma escritura;
10) CRP não prevê qualquer elenco exaustivo ou mínimo de actos sujeitos a controlo notarial, exigindo apenas que sobre os mesmos recaia um controlo público, independentemente do mesmo se efectuar por uma ou mais autoridades administrativas;
11) Não foi abalado o princípio constitucional da confiança, pois que, o sacrifício decorrente da eventual redução dos proveitos financeiros emolumentares como consequência das medidas de simplificação/desformalização empreendidas, designadamente a da "Casa Pronta", apresenta como contrapartida inúmeras vantagens objectivas no plano do interesse geral e do interesse público;
12) No presuntivo conflito de interesses existente deverá prevalecer o princípio da liberdade constitutiva do legislador, cuja função possui a característica da revisibilidade, consentindo-se, em princípio, a alteração para o futuro dos regimes estabelecidos, em face da mudança das circunstâncias ou das opções democraticamente legitimadas;
13) De igual modo, não se verificam as apontadas violações das regras de concorrência, nomeadamente a que resultaria das disposições constantes do art.º 15.º da Portaria n.º 794-B/2007, de 23 de Julho;
14) As presuntivas violações configuram ilícitos contra-ordenacionais ou civis, nos termos da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho; sendo que aqueles são apreciados e decididos pela Autoridade da Concorrência, cabendo o seu escrutínio jurisdicional ao Tribunal de Comércio de Lisboa;
15) Ao qualificar o Instituto dos Registos e do Notariado como empresa, mais concretamente como uma empresa pública, a Autora evidencia o desconhecimento da caracterização do conceito de empresa em sede de direito da concorrência, bem como da caracterização da categoria da empresa pública numa óptica diversa de direito económico, comunitário e nacional;
16) A revisão do Dec-Lei n.º 558/99, de 17/12, pelo Dec-Lei n.º 300/2007, de 23/08, separa claramente os fundos e serviços autónomos de carácter empresarial ou até os institutos públicos com carácter híbrido e alguma componente empresarial - dos vários tipos legais de empresas públicas regulados nesse regime, sendo seguro que o IRN não é subsumível nesse tipo de empresas públicas;
17) A Autora não demonstrou, face à qualificação por si dada ao IRN de empresa pública, se este Instituto preenchia os requisitos subjacentes à aplicação dos regimes derrogatórios do direito da concorrência, por força de imperativos de interesse económico geral, constantes do n.º 2 do art.º 3.° da Lei n.º 18/2003 e do n.º 2 do art.º 86.º do Tratado CE;
18) Ainda no domínio das regras da concorrência, a A. invoca a prática de supostos preços predatórios por parte do IRN, sem que tenha demonstrado quais os custos médios totais (average total costs) e os custos médios variáveis (average variable costs) de empresas dominantes e de empresas concorrentes;
19) Neste momento ainda não se encontram totalmente carregadas as bases de dados do Registo Civil e do Registo Predial, pelo que a informação passível de ser recolhida nas mesmas ainda não está em condições de ser disponibilizada, apenas se encontrando concluído o processo de informatização do Registo Comercial;
20) O IRN e os serviços dele dependentes só têm actualmente possibilidade de aceder às escrituras existentes nos cartórios que se encontram a funcionar ao abrigo do Estatuto do Notariado, sejam estas lavradas pelo actual notário privado ou as já constantes do acervo documental em cuja titularidade esse notário sucedeu, mediante o pagamento do custo de uma certidão.
Apresentadas as alegações o Sr. Juiz Presidente do TAF de Braga procedeu, nos termos do art.º 93.º/1 do CPTA, ao reenvio prejudicial do processo para este Tribunal requerendo que fosse emitida pronúncia sobre as seguintes questões:
a) A aplicação dos procedimentos criados pelo DL 263-A/2007, de 23/07, é violadora do princípio da confiança?
b) A aplicação desses princípios viola o princípio da concorrência?
Esse pedido de reenvio foi admitido pelo Acórdão de fls. 396 a 399.
Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO
I. MATÉRIA DE FACTO.
Julgam-se provados os seguintes factos:
1. Em 3/12/2002, durante o mandato do XV Governo Constitucional, deu entrada na Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 35/IX relativa à autorização do Governo para aprovar o novo regime jurídico do Notariado e à criação da Ordem dos Notários (doc. 4 junto à Oposição).
2. Em 18/12/2002, deu entrada na Assembleia da República o Projecto de Lei de Bases da Reforma do Serviço Público de Registo e Notariado da autoria de um grupo de deputados do Grupo Parlamentar do Partido Socialista (Projecto de Lei n.º 177/IX, doc. 5 junto à Oposição).
3. Relativamente às identificadas Proposta de Lei e Projecto de Lei a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias elaborou um Relatório, de que foi relator o Sr. Deputado C…, publicado no Diário da Assembleia República, II Série - A, n.º 60, de 23/01/2003, páginas 2415 a 2418, onde se pode ler:
"2.3.3. O XIV Governo retirou do seu programa a privatização do notariado optando pela "privatização de certos actos notariais" - cfr. o Decreto-Lei n.º 28/2000, de 13/03, que atribuiu competência para certificar a conformidade de fotocópias com os documentos originais a outras entidades que não o Notário, o Decreto-Lei n.º 36/2000, de 14/03, que dispensou a escritura pública para certos actos das sociedades, sociedades unipessoais por quotas, EIRL e Agrupamentos Complementares de Empresas, o Decreto-Lei n.º 64-A/2000, que dispensou a escritura pública para certos arrendamentos, o Decreto-Lei n.º 108/2001, de 6/04, que dispensou a escritura pública para certos actos das cooperativas, e o Decreto-Lei n.º 237/2001, de 13/10, que também dispensou a escritura pública para outros actos como, por exemplo, a constituição de sociedades de advogados (excepto se houver entrada de imóveis)." - (Doc. 6 junto à Oposição).
4. Relativamente a estes dois projectos três Deputados do Grupo Parlamentar do PS elaboraram um documento denominado "Avaliação do processo legislativo relativo às iniciativas do Governo e do PS na sequência das audições parlamentares com os parceiros sociais" onde se refere terem sido ouvidas na Comissão de ACDLG as seguintes entidades: Ordem dos Advogados, Câmara dos Solicitadores, Associação Portuguesa de Notários, Associação Sindical dos Conservadores dos Registos, Sindicato dos Trabalhadores dos Registos e do Notariado, Confederação Industrial Portuguesa, Associação Industrial Portuguesa, Associação Nacional de Jovens Empresários, Associação Nacional de Jovens Advogados, Federação Nacional dos Sindicatos da Função Pública.
5. Nesse documento foram expressas as seguintes conclusões:
- A identificação da PL 35/IX do Governo com o essencial do modelo vigente no regime dos registos e do notariado;
- A defesa do paradigma vigente por parte dos representantes dos notários e dos conservadores;
- A identificação do PL 177/IX do PS com uma reforma profundamente inovadora quanto à simplificação dos actos, no controlo único preventivo da legalidade e ao registo único, desformalizado e universalizado;
- A valorização positiva do modelo de reforma apresentado no projecto do PS, por parte da Ordem dos Advogados, Câmara dos Solicitadores, Confederação Industrial Portuguesa, Associação Industrial Portuguesa, Associação Empresarial de Portugal e Associação Nacional de Jovens Empresários. (Doc. 7 junto à Oposição).
6. Em 22/01/2003, teve lugar a discussão conjunta, na generalidade, das referidas Proposta de Lei e Projecto de Lei, cujas actas se encontram publicadas no Diário da Assembleia República, I Série, n.º 77, de 23/01/2003, páginas 3245 a 3264 (doc. 8 junto à Oposição).
7. A Sr.ª Ministra da Justiça, Drª. D…, no discurso inicial desse debate afirmou:
Sabemos, Sr.ªs e Srs. Deputados, que esta é uma reforma complexa que exige estudo, acompanhamento e avaliação. Neste contexto, o Governo não esquece ainda a necessidade de modernizar legislação e simplificar procedimentos tendo em vista a melhoria deste serviço público que é útil aos cidadãos e necessário à economia ....
A presente proposta de lei dá aos funcionários não uma nem duas mas três garantias. A saber: os que pretenderem transitar para os notários privados têm a possibilidade de fazê-lo, os que preferirem manter-se na função pública podem ficar e os que tiverem dúvidas podem ir trabalhar durante cinco anos para os notários privados e, no fim, ficar ou regressar à função pública. .....
Se o Estado não receber tanto e gastar menos e os cidadãos e as empresas ganharem tempo e pouparem dinheiro o saldo é positivo (pág. 3246) (.. .)
"Quanto à questão da desburocratização (...) Nós não queremos apenas liberalizar esta actividade também temos como meta a simplificação. a modernização e a desburocratização." (pág. 3248)
8. O Sr. Deputado E… (PS), em resposta, perguntou:
"Por isso pergunto-lhe: por que é que a Sr.ª Ministra não ponderou - e não acha que vale a pena ainda ponderar? - o que deva ser feito, primeiro, em matéria de simplificação dos actos, segundo, em matéria de reflexão sobre as exigências, porventura excessivas, do duplo controle da legalidade justamente ao nível do controle preventivo da legalidade dos actos, e, terceiro, no que diz respeito à melhor utilização dos meios informáticos e de digitalização dos dados. (pág. 3250).
9. O Sr. Deputado F…, na apresentação do Projecto 177/IX afirmou:
“Propomos o fim desta duplicação unificando o controlo da legalidade do acto no momento do registo." (...)
Propomos que só o registo seria obrigatório sem prejuízo, naturalmente, de as partes, querendo, por sua livre e exclusiva vontade, poderem reforçar a segurança, contratando serviços notariais, desde logo, para os actos não sujeitos a registo." (pág. 3253) (...)
O Estado deve assegurar o controlo a que obriga. O Estado deve confiar à iniciativa privada o controlo que resulta da livre vontade das partes. Ao Estado o que resulta de imposição do Estado; ao mercado o que resulta da livre escolha do mercado. ..... Significa isto que o controlo público se unifica na pessoa do conservador sendo o controlo notarial facultativo e assegurado em regime de profissão liberar..... “ (pág. 3254).
10. E o mesmo Sr. Deputado F… em resposta a intervenções de outros parlamentares fez, ainda, as seguintes afirmações:
"Pergunta-me se queremos acabar com a actividade notarial. Não queremos acabar com a actividade notarial! Agora há uma coisa que sabemos, que é a seguinte: as actividades existem se desempenham uma função útil.
O que os senhores propõem é o seguinte: os notários, que hoje são públicos, passam a ser privados, mas os cidadãos estão obrigados a contratar os serviços daqueles privados, porque o Estado os obriga a isso.
O que nós dizemos é diferente. Dizemos o seguinte: o que o Estado obriga, o Estado tem de assegurar. O Estado obriga a um controlo, o Estado assegura um controlo; o Estado obriga a dois controlos, o Estado assegura dois controlos. Entendemos que não é necessário um duplo controlo".
"Pergunta se queremos acabar com os notários respondo-lhe que não. Agora os notários existirão na medida em que a sua actividade seja útil às pessoas. E a medida da utilidade para as pessoas é a medida em que as pessoas por sua livre escolha contratam, ou não, os seus serviços."
....
Estava eu a dizer que outra coisa completamente diversa é o Estado dizer assim: o que nós consideramos suficiente para o controlo da legalidade é o controlo que é feito no acto de registo. O controlo que é feito no acto notarial é facultativo. Nestas circunstâncias, entendo que não faz sentido o Estado estar no facultativo e no obrigatório. O Estado deve estar a satisfazer o serviço que ele obriga as pessoas a contratar e deixar que a liberdade das pessoas crie, se assim for o caso, um mercado para a prestação desses serviços em regime de Direito Privado." (pág. 3255, 3256, 3257)
.....
Então, vamos impor que o país se sujeite a um acto, que em bom rigor consideramos que não é necessário para a protecção da segurança e da certeza jurídicas, para assegurar o rendimento a 300 pessoas? ... Mas não posso aceitar que imponhamos por lei a obrigatoriedade de os cidadãos contratarem serviços notariais para garantir a subsistência de 300 Notários, que podem e devem ser integrados na carreira de conservadores, se não quiserem exercer a profissão em regime de profissão liberal" (pg. 3264).
11. A votação na generalidade dos dois diplomas referidos teve lugar no dia 23 de Janeiro de 2003:
A Proposta de Lei n.º 35/IX foi aprovada com votos favoráveis do PSD e do CDS-PP, votos contra do PCP, do BE e de os VERDES e abstenção do PS;
O Projecto de Lei n.º 177/IX foi aprovado com votos favoráveis do PS, votos contra do PCP, do BE e de os VERDES e abstenção do PSD.
12. Foi assim aprovada na generalidade a iniciativa legislativa do Grupo Parlamentar do Partido Socialista onde se previa a eliminação da obrigatoriedade de celebração de escrituras públicas.
13. Em 3 de Julho de 2003, procedeu-se à votação final global do texto apresentado pela 1.ª Comissão relativamente à PL 35/IX, o qual foi aprovado com votos a favor do PSD e CDS-PP e votos contra do PS, PCP, BE e os VERDES.
14. Na sequência desta votação O Sr. Deputado F…, então Líder Grupo Parlamentar do Partido Socialista, fez uma declaração de voto da qual constava:
"É, por isso, essencial que fique muito claro que não reconhecemos os direitos adquiridos ou, sequer, a expectativa legítima à manutenção do duplo controlo.
Quem, agora, optar pela privatização sabe que o monopólio legal tem os dias contados. Não poderá invocar desconhecimento ou alteração imprevista das circunstâncias. O risco fica, desde já, e muito claramente, definido.
A desburocratização da sociedade e a competitividade da economia não ficarão presas aos interesses corporativos que a actual maioria serve e que uma próxima maioria revogará." (doc. 11 junto à Oposição).
15. Em 22 de Agosto de 2003 foi publicada a Lei n.º 49/2003, que autoriza o Governo a aprovar o novo regime jurídico do notariado e a criar a Ordem dos notários.
16. Em 4 de Fevereiro de 2004, no uso da autorização legislativa concedida por essa Lei, foram publicados o Decreto-Lei n.º 26/2004, que aprovou o Estatuto do Notariado e o Decreto-Lei nº 27/2004, que criou a Ordem dos Notários e aprovou o respectivo Estatuto;
17. Em 21 de Abril, foi publicada a Portaria n.º 398/2004, que aprovou o Regulamento de Atribuição do Título de Notário.
18. Em 22 de Dezembro de 2004, mediante decreto presidencial, foi dissolvida a Assembleia da República, tendo sido convocadas eleições legislativas para 20/02/2005, que o Partido Socialista venceu com maioria absoluta.
19. Nas “Bases Programáticas” com que o PS se apresentou a essas eleições constava o seguinte:
"No interesse conjunto dos cidadãos e das empresas, serão simplificados os controlos de natureza administrativa, eliminando-se actos e práticas registrais e notariais que não importem valor acrescentado e dificultem a vida do cidadão e da empresa (como sucede com a sistemática duplicação de controlos notariais e registrais). Serão ainda extintas as circunscrições e competências territoriais, nomeadamente em matéria de registos, tendo em conta a desmaterialização e a informatização de procedimentos.” (doc. 12 junto à Oposição).
20. Essa passagem passou a constar do Programa do XVII Governo.
II. O DIREITO.
B… propôs, no TAF de Braga, contra o Ministério da Justiça, acção administrativa especial pedindo que (1) se declarasse a nulidade ou, no mínimo, que se anulasse o acto administrativo constante das al.ªs c) e d) do n.º 1 do art.º 15.º da Portaria 794-B/2007 - que mandou que se aplicassem os procedimentos previstos no DL 263-A/2007 às 1.ª e 2.ª Conservatórias do Registo Predial de Braga - e, cumulativamente, (2) que se declarasse a ilegalidade, com efeitos circunscritos ao caso concreto, do art.º 16.º da Portaria 385/2004, de 16/04. Subsidiariamente – no caso do primeiro daqueles pedidos improceder - pediu (a) a condenação da Administração a permitir-lhe o acesso às bases de dados registrais e de identificação civil públicas e (b) que se ordenasse a liquidação do IVA naquelas Conservatórias Prediais de Braga.
Em resumo, alegou:
- O Estado Português, através do DL 26/2004, iniciou uma importante reforma do notariado privatizando a respectiva função e estimulando os notários – até aí integrados na Administração Pública – a exercer a sua actividade como profissionais liberais.
- Convencidos que o Estado se comportava como uma pessoa de bem e que, por isso, iria manter por tempo razoável aquela legislação, a significativa maioria dos notários passou a exercer a sua actividade como profissionais liberais o que, para além do mais, implicou um significativo investimento de meios financeiros.
- O Estado, porém, frustrou essa legítima expectativa ao lançar, através do DL 263-A/2007, de 23/07, um vasto programa de desburocratização e simplificação do comércio jurídico, tornando desnecessários muitos dos procedimentos que eram obrigatórios, o que comprometeu a viabilidade da própria profissão.
- Não só porque esvaziou o conteúdo da actividade notarial como porque dispensou a realização de muitos dos actos que a integravam ou passou a realizá-los a preços inferiores aos, legislativamente, tabelados para os notários. Tal acontece, por ex., no procedimento destinado a desburocratizar e a simplificar as transmissões e onerações de imóveis – vulgarmente designado por “Casa Pronta” – no âmbito do qual foram praticados os actos que ora se querem ver anulados.
- Ao assim proceder o Estado não só violou o princípio da protecção da confiança, princípio fundamental do Estado de Direito.
- Como também violou o princípio da concorrência.
O Sr. Juiz Presidente do TAF de Braga - alegando que as questões aqui suscitadas para além de serem novas e de difícil resolução eram comuns a outros processos - procedeu, ao reenvio prejudicial previsto no art.º 93.º/1 do CPTA, decisão que este STA sufragou pelo Acórdão de fls. 396 a 399).
Cumpre, assim, analisar e decidir as questões identificadas naquele reenvio, as quais são as seguintes:
a) A aplicação dos procedimentos criados pelo DL 263-A/2007, de 23/07, é violadora do princípio da confiança?
b) A aplicação desses procedimentos viola o princípio da concorrência?
1. O XV Governo Constitucional decidiu empreender uma significativa reforma do notariado requerendo para o efeito autorização à Assembleia da República, o que provocou um esclarecedor debate parlamentar sobre o conteúdo e o alcance da função notarial onde se confrontaram duas visões diferentes sobre a matéria. A que prevaleceu - cujos princípios vieram a enformar o DL 26/2004 - que manteve a obrigatoriedade de celebração de escritura como forma de transmissão de imóveis, e a defendida pelo Grupo Parlamentar do PS onde se sustentava a desnecessidade daquele acto notarial e “que só o registo seria obrigatório sem prejuízo, naturalmente, de as partes, querendo, por sua livre e exclusiva vontade, poderem reforçar a segurança, contratando serviços notariais, desde logo, para os actos não sujeitos a registo.” Vd. ponto 9.º da matéria de facto.
Todavia, e independentemente dessa divergência, aquele diploma consagrou a ideia, consensual, de uma nova figura de notário a quem foi atribuída uma dupla função “a de oficial, enquanto depositário de fé pública delegada pelo Estado, e a de profissional liberal, que exerce a sua actividade num quadro independente” Vd. o respectivo preâmbulo e n.º 2 do art.º 1.º do citado DL. pelo que, a partir daí, o notário, muito embora pudesse exercer a sua actividade como profissional liberal, ficou a deter prerrogativas de ordem pública e, nessa medida, dependente do Ministério da Justiça em tudo o que respeitasse à fiscalização e disciplina da sua actividade revestida de fé pública. Para além disso - e com vista a evitar perturbações desnecessárias - o legislador quis que a introdução daquela reforma fosse gradual estabelecendo, por isso, um período transitório de dois anos, durante o qual coexistiriam “notários públicos e privados, na dupla condição de oficial público e profissional liberal, no termo do qual só este último sistema vigorará. Durante este período transitório, os notários terão de optar pelo modelo privado ou, em alternativa, manter o vínculo à função pública, sendo, neste caso, integrados em conservatórias dos registos.” Idem. Permitindo-se-lhes que a sua transferência para o regime de profissão liberal fosse feita ao abrigo de uma licença sem vencimento com a duração de cinco anos, com garantia do direito à sua reintegração no termo desse período. – vd. seu art.º 107.º.
E, porque assim, uma significativa maioria dos notários transitou da função pública para a profissão liberal, abrindo os seus próprios cartórios e suportando as despesas que essa transição obrigou.
1. 1. Porém, o Governo que aprovou o DL 26/2004 foi substituído e o novo Executivo prosseguiu aquela reforma fazendo publicar um conjunto de diplomas que vieram afectar o exercício da profissão de notário. Entre eles se conta o DL 263-A/2007, de 23/07, que instituiu um procedimento especial para transmissão, oneração e registo de imóveis, onde se prevê a possibilidade das operações e actos necessários a esse comércio jurídico ser feita num único balcão perante um único atendimento, eliminando-se desta forma a necessidade da mesma ser feita através de escritura pública Para alem destes foram publicados os DL.s n.º 125/2006, de 29/06, relativo à constituição on line de sociedades comerciais e civis sob a forma comercial, n.º 8/2007, de 17/01, que admitiu a possibilidade de, para além dos notários, outras entidades poderem certificar documentos e n.º 40/2007, de 24/08, que consagra um regime especial de constituição de associações..
“Com o procedimento especial de transmissão, oneração e registo de imóveis que agora se aprova os cidadãos ou empresas interessadas passam a poder realizar um vasto conjunto de actos em atendimento presencial único, que antes implicavam várias deslocações a diferentes entidades. Passa a ser possível, num único atendimento, por exemplo, a celebração do contrato de alienação ou oneração do imóvel perante um oficial público, o pagamento dos impostos devidos, como o imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT), a obtenção da realização imediata de todos os registos, a solicitação da alteração da morada fiscal e da isenção do imposto municipal sobre imóveis (IMI).” – Vd. o respectivo preâmbulo.
Ora, é esse aprofundamento desformalizador e desburocratizador dos procedimentos relativos à transmissão e oneração de imóveis levado a efeito pelo DL 263-A/2007 - que acarretou uma importante diminuição dos actos que os notários eram, obrigatoriamente, chamados a realizar, com a natural diminuição dos seus rendimentos - que a Autora aqui ataca por duas vias:
- Por um lado, sustentando que as medidas nele previstas se traduziam na violação do princípio da protecção da confiança uma vez que defraudavam as legítimas expectativas na manutenção do anterior quadro legislativo e na obrigatoriedade da prática dos actos notariais nele previstos. O que era agravado pelo facto do Estado ter estimulado os notários a exercer a sua função como profissionais liberais e, depois de obtido esse objectivo, de forma inesperada e radical, ter esvaziado o conteúdo das suas funções ao ponto de pôr em causa a própria subsistência da profissão.
- E, por outro, sustentando que os novos procedimentos constituíam uma violação do princípio da concorrência porquanto (1) obrigavam os notários a cobrarem pelos seus actos preços superiores aos praticados pelo Estado, situação que não podia ser ultrapassada visto os seus preços estarem tabelados por lei; (2) obrigavam os notários a ter uma licenciatura, exigência que não era feita aos funcionários das conservatórias; (3) previam o pagamento de um preço pelo acesso à informação do Ministério da Justiça, do Arquivo Público e de outros Serviços Públicos; (4) não impunham que Estado cobrasse o IVA; (5) impedia-os de oferecer os pacotes que o Governo oferecia por causa das burocracias (e seus custos) inerentes aos serviços prestados e, no fim de tudo, (6) sujeitava os seus actos ao controlo do conservador.
Vejamos se ao assim litigar a Recorrente tem razão, começando-se por analisar se os procedimentos previstos no citado DL 263-A/2007 se traduzem numa violação do princípio da confiança.
2. O Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado que o Estado de Direito democrático consagrado no art.º 2° da CRP envolve "uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas", razão pela qual "a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica". – Acórdão n.º 556/03, de 12/11/2003, proferido no processo n.º 188/03.
O apontado normativo constitui, assim, um limite à liberdade do legislador visto fazer depender a constitucionalidade das normas que o mesmo faça publicar da sua conformidade com o princípio nele postulado, o que quer dizer que as leis que se traduzam numa afectação inadmissível, arbitrária, demasiado opressiva ou excessivamente onerosa de expectativas jurídicas criadas aos cidadãos serão inconstitucionais. O que quer dizer que nem sempre a violação das expectativas legítimas determinará a inconstitucionalidade da lei visto que essa violação só é apta a produzir este efeito:
“a) quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dele constantes não possam contar; e ainda,
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.° 2 do artigo 18° da Constituição, desde a 1.ª revisão) " - Acórdão n.° 287/90 do Tribunal Constitucional.
Acentuando a necessidade de "proceder a um justo balanceamento entre a protecção das expectativas dos cidadãos decorrente do princípio do Estado de direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado (...)" aquele Tribunal tem dito que:
Um tal equilíbrio, como o Tribunal tem assinalado, será alcançado nos casos em que, ocorrendo mudança de regulação pela lei nova, esta vai implicar, nas relações e situações jurídicas já antecedentemente constituídas, uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico que regia a constituição daquelas relações e situações. Nesses casos, impor-se-á que actue o sub-princípio da protecção da confiança e segurança jurídica que está implicado pelo princípio do Estado de direito democrático, por forma a que a nova lei não vá, de forma acentuadamente arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e segurança que todos têm de respeitar.
Como reverso desta proposição, resulta que, sempre que as expectativas não sejam materialmente fundadas, se mostrem de tal modo enfraquecidas "que a sua cedência, quanto a outros valores, não signifique sacrifício incomportável" (cfr. Acórdão n.° 365/91 no DR, 2.ª Série, de 27/08/1991), ou se não perspectivem como consistentes, não se justifica a cabida protecção em nome do primado do Estado de direito democrático. " – Ac. do Tribunal Constitucional n.º 156/95 Diário da República, II Série, de 8 de Junho de 1995
O que quer dizer que “não é suficiente que se demonstre que um novo regime legal vem afectar expectativas dos seus destinatários para que, automaticamente, se conclua pela sua inconstitucionalidade por violação do referido princípio da confiança jurídica. Essencial é ainda que essas expectativas sejam consistentes de modo a justificar a protecção da confiança e, por outro, que na ponderação dos interesses público e particular em confronto, aquele tenha de ceder perante o interesse individual sacrificado, o que acontecerá sempre que as alterações não forem motivadas por interesse público suficientemente relevante face à Constituição (cf. art° 18°, n.° 2 e 3), caso em que deve considerar-se arbitrário o sacrifício excessivo da frustração de expectativas". – Vd. o já citado Acórdão n.º 556/03, de 12/11/2003 No mesmo sentido podem, ainda, ver-se os Acórdãos n.º 625/98, de 3-11-98, proferido no processo n.º 816/96, n.º 684/98, de 15-12-98, proferido no processo n.º 638/97; n.º 160/00, de 22-3-2000, proferido no processo n.º 843/98; n.º 109/02, de 5-3-2002, proferido no processo n.º 381/01; n.º 128/02, de 14-3-2002, proferido no processo n.º 382/01..
Nesta conformidade, pode afirmar-se que, muito embora seja certo que “o legislador tem um dever de boa fé perante os destinatários das normas que edite e estes o direito de verem salvaguardadas as expectativas que aquelas tenham provocado Prof. Jorge Miranda no douto Parecer junto aos autos., também o é que, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional que aqui se acolhe, só pode haver violação desse direito quando a alteração introduzida se tenha traduzido numa mudança radical, inesperada, excessivamente onerosa e violadora de expectativas legítimas, consolidadas e consistentes dos cidadãos afectados. De resto, importa ainda ressaltar que, nas alterações destinadas a valer apenas nas situações futuras, o legislador tem uma liberdade conformativa quase total sendo certo que o mesmo, por outro lado, está vinculado à prossecução do interesse público e este pode exigir o sacrifício dos interesses e expectativas, ainda que legítimas, dos particulares.
3. Fixado o sentido e o alcance do princípio da protecção da confiança, importa responder concretamente à questão que nos foi posta pelo TAF de Braga qual seja a de saber se os procedimentos previstos no DL 263-A/2007 introduzidos, a título experimental, em algumas Conservatórias do Registo Predial, designadamente nas 1.ª e 2.ª Conservatórias daquela cidade, pelo art.º 15.º da Portaria 794-B/2007 produziu uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária ou demasiado onerosa, violadora das legítimas expectativas dos notários que trocaram o exercício da sua actividade na esfera pública pelo exercício da mesma actividade como profissionais liberais e se, nessa medida, tal alteração se configura como uma violação do disposto no art.º 2.º da CRP.
A CRP não contém nenhuma referência à profissão de notário ou, tão pouco, ao que se deve entender por acto notarial o que quer dizer que a substância da sua actividade não se encontra constitucionalmente balizada e, correspondentemente, que as únicas limitações com que o legislador ordinário se confronta quando tem de legislar sobre essa profissão ou actividade são as que resultam dos princípios fundamentais constantes daquele Texto. E, se assim é, só se poderia concluir pela inconstitucionalidade dos actos em que a reforma operada por aqueles diplomas se consubstanciou se os mesmos violassem algum desses princípios fundamentais, maxime o da protecção da confiança.
E, porque assim, não se poderá censurar o legislador se este ao proceder à reforma do notariado lhe retirou a importância que ele tinha, pois que essa censura só seria legítima se, como se referiu, essa reforma envolvesse a violação arbitrária, desproporcional e intolerável de expectativas legítimas, consistentes e consolidadas que haviam sido criadas ou estimuladas pelo Estado àqueles profissionais. Sendo certo que “nesta avaliação devem ser devidamente tidos em conta dados como o merecimento e dignidade objectiva da protecção da confiança que o particular depositava no sentido da inalterabilidade de um quadro legislativo que o favorecia, o peso relativo do interesse público que conduziu à alteração legislativa, a relevância dos interesses dos particulares e a intensidade da sua afectação e, não menos importante, a própria margem de livre conformação que deve ser deixada ao legislador democrático do Estado de Direito.” Jorge Reis Novais in “Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa” pg. 263.
Ora, podemos desde já antecipar, que o legislador dos apontados diplomas não cometeu a ilegalidade que se lhe imputa.
3. 1. O DL 263-A/2007, de 23/07 - vulgarmente designado por Casa Pronta - pôs em prática os princípios defendidos pelo Grupo Parlamentar do PS aquando do debate que teve lugar no Parlamento a propósito da aprovação do DL 26/2004, desburocratizando e simplificando de forma significativa os procedimentos destinados à transmissão de imóveis, designadamente através da supressão da necessidade de escritura pública e da consequente dispensa da intervenção do notário nesse procedimento. O que leva a Autora a sustentar que tais alterações se traduziram no esvaziamento das funções notariais e, por via disso, na violação das legítimas e consistentes expectativas que os notários tinham na manutenção do quadro legislativo anterior. O que, agravado pelo estímulo recebido do Estado para exercerem a sua actividade como profissionais liberais, se traduzia na violação do princípio da protecção da confiança.
Todavia, sem razão.
Com efeito, e desde logo, o DL 263-A/2007 não buliu na substância da função notarial visto o notário continuar a ser considerado como um oficial público em que é depositada fé pública com competência para praticar os actos que, anteriormente, eram indispensáveis na transmissão e oneração de imóveis.
Depois, este diploma ao aprofundar a desburocratização e a simplificação dos procedimentos relativos àquela transmissão não impediu que ela pudesse continuar a ser feita através de escritura - desde que fosse esse o desejo dos interessados - nem desvalorizou a importância da intervenção notarial já que, tendo a mesma lugar, fica dispensado o controlo substancial da sua legalidade aquando da realização do respectivo registo, o qual ficará remetido a aspectos meramente formais.
Acresce que, tendo em conta o ocorrido no mencionado debate parlamentar, as alterações introduzidos pelo identificado diploma não só não se apresentaram como imprevisíveis e inesperadas (vd. pontos 7 a 14 do probatório) como também não se pode considerar que elas sejam inadmissíveis, arbitrárias ou demasiado onerosas e que se apresentam como violadoras das legítimas expectativas dos notários. O que, dito de outra forma, quer significar que aquele DL mais não fez do que introduzir alterações que um notário atento, previdente e cauteloso poderia antecipar, as quais por não terem sido radicais, inesperadas ou intoleráveis não se traduziram na violação do princípio da protecção da confiança.
Finalmente, ainda se dirá que a lei estabeleceu um período transitório durante o qual os notários poderiam fazer a sua opção pelo modelo público ou pelo exercício da função como profissional liberal e permitiu-lhes que a sua transferência para este último regime fosse feita ao abrigo de uma licença sem vencimento com a duração de cinco anos, com garantia do direito à sua reintegração no termo desse período, o que quer dizer que, por um lado, o legislador se preocupou com a segurança e a sobrevivência futura daqueles que optassem pelo modelo privado e, por outro, que essa possibilidade afastava as incertezas e os riscos inesperados e desfavoráveis que se pudessem verificar.
A não se entender assim estar-se-ia a contrair de forma intolerável a liberdade conformadora do legislador e, dessa forma, impedir que um Governo democraticamente eleito pudesse aplicar o seu programa eleitoral e fazer as reformas que os eleitores sufragaram.
Acompanham-se, assim, as razões expostas pelo Prof. Vieira de Andrade no seu Parecer, as quais, pelo seu acerto e concisão, se transcrevem:
“Desde logo, não existiu nenhuma garantia formal, por parte do legislador, de manutenção do contexto jurídico em que se desenvolve a actividade notarial, designadamente no que respeita ao elenco de actos sujeito a escritura pública no novo regime.
Depois, o contexto histórico também não era de molde a alimentar expectativas nesse plano, tendo em conta as propostas apresentadas pelo maior partido da oposição -. e, portanto, eventual futuro governo - no âmbito do processo legislativo, que correspondem fundamentalmente às específicas alterações em curso, orientadas no sentido da eliminação e simplificação dos actos notariais e registais.
Além disso, trata-se de uma alteração do elenco de actos sujeitos a escritura pública, na sequência de uma política de simplificação, e não de uma alteração paradigmática do regime do notariado latino, ainda que possa ter, na prática, efeitos significativos sobre a atractividade da profissão e suscite a incerteza sobre a própria viabilidade financeira dos cartórios notariais.
Por fim, a própria previsão legal de um período de transição e de medidas provisórias - designadamente da faculdade concedida aos notários e funcionários de reponderação, durante 5 anos, da opção feita pelo notariado privado, em detrimento da integração nos serviços oficiais - indicia, ela própria, a existência de uma incerteza e de um risco, que incluem a previsibilidade de alterações desfavoráveis.
Não se pode, assim, falar de um inaceitável efeito-surpresa, em termos que possam pôr em causa a liberdade de conformação do legislador e a consequente validade das respectivas opções políticas.
E não há, por isso, também por esta via, uma violação intolerável de uma expectativa juridicamente garantida, que tome ilegítima a referida opção do legislador.
Na realidade, na falta de uma garantia supra-legislativa de uma instituição ou do núcleo de um regime legal, não se pode afirmar, em geral, o direito das pessoas à manutenção dos regimes jurídicos normativos aplicáveis às relações duradouras - o carácter normativo de um regime implica a sua modificabilidade objectiva pelos órgãos competentes, sem prejuízo da eventual constituição de direitos individualmente adquiridos, quando se verifiquem os respectivos pressupostos.
A confiança depositada na estabilização do objecto da actividade notarial por parte dos profissionais que apostaram na privatização, a comprovar-se suficientemente consistente para ser digna de protecção jurídica, não seria, pois, na ausência de uma garantia constitucional, só por si, suficiente, para excluir a legitimidade do legislador para eliminar a obrigatoriedade da celebração de escrituras públicas, no desenvolvimento da política de simplificação de processos de transmissão de bens imóveis.
Num conflito assim desenhado entre os princípios, terá de prevalecer o princípio da liberdade constitutiva do legislador, cuja função possui, como sempre têm sublinhado a doutrina e a jurisprudência, a característica da autorevisibilidade, permitindo, em princípio, a alteração para o futuro dos regimes estabelecidos, em face da mudança das circunstâncias ou das opções democraticamente legitimadas.”
Está, assim, respondida a primeira das questões que nos foram colocadas.
4. O TAF de Braga quer, também, saber se aplicação daqueles procedimentos viola o princípio da concorrência visto a Autora defender que a intervenção do Instituto de Registos e Notariado (doravante IRN) na transmissão de imóveis se traduz numa actividade de “prestação de serviços de registos e notariados, de forma separada ou combinada, mediante remuneração”, onde assume a veste “de operador económico que se encontra a prestar serviços no mercado. Mais ainda, sendo parte dos serviços que o IRN presta serviços que os notários privados também prestam (ou que deixaram de poder fazê-lo em consequência da legislação discriminatória entretanto adoptada) terão, necessariamente, de ser assim também entendidos como actividades económicas quando prestados pelo IRN.” Sendo assim, e sendo que, “em razão da lei, o IRN detém o exclusivo para prestar serviços de registo e, em particular, para prestar os três pacotes combinados, nomeadamente a «Empresa da Hora», «Casa Pronta» e «Balcão Herança e Sucessões»” aquele Instituto funciona como uma empresa pública e a sua actividade, por lhe terem sido concedidos direitos exclusivos, viola a Lei da Concorrência.
A alegação da Autora parte, assim, do pressuposto de que o IRN é uma empresa pública que desenvolve uma actividade económica concorrencial da actividade notarial e que ao fazê-lo viola o princípio da concorrência já que ela, ao invés daquele, se encontra obrigada (1) a cobrar pelos seus actos preços superiores aos praticados pelo IRN; (2) a ter habilitações académicas (licenciatura) não exigidas aos funcionários das conservatórias; (3) a pagar um preço pelo acesso à informação do Ministério da Justiça, do Arquivo Público e de outros Serviços Públicos; (4) a cobrar IVA; (5) impedida, por causa das burocracias e dos custos inerentes, de oferecer os pacotes que o Governo pode oferecer e, no fim de tudo, (6) a ver os seus actos sujeitos ao controlo do conservador.
Será que ao assim litigar lhe assiste razão?
A resposta, como se verá, é negativa.
4. 1. O princípio da concorrência - constitucionalmente consagrado nos art.ºs 81/e) Cujo teor é o seguinte:Incumbe prioritariamente ao Estado no âmbito económico e social assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização monopolistas e a reprimir os abusos da posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral”. e 99.º/a) e c) Que têm a seguinte redacção: “São objectivos da política comercial: a) a concorrência salutar dos agentes mercantis; c) o combate às actividades especulativas e às práticas comerciais restritivas.” da CRP - destina-se a promover a defesa e promoção da concorrência e a assegurar, através do correcto funcionamento dos mercados e da garantia de uma concorrência equilibrada, o estabelecimento de uma competição séria e justa entre todos aqueles que produzem e/ou comercializem os mesmos produtos.
O princípio da concorrência visa, assim, colocar em condições de igualdade todos aqueles que se encontrem no comércio a desenvolver a mesma actividade e, desse modo, contribuir para que o mercado funcione de forma justa e proporcione aos consumidores os melhores preços e a melhor qualidade dos produtos. E, por ser assim, é que os referidos normativos proíbem as práticas restritivas da concorrência e reprimem os abusos da posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral.
Daí que a tese sustentada pela Autora parta do pressuposto de que o IRN é uma empresa pública que desenvolve, mediante remuneração, uma actividade de natureza empresarial no domínio dos serviços de registo e do notariado em condições privilegiadas em relação àqueles com quem tem de concorrer no mercado, designadamente com os notários, violando desta forma o princípio da concorrência. Isto é, a Autora defende que o IRN presta os mesmos serviços que a Autora presta e que ao fazê-lo, atentas as regalias de que goza, viola o princípio da concorrência.
Todavia, esta alegação carece de fundamento.
Desde logo, porque o pressuposto em que Autora funda a sua tese não é verdadeiro já que, contrariamente ao alegado, o IRN não é nem funciona como uma empresa destinada a prestar serviços remunerados em concorrência desleal com os notários mas, ao invés, é um instituto público integrado na administração indirecta do Estado, dotado de autonomia administrativa e património próprio, destinado a prosseguir as atribuições do Ministério da Justiça sob a tutela e superintendência do respectivo Ministro. Por isso é que, muito embora entre essas atribuições se conte a de “dirigir, coordenar, apoiar, avaliar e fiscalizar a actividade das conservatórias e proceder à uniformização de normas e técnicas relativas à actividade registral, assegurando o respectivo cumprimento” (art.ºs 1.º/1 e 2 e 3.º/2/b) do DL 129/2007, de 27/04) não se pode afirmar que o mesmo é uma empresa pública ou que desenvolva uma actividade empresarial em concorrência com a actividade notarial.
Depois, porque uma tal tese só teria valimento se aquele Instituto pudesse ser considerado uma “organização em que se combinam o capital fornecido por pessoas colectivas de direito público com a técnica e o trabalho, para produzir bens ou serviços destinados a oferta no mercado mediante um preço que cubra os custos e permita o financiamento normal do empreendimento M. Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10.ª ed., vol. I, pg. 378., o que não acontece visto a sua estrutura e organização serem diferentes de uma empresa como diversas são as finalidades que lhe cumpre desenvolver. De resto, o conceito de empresa está associado ao exercício de uma actividade económica empresarial destinada à oferta de bens ou serviços num determinado mercado com a finalidade de obter proventos (art.º 2.º da Lei 18/2003, de 11/06) e, como resulta de forma evidente dos art.ºs 1.º e 3.º do DL 129/2007, a actividade do IRN não tem essas características.
Acresce que a função das conservatórias de registo predial – que são quem, na qualidade de serviços desconcentrados daquele Instituto, pratica os actos que a Autora considera violadores do princípio ora em causa – consiste primordialmente em inscrever os factos jurídicos indicados no art.º 2.º do CRP em nome do respectivo titular com vista a publicitar a sua situação jurídica e, desse modo, promover a segurança no comércio jurídico imobiliário (seu art.º 1.º) e uma tal actividade não pode ser confundida com uma actividade económica, ainda que a mesma seja remunerada. As funções desempenhadas pelo IRN integram-se, assim, nas funções do Estado e são exercidas ao abrigo de normas de direito público e, porque desenvolvidas a coberto de prerrogativas de poder público, são insusceptíveis de ser confundidas com uma actividade de natureza económica sujeita ao comércio jurídico e às regras da concorrência.
Finalmente, as actividades desenvolvidas pelos notários não se confundem nem se sobrepõem com as funções legalmente atribuídas ao IRN como se pode ver se confrontarmos as competências que o art.º 4.º do Estatuto do Notariado Aprovado pelo DL 26/2004, de 4/02. atribuiu aos notários com as funções do IRN fixadas pelo art.º 3.º do DL 129/2007. Aliás, a Autora reconhece que assim é quando afirma que “o IRN detém o exclusivo para prestar serviços de registo e, em particular, para prestar os três pacotes combinados, nomeadamente «Empresa da Hora», «Casa Pronta» e «Balcão Heranças e Sucessões»”, competência essa que, indiscutivelmente, que os notários não dispõem. E, se assim é, e se a actividade do IRN é fundamentalmente uma actividade registral e se a função notarial é destituída do poder de fazer registos não se pode afirmar que a actividade do IRN é concorrencial com a actividade dos notários.
Resta, pois, concluir que a reforma do notariado prosseguida pelo DL 263-A/2007, nomeadamente a respeitante à simplificação dos procedimentos relativos às transmissões e onerações de imóveis, não significou a violação do princípio da concorrência. E isto porque a dispensa de muitos dos actos que eram necessários a essas operações – maxime, a obrigatoriedade das mesmas se fazerem através de escritura pública - e a possibilidade de se concentrar num único balcão todas as operações e actos relativos a essa transmissão e ao seu registo, não pode ser vista como uma violação daquele princípio atenta a substancial diferença entre os serviços prestados pelos notários e os serviços prestados pelo IRN.
É certo que essa desformalização e desburocratização acarretou uma diminuição da actividade notarial com as correspondentes perdas financeiras mas essa consequência, que era inevitável, não pode fundamentar o juízo da Autora.
Está, assim, resolvida a segunda das questões que o Sr. Presidente do TAF de Braga colocou à nossa consideração.
Termos em que acordam os Juízes que compõem este Tribunal em declarar que os procedimentos criados pelo DL 263-A/2007, de 23/07, não são violadores dos princípio da protecção da confiança e da concorrência.
Sem custas.
Lisboa, 2 de Julho de 2009. – Alberto Acácio de Sá Costa Reis (relator) – Rosendo Dias José – José Manuel da Silva Santos Botelho – Luís Pais Borges – Adérito da Conceição Salvador dos Santos – Rui Manuel Pires Ferreira Botelho – Jorge Artur Madeira dos Santos – António Bento São Pedro – Fernanda Martins Xavier e Nunes – António Políbio Ferreira Henriques – José António de Freitas Carvalho.