Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0460/18
Data do Acordão:05/24/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P23338
Nº do Documento:SA1201805240460
Data de Entrada:05/04/2018
Recorrente:MUNICÍPIO DE CONSTÂNCIA
Recorrido 1:A... E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Formação de Apreciação Preliminar da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

RELATÓRIO.

A………………… intentou, no Tribunal Judicial de Abrantes, contra o Município de Constância, B…………., S.A, e Instituto de Emprego e Formação Profissional, I.P., acção administrativa comum pedindo a condenação dos Réus no pagamento de uma indemnização que o ressarcisse dos danos decorrentes do acidente de trabalho de que foi vítima quando estava ao serviço do mencionado Município.

Aquele Tribunal julgou-se materialmente incompetente para conhecer da acção e absolveu os RR. da instância.

Remetidos os autos ao TAF de Leiria este proferiu sentença absolvendo os réus B……………….. SA e Instituto de Emprego e Formação Profissional, IP do pedido e condenando o Município de Constância a pagar ao Autor:
- € 38,80 de internamento hospitalar no Hospital de Santa Maria;
- A diferença entre o valor recebido da incapacidade temporária absoluta – ITA – e o valor correspondente à consideração de todas as remunerações auferidas por si, isto é, ao subsídio de desemprego, acrescido de 20%, traduzida na fórmula: Indemnização diária = Retribuição diária × 70 %; e
- Uma prestação correspondente à incapacidade parcial permanente de 10% que lhe foi fixada, respeitando a fórmula: Retribuição anual × 70 % × grau de incapacidade.

O TCA Norte, para onde o Município apelou, negou provimento ao recurso confirmando a sentença recorrida.

É desse acórdão que vem a presente revista (art.º 150.º do CPTA).

II. MATÉRIA DE FACTO
Os factos dados como provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III. O DIREITO

1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto como «válvula de segurança do sistema» para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos, pois, se tais requisitos se verificam in casu socorrendo-nos para isso da matéria de facto seleccionada no Acórdão recorrido.

2. O Autor sofreu um acidente de trabalho quando prestava serviço ao Município de Constância, ao abrigo de um «acordo de actividade ocupacional», no âmbito de um Programa Ocupacional aprovado pelo IEFP, e entendendo que não foi devidamente indemnizado pelos danos decorrentes desse acidente intentou acção pedindo a condenação dos RR no ressarcimento da totalidade daqueles danos.
O TAF de Leiria absolveu a seguradora e o Instituto de Emprego e Formação Profissional do pedido mas condenou o Município em parte do pedido.
Este Réu apelou para o TCA Sul mas sem sucesso já que este manteve a sentença com um discurso fundamentador de que se destaca o seguinte:
“E o sinistro ocorreu quando o A. prestava serviço na sequência de um “acordo de actividade ocupacional” no âmbito do Programa Ocupacional aprovado pelo IEFP, ao abrigo dos artigos 10.º a 13.º daquela Portaria.
É certo que no acordo em causa declara-se expressamente que pelo mesmo não se procede ao preenchimento de quaisquer postos de trabalho.
Porém, a questão em causa não se esgota na forma do acordo, nem nas retribuições que por este sejam devidas. A questão central está sim na protecção adequada contra os riscos emergentes da actividade ocupacional exercida.
Neste ponto, não poderá aceitar-se, como sempre arguido pelo A., que essa protecção se possa vir a consubstanciar apenas à garantia do subsídio de alimentação. Ou seja, o seguro aplicável, independentemente do nome que esta tenha, terá de tutelar efectivamente a integridade da capacidade produtiva do prestador do serviço.
Neste particular, no que ao seguro importa, terá que sublinhar-se que a responsabilidade quanto à celebração do contrato de seguro, ao âmbito da cobertura e aos respectivos valores contratados é exclusiva das entidades promotoras das actividades ocupacionais (o ora Recorrente), constituído das mesmas um encargo (art. 8.º, nº 3, in fine da Portaria).
Temos para nós, pois, que o A., como reconhecido e explicitado na sentença recorrida, tem direito a ser ressarcido pelas despesas e prejuízos sofridos por força do acidente ocorrido no desempenho das actividades ocupacionais no município de Constância. E não restam dúvidas que, independentemente do tipo de contrato de seguro que o Acordo de Actividade Ocupacional exigia por força da regulação estatuída na Portaria n.º 192/96, o contrato de seguro efectivamente celebrado pelo Município de Constância e a B……………., S.A. foi um contrato de acidentes de trabalho de prémio variável (Facto Provado 4) e, por isso, é este que releva no caso …… .
Por fim, também não assume especial relevância a circunstância de o legislador da Portaria ter designado o seguro a contratar como “seguro de acidentes pessoais”. Com efeito, se o objectivo das actividades ocupacionais, no que aos trabalhadores subsidiados respeita, visa a participação em trabalho necessário inserido em projectos ocupacionais organizados por entidades sem fins lucrativos, em benefício da colectividade, por razões de necessidade social ou colectiva (art. 3º, nº 1), não podendo consistir no preenchimento de postos de trabalho existentes (art. 2º, n.º 3), mal se compreenderia que viesse exigir um seguro de acidentes de “trabalho”. O que o legislador pretendeu foi que a actividade por aqueles desenvolvida estivesse devidamente segurada, titulada por um contrato de seguro.
E quanto ao risco propriamente dito, inerente às funções que o A. desempenhava quando sofreu o acidente, temos que este cumpria ordens do encarregado C……………., como todos os outros trabalhadores do Município (cfr. o provado em 16.), enquanto limpava jardins, valetas e retirava árvores caídas na estrada (cfr. o provado em 17.º). Ou seja, a situação em causa, nada tem de especial ou distintivo relativamente aos trabalhadores, proprio sensu, ao serviço da autarquia que possa afastar o que se vem de concluir.
Razões pelas quais, na improcedência das conclusões de recurso, tem a sentença recorrida que ser confirmada.”

3. Como se acaba de ver a questão suscitada nos autos é a de saber se o Autor, que estava a trabalhar para o Município da Constância, ao abrigo de um “acordo de actividade ocupacional”, tem direito a beneficiar de uma protecção, a cargo do Réu, semelhante à dos restantes trabalhadores, que cubra a totalidade dos danos que sofra em resultado de acidente de trabalho.
As instâncias responderam afirmativamente a esta questão mas aquele Município discorda dessa resposta pelas razões expostas nas seguintes conclusões:
“4°) Para salvaguarda do direito à integridade física da pessoa singular contratada no âmbito da dita actividade ocupacional impôs, todavia, à entidade promotora a celebração de um seguro de acidentes pessoais;
5°) Não existe, portanto, qualquer lacuna, pelo que não é admissível a extensão analógica na interpretação do art. 6°, n° 2, al.ª a), da citada Portaria 192/96, de 30 de Maio;
6°) O que se justifica pela excepcionalidade e atipicidade da chamada actividade ocupacional.
7°) Continuando o contratado a receber subsídio de desemprego, a entidade promotora, não lhe pagando propriamente um salário ou vencimento, só pode subscrever uma apólice de seguro sobre o valor que efectivamente Ihe paga;
8°) Razão pela qual surge como de todo desrazoável e desproporcional a interpretação feita pelas instâncias, da qual resulta um sentido normativo que, em vista dessa desproporcionalidade, se revela como materialmente inconstitucional, por contrariar a norma do art. 13° da CRP na justa medida em que impõe à entidade promotora uma responsabilidade que Ihe não é permitido abranger num contrato de seguro, posto que não existe, propriamente, um contrato de trabalho, por um Iado, nem, por outro lado, o valor do subsídio pago pela Segurança Social pode legalmente ser abrangido pelo seguro, o qual incluiria uma prestação não paga, sendo, portanto, falso;
9°) A aplicação feita pelas instâncias da norma regulamentar em causa pressupõe, necessariamente, duas sucessivas operações lógico-jurídicas: uma prévia interpretação revogatória ou ab-rogante, eliminando o termo “pessoais”, que não se justifica, nem surge minimamente fundamentada, seguida da extensão analógica, para impor à entidade promotora o risco de acidentes de trabalho, sem lhe impor igualmente a obrigação de transferir esse risco para uma seguradora, como a lei determina.”

4. A questão suscitada nesta revista tem, inquestionavelmente, relevância jurídica e social uma vez que é importante saber se aqueles que prestam serviço em organismos públicos a coberto de acordos de actividade ocupacional e que, portanto, se encontram numa situação de precariedade laboral gozam da mesma protecção que os restantes trabalhadores desses organismos.
Questão cuja relevância social é inquestionável, atenta a multiplicidade e recorrência dos programas de trabalho subsidiado o que, desde logo, recomenda a admissão da revista.
Acresce que se trata de questão cuja resolução envolve operações jurídicas de certa complexidade como, designadamente no caso, a identificação da legislação aplicável.
Finalmente, esta problemática nunca foi apreciada por este Supremo Tribunal pelo que é importante que este tome posição e a esclareça.
Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em admitir a revista.
Sem custas.

Lisboa, 24 de Maio de 2018. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – São Pedro.