Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:047980
Data do Acordão:02/27/2002
Tribunal:3 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:JORGE DE SOUSA
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL.
EMPREITADA DE OBRAS PÚBLICAS.
ACTO DE GESTÃO PÚBLICA.
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
Sumário:I - A competência dos tribunais administrativos relativamente a acções de responsabilidade civil extracontratual emergente de actos do Estado, demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos ou agentes restringe-se aos casos em que esta deriva de actos de gestão pública, como decorre do preceituado nos arts. 4.º, n.º 1, alínea f), e 51.º, n.º 1, alínea h), do E.T.A.F..
II - Actos de gestão pública são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder público, isto é, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção.
III - Não constitui acto de gestão pública a execução de obras de beneficiação no interior de um edifício em que funciona um Ministério.
IV - Sendo tais obras efectuadas por um particular com base em contrato de empreitada de obras públicas, a natureza administrativa do respectivo contrato é relevante para efeitos de inclusão do conhecimento das questões dele emergentes no âmbito da jurisdição administrativa, mas a existência desse contrato não implica que os actos ou omissões praticados na sua execução que lesem terceiros, emergentes de outros factos jurídicos, sejam considerados como actos de gestão pública.
Nº Convencional:JSTA00057443
Nº do Documento:SA120020227047980
Data de Entrada:09/19/2001
Recorrente:ESTADO PORTUGUÊS
Recorrido 1:A... E OUTRO
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAC LISBOA.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - RESPONSABILIDADE EXTRA.
Legislação Nacional:ETAF84 ART4 N1 F ART51 N1 H.
Jurisprudência Nacional:AC TCONF DE 1981/11/05 IN BMJ N311 PAG195.; AC TCONF DE 1983/10/20 IN AP-DR DE 1986/04/03 PAG18.; AC TCONF DE 1989/01/12 IN AD N330 PAG845.; AC TCONF DE 1999/05/12 IN AP-DR DE 2000/07/31 PAG19.; AC STA DE 1994/11/22 IN AP-DR DE 1997/04/18 PAG8256.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
1 – A... intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, contra o ESTADO PORTUGUÊS e B... acção para exigir indemnização por responsabilidade civil extracontratual.
Os Réus excepcionaram a incompetência do Tribunal Administrativo de Círculo, em razão da matéria, sendo a excepção julgada improcedente no despacho saneador.
Inconformado, o Estado Português interpôs o presente recurso contencioso para este Supremo Tribunal Administrativo, apresentando alegações com as seguintes conclusões:
1. A competência dos tribunais administrativos em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e conhecimento oficioso (art. 3.º da LPTA) ;
2. A competência em razão da matéria afere-se pela causa de pedir, através dos termos em que é formulado o pedido pela A.
3. Em consonância com o art. 212.º, n.º 3.º da C.R.P. e com o disposto no art. 3.º do E.T.A.F. que atribui aos tribunais administrativos competência para dirimir conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas, entendidas estas como relações dirigidas à satisfação do interesse público ou das necessidades colectivas que resultam da actividade da Administração desenvolvida sob a égide do direito público, o art. 4.º, n.º1 al. f) do E.T.A.F. exclui da jurisdição administrativa as acções que tenham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa colectiva de direito público;
4. No domínio especifico da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos, o art. 51.º, n.º 1 al. h) do E.T.A.F., também e sempre em consonância com as disposições atrás citadas, atribui unicamente aos tribunais administrativos (de círculo) a competência para conhecer das acções sobre responsabilidade do Estado, dos demais ente públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos que decorram de actos de gestão pública,
5. Estando, portanto, subtraídas da jurisdição administrativa as que versem sobre actos de gestão privada de tais entidades;
6. De gestão privada são actos em que a pessoa colectiva aparece despida de um poder público e se encontra numa posição de paridade com o particular a que os actos respeitam, sujeita às regras de direito privado;
7. Gestão pública é a actividade desenvolvida pelos órgãos ou agentes da Administração na prossecução e com vista à realização de interesses da colectividade, do interesse público legalmente definido, no exercício de uma função pública, munidos de um poder de “imperium”, sob a égide do direito público;
8. Uma obra de repavimentação ou melhoramento do pavimento do pátio interior de um Ministério, como aquela em que ocorreu o acidente que constitui a causa de pedir da presente acção, não prossegue em si mesma específicos interesses da colectividade, não se destina, em si, à satisfação de necessidades colectivas nem se inscreve na prossecução de um interesse ou função pública específicos;
9. O contrato estabelecido entre o Estado, através do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e uma empresa privada para a realização de tal obra não configura um contrato administrativo, nem é de gestão pública, ou geradora de relações jurídicas administrativas públicas, a actividade levada a cabo em execução de tal contrato ou a ele, e às obras respectivas, respeitante;
10. Trata-se, com efeito, de meras obras de conservação do património do Estado, que este leva a cabo ou contrata com terceiros, como qualquer particular e submetido à mesma disciplina jurídica de direito privado;
11. Entre o Estado e o R. B..., como entre o Estado e a A., não existe qualquer relação jurídica administrativa, mas apenas entre os primeiros, uma mera relação jurídica de direito privado;
12. O tribunal administrativo (de círculo) é, assim, incompetente em razão da matéria para conhecimento da acção para efectivação da responsabilidade civil extracontratual do Estado por prejuízos resultantes de acidente ocorrido aquando e por causa da realização de tais obras;
13. De todo o modo, o acidente em causa não resultou, nos termos da própria petição, da prática ou omissão de acto ilícito dos serviços ou agentes do R. Estado, susceptível de dar lugar à responsabilidade civil deste, ou de qualquer relação jurídica administrativa, de gestão pública, entre o R. e a A., mas de deficiência de segurança, por omissão de sinalização da obra, por parte da empreiteira a quem cabe a responsabilidade pelos prejuízos causados a terceiros, sendo que,
14. A reger-se o contrato firmado pela disciplina do D.L. 405/93, de 10.12, então em vigor, sempre a responsabilidade desta pelos prejuízos causados a terceiros seria exclusiva, face ao que dispõem os arts. 38.º, n.º1 e 40.º do diploma citado, e sempre, em todo o caso, o tribunal incompetente em razão da matéria;
15. Julgando o tribunal competente o despacho recorrido fez errada interpretação e violou o art. 51.º, n.º1, al. h) do E.T.A.F, conjugado com os arts. 3.º e 4.º, n.º1 al. f) do mesmo E.T.A.F., e o art. 2.º, n.º1 do D.L. 48051, de 21.11.67;
16. Deve, por isso, ser revogado e substituído por outro que declarando o tribunal administrativo incompetente em razão da matéria, julgue procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta, e absolva o R. Estado de instância (arts. 494.º, n.º1 al. a), 493.º, n.º2, 101.º e 105.º, todos do C. P. Civil).
Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – A Autora assenta o seu pedido nos seguintes factos, em síntese:
é funcionária do Ministério dos Negócios Estrangeiros;
quando se preparava para sair do serviço, na noite de 8-2-97, caiu numa vala, não sinalizada e situada em local não iluminado, aberta pela B... no interior do edifício daquele Ministério;
em consequência da queda, sofreu danos físicos e morais;
a B... foi contratada pelo Estado Português para levar a cabo uma obra de melhoramento do pavimento junto da entrada principal ainda no interior do edifício do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
a B... não tomou as providências necessárias para garantir a segurança da obra de forma a não causar danos a terceiros, designadamente a nível de sinalização da vala referida;
o ESTADO não providenciou também no sentido de ser sinalizada e iluminado o local onde estava aberta a referida vala, não fiscalizou a adopção pela B... das medidas de segurança necessárias, nem avisou a Autora da existência da referida vala ou do início da execução das obras.
No despacho recorrido, entendeu-se que a adjudicação pelo ESTADO à B... da obra indicada constitui um acto de gestão pública e que esta se encontrava vinculada ao ESTADO por um contrato administrativo e agia sob as ordens e no interesse deste, o dono da obra.
O ESTADO sustenta no presente recurso jurisdicional, em suma, que
uma obra de repavimentação ou melhoramento do pavimento interior de um edifício onde funciona um Ministério não prossegue em si mesma específicos interesses da colectividade, não se destina, em si mesma à satisfação de necessidades colectivas nem se inscreve na prossecução de um interesse ou função pública específicos;
que o contrato entre o ESTADO e a B... não é de natureza administrativa nem é de gestão pública a actividade levada a cabo em execução de tal contrato;
o acidente em causa, nos termos da petição, não resultou da prática ou omissão de acto ilícito dos serviços ou agentes do Estado, pelo que seria de responsabilidade exclusiva da B..., pelo que, também por esta razão, o tribunal administrativo será materialmente incompetente.
3 – A competência dos tribunais administrativos relativamente a acções de responsabilidade civil extracontratual emergente de actos do Estado, demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos ou agentes restringe-se aos casos em que esta deriva de actos de gestão pública, como decorre do preceituado nos arts. 4.º, n.º 1, alínea f), e 51.º, n.º 1, alínea h), do E.T.A.F..
A questão da qualificação dos actos de Administração como actos de gestão pública ou de gestão privada foi tratada em vários acórdãos do Tribunal de Conflitos.
Actos de gestão pública são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder público, isto é, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção; actos de gestão privada são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração em que esta aparece despida de poder e, portanto, numa posição de paridade com o particular ou os particulares a que os actos respeitam, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular com inteira subordinação às normas de direito privado. (Neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos:
do Tribunal de Conflitos de 5-11-1981, proferido no processo n.º 124, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.° 311, página 195;
do Tribunal de Conflitos de 20-10-1983, proferido no processo n.º 153, publicado em Apêndice ao Diário da República de 3-4-1986, página 18;
do Tribunal de Conflitos de 12-1-1989, proferido no processo n.º 198, publicado em Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, nº 330, página 845;
do Tribunal de Conflitos de 12-5-1999, proferido no processo n.º 338, publicado em Apêndice ao Diário da República de 31-7-2000, página 19;
do Supremo Tribunal Administrativo de 22-11-1994, proferido no recurso n.º 33332, publicado em Apêndice ao Diário da República de 18-4-1997, página 8256. )
«A solução do problema da qualificação, como de gestão pública ou de gestão privada, dos actos praticados pelos titulares de órgãos ou por agentes de uma pessoa colectiva pública, incluindo o Estado, reside em apurar:
Se tais actos se compreendem numa actividade da pessoa colectiva em que esta, despida do poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam, e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas do direito privado;
Ou se, contrariamente, esses actos se compreendem no exercício de um poder público, na realização de uma função pública, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devem ser observadas.» (Acórdão do Tribunal de Conflitos proferido no processo n.º 124, citado.)
No caso em apreço, na petição inicial, à face do que a Autora refere, não se vê qualquer afirmação que possa levar a concluir que o acidente se relaciona com qualquer exercício de poderes públicos por parte do Estado.
Na verdade, no que concerne a imputação directa do acidente à actuação do Estado, a Autora limita-se a dizer que ele não providenciou para sinalização e iluminação do local onde foi aberta a vala, não fiscalizou o cumprimento pela B... das necessárias medidas de segurança nem avisou a Autora da existência da vala ou do início das obras naquele local (arts. 51.º a 53.º da petição), não alicerçando a responsabilidade do Estado na violação de normas diferentes daquelas que refere terem sido violadas pela B... (os arts. 135.º e 138.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, constante do Decreto-Lei n.º 38382, de 7-8-1951), normas estas de aplicação à generalidade das obras em edifícios, inclusivamente as realizadas por particulares.
Isto é, tanto em relação ao Estado como à B..., a pretensão da Autora não se baseia em qualquer norma reguladora da sua actividade de direito público nem em qualquer actividade por estes desenvolvida que não pudesse ser estabelecida entre particulares, designadamente entre o dono da obra e o empreiteiro num contrato de empreitada não administrativo e terceiros lesados na sua execução.
Por outro lado, a natureza da relação que se estabelece entre o Estado e a B..., por um lado, e a Autora, por outro, não depende da natureza do contrato celebrado entre o Estado e a B....
Embora não sejam exactamente conhecidos os termos do contrato celebrado entre o Estado e a B..., ele será um contrato administrativo, se for qualificável como contrato de empreitada de obras públicas [arts. 9.º, n.º 2, do E.T.A.F., 178.º, n.º 2, alínea a), do C.P.A. e art. 1.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 405/93, de 10 de Dezembro, vigente à data em que ocorreram os factos].
Essa eventualidade é relevante para inclusão do conhecimento das questões emergentes de tal contrato no âmbito da jurisdição administrativa, por serem legalmente qualificadas como relações jurídicas de direito administrativo as que se estabelecem entre os contraentes (arts. 9.º, n.º 1, do E.T.A.F. e 178.º, n.º 1, do C.P.A.).
Mas, as relações jurídicas entre as partes no contrato administrativo, as que têm como fonte o contrato, não se confundem com as relações jurídicas, estranhas ao contrato, que se possam originar entre aquelas partes e os particulares, emergentes de outros factos jurídicos.
A qualificação ou não destas últimas como relações jurídicas administrativas dependerá do respectivo facto constitutivo, modificativo ou extintivo e não do contrato, que é gerador apenas da relação entre as partes no mesmo.
Assim, no caso dos autos, a relação que se estabelece entre a B... e a Autora, emergente do acidente, tem natureza idêntica à que se geraria entre o Estado e esta, se, não existindo contrato de empreitada, o Estado realizasse as obras por si mesmo, sem intervenção de terceiros.
Por isso, no caso em apreço, estando o Estado e a B..., no que concerne às relações com terceiros, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder qualquer particular, com submissão às normas do direito privado, não actuando qualquer deles no exercício de um poder público ou na realização de uma função pública, tem de concluir-se, em sintonia com a jurisprudência citada, que os actos de que a Autora faz emergir o seu direito de indemnização não constituem actos de gestão pública.
Consequentemente, os tribunais administrativos são materialmente incompetentes para o conhecimento da pretensão da Autora, como resulta dos citados arts. 4.º, n.º 1, alínea f), e 51.º, n.º 1, alínea h), do E.T.A.F..
Termos em que acordam em dar provimento ao presente recurso jurisdicional, em revogar o despacho saneador na parte impugnada e em julgar o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa incompetente, em razão da matéria, para o conhecimento da acção, absolvendo os réus da instância.
Custas pela Autora, apenas na 1.ª instância.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2002.
Jorge de Sousa - Relator - Abel Atanásio - Costa Reis.