Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01000/16
Data do Acordão:05/17/2017
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PEDRO DELGADO
Descritores:TAXA SIRCA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Sumário:É inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, na sua dimensão de equivalência (artigo 13.º da Constituição), a taxa “SIRCA” tal como configurada pelo Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro, na medida em que configura o “estabelecimento de abate” como contribuinte directo de tal tributo, quando o presumível beneficiário do serviço que esta se destina a financiar é, não ele, mas o titular da exploração.
Nº Convencional:JSTA000P21871
Nº do Documento:SA22017051701000
Data de Entrada:09/06/2016
Recorrente:A............, SA
Recorrido 1:DIRECÇÃO GERAL DE ALIMENTAÇÃO E VETERINÁRIA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo


1 – A…………, SA, com os demais sinais dos autos, vem interpor recurso da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel que julgou improcedente a impugnação por ela deduzida, contra o pagamento das taxas à Direção Geral de Alimentação e Veterinária para financiar o sistema de recolha de cadáveres de animais mortos nas explorações, no valor global de € 67.396,12.

Apresenta as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:
«1ª) Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal “a quo”, que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida pela recorrente, e que, salvo o devido respeito, não poderá ser mantida.
2ª) A sentença proferida é contraditória relativamente a outras sentenças proferidas pelo mesmo Tribunal quanto à mesma questão de direito, nas quais foram os pedidos formulados julgados totalmente procedentes e, consequentemente, anuladas as liquidações das taxas impugnadas e restituídos os montantes pagos.
3.ª) A criação do Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações” (SIRCA) teve em vista, na sequência dos diplomas legais que interditaram que fossem enterrados animais mortos nas exploração das espécies bovina, ovina, caprina e suína, assegurar a recolha daqueles animais nas explorações com vista à sua eliminação e de forma a salvaguardar a segurança alimentar, a saúde pública e a protecção do ambiente.
4.ª) Desta forma, a SIRCA consistia, nos termos Decreto-Lei n.º 244/2003, de 7 de Outubro, num serviço prestado a quem apresentasse os animais para abate, isto é, aos titulares de explorações que se dedicam à pecuária pelo que, consequentemente, era também sobre estes que, naturalmente, recaía a obrigação de proceder ao pagamento do respectivo serviço por via de uma taxa, cobrada através dos estabelecimentos de abate apenas por uma questão de eficácia na cobrança da taxa.
5.ª) O Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações visava, como é comum num estado de direito, que apenas os beneficiários do sistema — produtores de gado — contribuíssem para o seu próprio financiamento, mediante o pagamento de uma taxa.
6.ª) Sucede que, o Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro, veio revogar o previsto no Decreto-Lei 244/2003 no que respeita ao regime de financiamento, tendo sido radicalmente alterado o paradigma da responsabilidade pelo pagamento da taxa devida, o qual passou a recair sobre quem dela não retira qualquer benefício: os estabelecimentos de abate.
7.ª) O legislador transformou a taxa em causa num verdadeiro imposto, porquanto, conforme resulta demonstrado, os beneficiários do SIRCA são apenas os respectivos produtores e apresentantes dos animais e não os estabelecimentos de abate.
8.ª) Acresce que, a “Taxa TSAM” nada tem que ver com a “Taxa SIRCA”, cujos pressupostos e finalidade se afiguram totalmente distintos daquela taxa.
9.ª) No caso da “Taxa TSAM”, o valor da taxa paga pelos estabelecimentos comerciais sobre os quais a mesma incide, é visto como uma contrapartida da segurança e de qualidade alimentar que os próprios titulares desses estabelecimentos têm que garantir no tocante aos produtos que comercializam e que aquele aquela contribuição lhes vai proporcionar e, portanto, existe em seu próprio beneficio.
10.ª) A recorrente assume-se como uma mera prestadora de serviços, cuja actividade se dirige essencialmente à prestação de serviços de abate de animais a terceiros — os apresentantes dos animais, esses sim, verdadeiros beneficiários do sistema em questão — o que a distingue daqueles que são produtores, distribuidores ou comerciantes de géneros alimentícios, nomeadamente de origem animal, e que, nessa medida, beneficiam da garantia de segurança e qualidade alimentar desses produtos resultante da actividade a que tais contribuições se destinam.
11.ª) Mais se diga que os beneficiários da recolha dos animais mortos são apenas os respectivos produtores e apresentantes dos animais e não os matadouros, uma vez que a ausência de qualquer infecção permite que os produtores e apresentantes dos animais os possam comercializar. Contrariamente, infectados ou não, os matadouros procedem sempre ao seu serviço, a única diferença é que o animal enfermo não entra no circuito comercial com directo prejuízo para o apresentante do animal e não para o matadouro, que cobra sempre o seu serviço de abate.
12.ª) Diversamente, do que sucede na Taxa de Segurança Alimentar Mais, em que o diploma procurou assegurar uma equitativa repartição dos custos dos programas de controlo, na medida em que vários operadores da cadeia alimentar são beneficiários, na Taxa SIRCA, estranhamente, a taxa é cobrada apenas aos matadouros, em clara violação do princípio do “utilizador pagador”.
13.ª) Nos termos do artigo 9.° do Decreto-Lei n.º 119/2012, de 15 de Junho, e do n.º 3 da Portaria n.º 215/2012 de 17 de Julho, a Taxa de Segurança Alimentar Mais abrange sociedades comerciais com lojas de grande dimensão, propriedade de grandes grupos económicos, como por exemplo a “………” ou “………”, que podem facilmente incorporar a TSAM nos seus custos.
14.ª) Ao contrário do que sucede com os estabelecimentos de abate que são incapazes de suportar taxas estranhas a sua actividade específica, comprometendo a sua sobrevivência, o que originará um número elevado de desempregados.
15.ª) O facto de os titulares de explorações que tenham capacidade de recolha, transporte e destruição ficarem isentos da taxa de financiamento do SIRCA demonstra igualmente, de forma inequívoca, como os únicos beneficiários daqueles serviços são os titulares de explorações que não procedam directamente à recolha e transporte de cadáveres e, por isso mesmo, têm que recorrer aos serviços do Estado, suportando, por isso, o pagamento da respectiva contrapartida monetária.
16.ª) Existem outras taxas impostas aos matadouros em que há efectivamente uma contrapartida específica, e em que estes, por isso, enquanto beneficiários da actividade desenvolvida, pagam as respectivas taxas sanitárias e taxas de controlo oficial, o que lhes permite a prossecução da actividade industrial e comercial a que se dedicam.
17.ª) A taxa devida pelo financiamento do Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações (SIRCA), quando imposta aos estabelecimentos de abate, consubstancia um imposto e não uma taxa ou qualquer outra contribuição financeira.
18.ª) Com efeito, atentas as características reconhecidas à taxa enquanto tributo, conclui-se que não estamos, in casu, perante a liquidação de qualquer taxa, porquanto a quantia exigida à ora Impugnante não é devida por qualquer prestação de um serviço público, pela utilização de um bem do domínio público, nem pela remoção de um obstáculo jurídico.
19.ª) Na verdade, para que a SIRCA fosse susceptível de continuar a ser qualificada como uma taxa teria que ser possível identificar um vínculo de correspectividade entre o pagamento da mesma e a prestação efectuada pelo Estado. Ora, se essa sinalagmaticidade existia enquanto a SIRCA era cobrada àqueles que dela beneficiavam (os detentores de animais), desapareceu a partir do momento em que com o Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro, passaram os estabelecimentos de abate de animais a figurar como seus sujeitos passivos.
20.ª) Destarte, para que o montante cobrado seja uma taxa, a mesma terá, necessariamente, que incidir sobre os titulares de explorações (os beneficiários) e não sobre os estabelecimentos de abate (terceiros), pelo podemos afirmar que estamos perante um verdadeiro imposto e não qualquer taxa.
21.ª) É então, mister afirmar que as liquidações impugnadas são ilegais, na justa medida em que violam o disposto no n.º 2 do artigo 4.º da LGT.
22.ª) Ora, ao tratar-se de um imposto, acontece que os impostos obedecem ao princípio da legalidade tributária, consagrado no n.º 2, do artigo 103.º, da CRP, de acordo com o qual, “os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes.”
23.ª) A criação de impostos é da exclusiva competência legislativa reservada da Assembleia da República, pelo que a lei a que se refere o referido n.º 2 do artigo 103.º da CRP é, em princípio, uma lei da AR, só podendo tratar-se de Decreto-Lei quando houver uma autorização concedida ao Governo.
24.ª) Sucede que o Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro foi aprovado nos termos do artigo 198.°, n.º 1, alínea a), da CRP, ou seja, como se a matéria em causa fosse de competência não reservada da Assembleia da República, pelo que são organicamente inconstitucionais as normas constantes do Decreto-Lei n.° 19/2011, de 7 de Fevereiro, designadamente o seu artigo 2.°, n.º 1, na medida em que procede à criação de um imposto sobre os estabelecimentos de abate em desrespeito pelos supramencionados comandos constitucionais.
25.ª) Isto posto, a Constituição reconhece aos cidadãos o direito a não procederem ao pagamento dos impostos, não só no caso de os mesmos terem sido criados de forma inconstitucional, ou seja, quando não foram criados pela Assembleia da República, ou mediante autorização desta, mas igualmente quando a sua liquidação e cobrança não sejam feitas “nas formas prescritas na lei”.
26.ª) Pelo que, em face de tudo o exposto são ilegais os actos de liquidação da denominada “Taxa para financiamento do Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações” que a Recorrente liquidou à Recorrida, no montante de EUR. 67.396,12 (sessenta e sete mil e trezentos e noventa e seis euros e doze cêntimos), razão pela qual não pode ser mantida a sentença proferida pelo Tribunal “a quo”.»

2 – A entidade recorrida, Direção Geral de Alimentação e Veterinária veio apresentar as suas contra alegações, concluindo que “A recorrida, com a devida vénia, aderir à motivação explanada na sentença proferida pelo TAF de Penafiel, por concordar com os seus fundamentos, que aqui se dão como integralmente reproduzidos.»

3 – O Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer com a fundamentação que, na parte relevante, se transcreve:
«Não se me afigura que assista razão à Recorrente, entendendo-se como na sentença recorrida que a doutrina do douto Acórdão do T. Constitucional n.º 539/2015, de 20.10.2015 é inteiramente transponível para o caso dos autos.
Com efeito, à semelhança do que ocorre com a “taxa de segurança alimentar mais”, também a questionada “taxa para financiamento do sistema de recolha de cadáveres de animais mortos nas explorações” constitui fonte de financiamento do “Fundo Sanitário e de Segurança Alimentar Mais” (adiante, FSSAM) que é caracterizado como um património autónomo, sem personalidade jurídica e dotado de autonomia administrativa e financeira que prossegue objectivos que se inscrevem no âmbito da protecção da segurança alimentar e da saúde do consumidor e do cumprimento das normas europeias em matéria de qualidade alimentar (arts. 2.º e 3.º do DL n.º 119/2012, de 15 de Junho).
Não podendo o tributo em questão ser qualificado como taxa por inexistir o nexo sinalagmático que caracteriza essa espécie de tributos, também o mesmo, à semelhança da “taxa de segurança alimentar mais”, apreciada no referido acórdão do TC, não pode ser qualificado como imposto porque, como aí se escreve, «a sua finalidade não é satisfazer os gastos gerais da comunidade, em cumprimento de um dever geral de cidadania, mas unicamente contribuir para o financiamento de uma actividade continuada de controlo e fiscalização da cadeia alimentar mediante a consignação de receitas a um Fundo que tem a missão especifica de apoiar financeiramente projectos iniciativas e acções a desenvolver nessa área».
Trata-se de uma contribuição financeira que se destina ao financiamento de actividades no domínio da segurança alimentar, da saúde pública, da protecção ambiental e na protecção e sanidade animal (cfr. preâmbulo do DL n.º 19/2011 e art. 3.° do DL nº 119/2012) e que, à semelhança do que ocorre com a aludida “taxa de segurança alimentar mais” e outros tributos, concretiza o princípio da responsabilidade partilhada na garantia da segurança alimentar entre os diversos operadores económicos inseridos na cadeia de produção e comercialização do ramo alimentar, como indiscutivelmente é o caso dos estabelecimentos de abate. Estes, tal como os demais operadores do ramo alimentar que suportam as contribuições em questão, enquanto operadores do sector em causa, são beneficiários das acções e programas desenvolvidos ou apoiados pelo FSSAM, benefício esse que, como esclarece o douto aresto que se vem acompanhando, não assenta numa relação de natureza sinalagmática, uma vez que «as contribuições financeiras respeitam a feixes de prestações de que apenas podemos presumir provocadas ou aproveitadas por certos grupos de contribuintes».
Não padece, pois, de inconstitucionalidade orgânica o diploma que criou tributo em causa, não sendo ilegais as liquidações que a coberto dele foram praticadas.
Nesta conformidade, negando-se provimento ao presente recurso, deverá ser mantida a sentença recorrida.
É o meu parecer».

4 – A entidade recorrente veio juntar aos autos a fls. 189 a 196 requerimento ao qual junta em anexo uma proposta legislativa do Proj. DL Re 1069 que vai no sentido das recomendações do senhor Provedor de Justiça, Recomendação nº 5/B/2013 que considera como sujeito passivo da taxa, os detentores dos animais nas explorações, enquanto beneficiários directos da taxa SIRCA, repondo a legalidade na situação de flagrante injustiça particularmente danosa para os estabelecimentos de abate.

5 – A requerida foi notificada do teor do requerimento e sobre o mesmo, nada veio dizer.

Colhidos os vistos legais, cabe decidir.

6 – O Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel considerou como provado os seguintes factos com interesse para a decisão:
1.º - A impugnante no exercício da sua atividade procedeu ao pagamento das seguintes denominadas taxas para financiamento do Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações (SIRCA) à Direção Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV):
a)Declaração Mensal da Taxa SIRCA, conforme modelo 1015/DGAV, do mês de maio de 2015, no valor de €15.016,64, pagos em 10 de agosto de 2015- cf. doc. n.º 1 , junto com a douta petição de impugnação.
b)Declaração Mensal da Taxa SIRCA, conforme modelo 1015/DGAV, do mês de junho de 2015, no valor de €20.393,45, pagos em 31 de agosto de 2015 - cf. doc. n.º 2, junto com a douta petição de impugnação.
c) Declaração Mensal da Taxa SIRCA, conforme modelo 1015/DGAV, do mês de junho de 2015, no valor de €31.986,03, pagos em 30 de setembro de 2015 - cf. doc. n.º 3, junto com a douta petição de impugnação.
2.° - A impugnante procedeu às autoliquidações em cumprimento das instruções recebidas do IFAP - cf. docs. de fls.11 a 19 do processo físico, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os legais efeitos (tendo em conta que fazem parte integrante do processo).

7. Do objecto do recurso

Da análise da decisão recorrida e dos fundamentos invocados pela recorrente para pedir a sua alteração, podemos concluir que a questão objecto do recurso consiste em saber se padece de erro de julgamento a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel que julgou improcedente a impugnação deduzida pela recorrente no entendimento de que a impugnada Taxa “Sirca” constitui uma verdadeira contribuição financeira e não viola os arts. 103º, nº 2, e 165.°, n.º 1, alínea i), da CRP, pelo que não padece de qualquer inconstitucionalidade orgânica por violação de reserva de lei formal, não existindo qualquer fundamento legal para desaplicar o regime legal aprovado pelo DL 19/2011, que determine a ilegalidade das liquidações impugnadas.

Não conformada com o assim decidido sustenta a recorrente, no essencial, que a denominada “taxa para financiamento do Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações”, enquanto imposta aos estabelecimentos de abate, consubstancia um imposto e não uma taxa ou qualquer outra contribuição financeira, sendo que a criação de impostos é da competência legislativa reservada da Assembleia da República; que, assim sendo, são organicamente inconstitucionais as normas constantes do DL n.º 19/2011, de 7 de Fev., designadamente o seu art. 2.º, n.º 1 (cfr. as Conclusões 17.ª, 20.ª 22.ª e 23.ª).

8. Do alegado erro de julgamento imputado à decisão recorrida

A questão suscitada é em tudo idêntica à questão foi apreciada e decidida neste Supremo Tribunal Administrativo por acórdão de 03.05.2017, no recurso n.º 914/16, interposto pela mesma recorrente, em que o presente relator interveio como adjunto, sendo idênticas as alegações de recurso, pelo que se acompanhará a argumentação jurídica aí aduzida por economia de meios e tendo em vista uma interpretação e aplicação uniformes do direito (cfr. artigo 8.º n.º 3 do CC).
Será, pois, pertinente referir o que se decidiu no supra citado Acórdão 914/16 sobre a legalidade da liquidação da taxa “SIRCA” tal como configurada pelo Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro:
«A doutrina define as “contribuições” como prestações pecuniárias e coactivas exigidas por uma entidade pública em contrapartida de uma prestação administrativa presumivelmente provocada ou aproveitada pelo sujeito passivo (cfr. Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2015, p. 260).
Entende o Tribunal Constitucional, ao arrepio de doutrina qualificada – vg. Sérgio Vasques, Suzana Tavares da Silva, para quem até à aprovação do “regime geral” constitucionalmente previsto as contribuições financeiras devem continuar a ser sujeitas à reserva de lei parlamentar -, no Acórdão que a sentença recorrida invoca para fundamentar a sua decisão do sentido da não inconstitucionalidade orgânica do Decreto-lei 19/2011, de 7 de Fevereiro, não estarem as contribuições financeiras sujeitas à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
Não obstante, mesmo acatando esse entendimento – não incontroverso na doutrina, como referimos já – é lícito ao julgador o regime legal do tributo paracomutativo quando este se apresente desconforme com os princípios fundamentais que devem conformar o seu regime, designadamente com o princípio da igualdade.
No regime da taxa “Sirca”, tal como configurado pelo Decreto-Lei n.º 19/2011 – e ao contrário do que sucedia no regime precedente (Decreto-Lei n.º 244/2003, de 7 de Outubro) e do que lhe sucedeu (Decreto-Lei n.º 33/2017, de 23 de Março), o legislador estabeleceu que Para efeitos de financiamento do SIRCA é cobrada uma taxa aos estabelecimentos de abate relativamente a bovinos, ovinos, caprinos, suínos e equídeos, produzidos no território continental e apresentados para abate (…) – cfr. o n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro -, estando os estabelecimentos de abate isentos do pagamento de tal taxa relativamente a animais que provenham de explorações em que os respectivos titulares, por si ou através de organizações de produtores, recorrendo ou não à prestação de serviços de terceiros, assegurem a recolha, o transporte, a eventual concentração em unidades intermédias aprovadas para o efeito e a destruição dos animais referidos no n.º 1 mortos nas suas explorações (cfr. o n.º 4 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro) e bem assim relativamente a animais para abate provenientes das regiões autónomas, de trocas intracomunitárias ou importados directamente para esse efeito (cfr. o n.º 6 do artigo 2.º), neste caso estando os apresentantes de animais para abate (…) obrigados a suportar os custos inerentes à recolha, ao transporte e à destruição dos cadáveres (cfr. o artigo 3.º do Decreto-lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro).
Não oferece dúvidas que estando a taxa “SIRCA” afecta ao financiamento do sistema de recolha de cadáveres de animais mortos em explorações (SIRCA) – cfr. o artigo 1.º do Decreto-lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro -, é o titular da exploração, e não o estabelecimento de abate, aquele que directamente beneficia da existência e funcionamento do “SIRCA”, compreendendo-se, pois, que seja a ele que se imponha o encargo de contribuir para o financiamento de tal sistema.
A lei pretérita e posterior assim o estabeleciam, aliás – cfr. o n.º 2 do artigo 5.º e o n.º 2 do artigo 9.º do Decreto-lei n.º 244/2003, de 7 de Outubro e artigos 7.º a 10.º do Decreto-lei n.º 33/2017, de 23 de Março -, sem prejuízo de, designadamente por razões de praticabilidade, o legislador impor aos estabelecimentos de abate a obrigação de liquidação, cobrança e entrega de tal tributo.
Esta solução legal, que o Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro não observou, é a que melhor se afigura conforme ao princípio da igualdade, na sua dimensão de equivalência, pois que onera com o tributo aquele que, no circuito produtivo, é o directo beneficiário do serviço público prestado. O estabelecimento de abate não o é, e como tal, afigura-se desconforme a tal princípio configurá-lo não como substituto tributário, com ou sem retenção, mas como contribuinte directo.
Entendemos, pois, ser inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, na sua dimensão de equivalência (artigo 13.º da Constituição), a taxa “SIRCA” tal como configurada pelo Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro, na medida em que configura o “estabelecimento de abate” como contribuinte directo do tributo, quando o presumível beneficiário do serviço que esta se destina a financiar é, não ele, mas o titular da exploração» (fim de citação).

Concordamos com esta jurisprudência, cuja fundamentação subscrevemos, e, por isso, concluímos que, o recurso merece provimento, sendo de julgar procedente a impugnação judicial deduzida, anulando as liquidações sindicadas e ordenando a restituição dos montantes pagos pela recorrente, sem pagamento de juros indemnizatórios, por inexistência de “erro imputável aos serviços” dado o fundamento de ilegalidade julgado verificado.

9. Decisão
Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida, e julgar procedente a impugnação judicial, salvo quanto aos peticionados juros indemnizatórios.

Custas pela entidade recorrida, que contra-alegou.

Lisboa, 17 de Maio de 2017. – Pedro Delgado (relator) – Dulce Neto – Isabel Marques da Silva