Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02024/06.5BEPRT
Data do Acordão:11/18/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PAULA CADILHE RIBEIRO
Descritores:IRC
MÉTODOS INDIRECTOS
CONTABILIDADE IRREGULAR
REGULARIZAÇÃO
NOTIFICAÇÃO
Sumário:A possibilidade de suprimento, no prazo legal, contemplada na al. a) do art. 88º da LGT, impõe-se em todas as situações ali previstas e não apenas nas situações de falta ou atraso de escrituração dos livros e registos ou irregularidades na sua organização ou execução.
Nº Convencional:JSTA000P26778
Nº do Documento:SA22020111802024/06
Data de Entrada:09/24/2020
Recorrente:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A......, LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1- Relatório
1.1 A Administração Tributária e Aduaneira (AT), recorre da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida pela sociedade A………., Lda., identificada nos autos, contra as liquidações adicionais de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) dos exercícios de 2002 e 2003.

1.2. A Recorrente conclui da seguinte forma as suas alegações de recurso:
“A- Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou procedente a impugnação judicial contra as liquidações adicionais de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) nº 2006 8310034644 e 2006 8310034659 relativas aos exercícios de 2002 e 2003, no montante de € 6.737,95 e € 5.814,3, respetivamente, perfazendo um total de € 12.552,32.
B- O Tribunal a quo concluiu que foi preterida formalidade essencial à avaliação indireta da matéria coletável, isto porque, para que a AT pudesse recorrer a métodos indiretos impunha-se a prévia notificação da impugnante para suprir, no prazo legal, as irregularidades contabilísticas e consequentemente decidiu pela anulação das liquidações adicionais de IRC impugnadas (entendimento assenta na jurisprudência existente sobre o tema designadamente a constante dos Acórdãos do S.T.A. de 13/09/2017 e de 03/12/2014, proferidos nos processos nºs 01316/16 e 01262/13, respetivamente).
C- Não pode, porém, a Fazenda Pública concordar com tal entendimento e entende ser imperiosa a sua revisão, sob pena de se compelir a inspeção tributária à realização de uma notificação ao contribuinte para a prática de atos que constituem uma franca violação às regras e princípios contabilísticos essenciais, pois, não pode compelir-se a IT a efetuar ao contribuinte uma notificação para a realização de uma atividade legalmente não permitida.
D- Os erros e omissões na contabilidade só podem ser corrigidos no ano da sua ocorrência se as contas do dito ano não estiverem encerradas. Se já se verificou o encerramento, essa correção não pode ser realizada.
E- Os trabalhos de fim de exercício são uma das etapas mais importantes da contabilidade, sendo nesta fase que se procede à elaboração e apresentação do Balanço, Demonstração de Resultados e seus anexos, de modo a que a empresa possa apresentar a sua situação económico-financeira e o resultado das operações por ela realizadas, durante o período de tempo em causa, ou seja, o ano e efetuado o encerramento das contas, as contas ficam trancadas e não podem ser reabertas.
F- Constatando-se a posteriori erros ou omissões na sua elaboração, a sua regularização não se faz através de alterações das contas do ano em que ocorreu o erro, mas no ano em que o mesmo foi constatado.
G- No ano a que o imposto se reporta e no ano da inspeção, ainda se encontrava em vigor o Plano Oficial de Contabilidade, aprovado pelo Decreto – Lei nº 47/77, de 7 fevereiro, e na vigência deste os erros de grande relevo constatados num determinado ano, mas, indubitavelmente, imputáveis a ano (s) anterior (es) só podiam ser corrigidos posteriormente, através de regularizações excecionais.
H- Pois, não seria curial que o resultado de um dado exercício, expresso na conta POC 88 – Resultado Líquido do Exercício, pudesse ser notoriamente influenciado por acontecimentos alheios à gestão desse ano, tais erros (com significado no seio dos capitais próprios, com expressão nos resultados, mas provenientes de exercícios anteriores), deveriam ser contemplados na conta POC 59 – Resultados Transitados, por contrapartida das contas subsidiárias POC das classes 6, Custos (697 – Correções relativas a exercícios anteriores) ou 7, Proveitos (797 – Correções relativas a exercícios anteriores).
I- A solução atualmente decorrente do SNC – Sistema de Normalização Contabilística é idêntica à do revogado Plano Oficial de Contabilidade.
J- No âmbito, atual, do SNC – Sistema de Normalização Contabilística, em vigor desde 2010, as correções de erros materiais em demonstrações financeiras de períodos anteriores devem ser efetuadas através do procedimento de reexpressão retrospetiva, conforme previsto na NCRF 4 - "Políticas contabilísticas, alterações nas estimativas contabilísticas e erros".
K- Esta Norma Contabilística e de Relato Financeiro tem por base a Norma Internacional de Contabilidade IAS 8 – Políticas Contabilísticas, Alterações nas Estimativas Contabilísticas e Erros, adotada pelo texto original do Regulamento (CE) nº 1126/2008 da Comissão, de 3 de novembro.
L- Em cumprimento da NCFR 4 quando esses erros afetem resultados de períodos anteriores, sendo situações materialmente relevantes, devem ser imputados à conta de resultados transitados e implicar a reexpressão retrospetiva desde o período comparativo mais antigo apresentado, conforme previsto nos parágrafos 32 a 39 da NCRF 4, e dos parágrafos 36 a 44 da NCFR4 retira-se que quando as demonstrações financeiras dos períodos anteriores já foram aprovadas pelo órgão de Gestão e publicadas (na Conservatória), as correções desses erros materiais devem ser efetuadas no período corrente, não sendo, sequer, possível proceder à substituição do Anexo A da IES com o objetivo de proceder à alteração da prestação de contas, uma vez que essas contas já foram aprovadas pelos sócios e já estão depositadas pelo que não podem ser objeto de qualquer alteração.
M- Existindo erros contabilísticos nas demonstrações financeiras de períodos anteriores, que sejam materialmente relevantes, a correção desses erros materiais deve ser efetuada através dos procedimentos da NCRF 4, nas demonstrações financeiras do período corrente através da reexpressão retrospetiva, que se encontram plasmadas nos parágrafos 38 a 43 e parágrafos 45 a 48 da referida NCFR 4.
N- A reexpressão retrospetiva implica que a correção de erros materiais de períodos anteriores nunca deve ser reconhecida nos resultados do período corrente em que se esteja a efetuar a correção; no período corrente, o efeito desse erro material, com influência nos resultados de períodos anteriores, passa a estar refletido nos resultados transitados, pois decorre da correção nos resultados desse período anterior.
O- Quer em sede do POC, quer em sede do SNC, uma vez encerrada a contabilidade de determinado exercício, perante erros ou omissões relacionadas com esse exercício, não frequentes, mas de grande significado, detetados em período subsequente, não mais é possível “reabrir” a contabilidade do exercício ao qual tais erros ou omissões dizem respeito, procedendo-se, antes, mediante uma contabilização própria, um procedimento próprio, à sua relevação no exercício em que tal foi constatado/verificado.
P- A correção dos erros tem lugar no decurso do ano em que se constataram os mesmos e apenas para fornecer uma ideia mais segura e fiável das demonstrações financeiras da empresa, sito é, para fornecer uma correta informação sobre a situação da empresa.
Q- O reconhecimento dos erros não implica qualquer alteração do resultado contabilístico do ano da ocorrência do erro e, muito menos, do resultado tributável do dito ano.
R- Contrariamente ao que vem vertido na douta sentença os SIT nunca poderiam conceder um prazo para que a impugnante pudesse suprir as irregularidades encontradas na sua contabilidade. Isto porque, apenas é possível regularizar erros de exercícios anteriores no exercício onde o mesmo é detetado.
S- Os SIT nunca poderiam solicitar à impugnante que em 2006, ano da inspeção, fosse reabrir a contabilidade que já se encontrava encerrada em 2002 e 2003. Em 2006, se a impugnante quisesse proceder à regularização, voluntariamente, ou seja, sem qualquer imposição da AT, tê-lo-ia que fazer no próprio ano de 2006.
T- Tal regularização, a ser realizada, seria meramente informativa, mas não teria quaisquer consequências a nível fiscal.
U- No âmbito do IRC só nos casos previstos no nº 2 do citado artigo 57º do CIRC deve ser concedido um prazo para que o contribuinte possa exibir a contabilidade e executar os livros e registos contabilísticos. Ou seja, este normativo legal estabelece o âmbito e a extensão do dever de notificação para regularizar a contabilidade e esse âmbito encontra-se delimitado pelos preceitos contabilísticos relativos às circunstâncias e ao modo como essa regularização deve ser efetuada e constitui desta forma o quadro que deve guiar a interpretação das alíneas a) e c) do art. 88.º, 1 da LGT.
V- Esta é a única interpretação que a norma pode ter por razões de ordem sistemática que, como é sabido, constituem um dos elementos essenciais da interpretação.
W- Destarte, entende a Fazenda Pública que a sentença sob recurso incorreu em erro de julgamento de direito, por errónea interpretação e aplicação do disposto na alínea b) do artigo 87º, conjugado com na alínea a) do artigo 88º, ambos da LGT, assim como do disposto no artigo 57º do CIRC.
Pelo exposto e pelo muito que V. Exas doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e consequentemente, revogada a sentença recorrida, assim se fazendo JUSTIÇA.”

1.3. A recorrida contra-alegou, concluindo do seguinte modo:
A- No caso em analise a AT procedeu à determinação da matéria tributável por métodos indiretos ao abrigo do disposto nas alíneas b) do art. 87º e alínea a) do art 88º da LGT sem ter procedido à notificação da impugnante para suprir a situação.
B- Atento o facto de a avaliação indireta ser subsidiária da avaliação direta a interpretação correta da alínea a) do art.º 88º da LGT será a interpretação mais abrangente que abarca todas as situações previstas no normativo, (neste sentido os Ac. STA 01316/16 de 13.09.2017 e 01262/13 de 03.12.2014, bem como, na doutrina, entre outros, Jorge Lopes de Sousa, Benjamim Silva Rodrigues e Diogo Leite de Campos em Lei Geral Tributária, comentada e anotada, mas também, António Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária – anotada e ainda José Maria Pires (coordenador), José Ramos Vidal e Maria João Menezes, Lei Geral Tributária – comentada e anotada.
C- A AT deveria ter notificado a recorrida para suprir as irregularidades, o que não veio a acontecer, pelo que falta um pressuposto de determinação da matéria tributável por métodos indiretos.
D- Os argumentos e conclusões de ordem contabilística apresentados nas alegações da FP não procedem, enquanto não caducar o direito à liquidação dos tributos – art. 45º da LGT- a matéria tributável é sempre suscetível de ser alterada, quer através das correções meramente aritméticas, quer através dos métodos indiretos.
E- Entende a recorrida que deve manter-se a douta sentença recorrida.
FAZENDO V.EXAS, COMO SEMPRE, JUSTIÇA.


1.4. O excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

2. Fundamentação de facto
Remete-se para os termos da decisão da 1.ª instância que decidiu a matéria de facto (artigo 663.º, n.º 6, ex vi do artigo 679.º, ambos do Código de Processo Civil).

3. Fundamentação de Direito
3.1. A questão que se coloca no presente recurso é saber se a determinação da matéria tributável por métodos indiretos, e que deu lugar às liquidações impugnadas, é ilegal por omissão da notificação prévia para suprir as deficiências da contabilidade – artigo 88.º, alínea a) da Lei Geral Tributária (LGT).

3.2. A AT não se conforma com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou procedente a impugnação judicial deduzida pela ora Recorrida contra as liquidações de IRC dos anos de 2002 e 2003, por entender ter sido preterida uma formalidade essencial à avaliação indireta da matéria coletável, prevista no artigo 88.º, alínea a) da LGT, ao omitir-se a notificação da impugnante para suprir, no prazo legal, as irregularidades contabilísticas detetadas na ação de inspeção, e anulou as liquidações. Defende que a notificação apenas se impõe no caso de inexistência de escrita e falta e atraso na execução da contabilidade e já não no caso de regularização de deficiências da contabilidade.
Como é dada nota na sentença recorrida e no douto parecer do Ministério Público, o Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou sobre a questão acima enunciada, no acórdão de 13/09/2017, proferido no processo 01316/16 (que reporta acórdão anterior, de 03/12/2014, proferido no processo 01262/13), tendo decidido, em fundamentação que aqui se acompanha e que abaixo se reproduz, que a possibilidade de suprimento, no prazo legal, contemplada na alínea a) do artigo 88.º da LGT, impõe-se em todas as situações ali previstas, e não apenas nas situações de falta ou atraso de escrituração dos livros e registos ou irregularidades na sua organização ou execução. Lê-se no citado aresto:
“3.3. Esta questão atinente à interpretação do disposto na convocada al. a) do art. 88º da LGT (saber se apenas estão abrangidas as irregularidades na organização ou execução da contabilidade ou, também, as restantes situações ali enunciadas) foi já expressamente apreciada no acórdão desta Secção do STA, proferido em 03/12/2014, no proc. nº 01262/13, onde se concluiu que «[e]mbora a letra da alínea a) do artigo 88º da LGT não seja inequívoca, pois tanto permite sustentar que a condição nela ínsita - “quando não supridas no prazo legal” – se aplica a todas as situações nela previstas (assim, ANTÓNIO LIMA GUERREIRO, Lei Geral Tributária Anotada, Rei dos Livros, 2000, pp. 371/372 – nota 3 ao art. 88º da LGT), como apenas às situações de falta ou atraso de escrituração dos livros e registos ou irregularidades na sua organização ou execução (como parecem entender DIOGO LEITE DE CAMPOS/BENJAMIM SILVA RODRIGUES/JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4ª ed., 2012, p. 765 – nota 2 ao art. 88º da LGT), a interpretação acolhida na sentença recorrida - a mais abrangente -, é a que melhor se ajusta à natureza subsidiária, de ultima ratio, da avaliação indirecta (artigo 87º, nº 1 da LGT), atento a que o legislador prevê expressamente a notificação para regularização da situação tanto nas situações de inexistência de escrita como nas de atraso na execução desta e em ambos os casos “independentemente do procedimento para a aplicação da coima prevista nos números anteriores” (cfr. os artigos 120º nº 2 e 121º, nº 2 do RGIT).»
E na verdade assim é.
A possibilidade de o contribuinte suprir as deficiências da escrita, após notificação, evitando a utilização de métodos indirectos, decorre, no âmbito do IRS, do disposto nos nºs. 2 e 3 do art. 39° do CIRS e, em sede de IRC, do disposto nos nºs. 2 e 3 do art. 57º do CIRC e a tal possibilidade se referem, igualmente, os arts. 120º e 121º do RGIT, evidenciando-se «a preocupação do legislador em reservar a avaliação indirecta para aquelas situações irremediáveis em que já não é possível, como base na contabilidade ou nos elementos dos contribuintes, determinar o valor tributável real por avaliação directa» (LGT Comentada e anotada, Almedina, 2015, [José Maria Fernandes Pires (Coordenador), Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal e Maria João Menezes], Comentário nº 4 ao art. 88º, pp. 911 e 912.)
E, no caso, tendo a AT procedido à correcção, por métodos indirectos, da matéria tributável da impugnante, ao abrigo do disposto na al. b) do art. 87° e da al. a) do art. 88°, ambos da LGT, por irregularidades na organização ou execução da respectiva escrita, impunha-se, como diz a sentença recorrida, a prévia notificação daquela (cfr. o art. 52° do CIRC) para suprir a irregularidade.
E no que respeita aos demais argumentos (incluindo os de ordem contabilística) invocados pela recorrente, também eles não são susceptíveis de alterar a interpretação legal determinada na decisão recorrida, desde logo porque, como bem sublinha o MP, a serem válidos, teriam plena aplicação às situações que a recorrente também entende poderem ser supridas, acrescendo que enquanto não caducar o direito de liquidação dos tributos (art. 45° da LGT) a matéria tributável é sempre susceptível de ser alterada, quer através de correcções meramente aritméticas, quer através de métodos indirectos.
A decisão recorrida, ao julgar ter sido preterida formalidade legal essencial à avaliação indirecta da matéria colectável, não merece, portanto, a censura que a recorrente lhe dirige.”

Assim, e nada mais havendo a acrescentar ao que distintamente ficou explanado no aresto citado, ao recurso terá de ser negado provimento.

4- Decisão
Pelo exposto, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, nega-se provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 18 de novembro de 2020. - Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro (relatora) - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes - Joaquim Manuel Charneca Condesso.