Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01021/16
Data do Acordão:05/17/2017
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANA PAULA LOBO
Descritores:TAXA SIRCA
Sumário:A taxa “SIRCA” tal como configurada pelo Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro, na medida em que configura o “estabelecimento de abate” como contribuinte directo do tributo, quando o presumível beneficiário do serviço que esta se destina a financiar é, não ele, mas o titular da exploração, é inconstitucional por violação do princípio da igualdade, na sua dimensão de equivalência.
Nº Convencional:JSTA000P21875
Nº do Documento:SA22017051701021
Data de Entrada:09/09/2016
Recorrente:A... - INDÚSTRIA DE PRODUTOS PECUÁRIOS DO NORTE, S.A.
Recorrido 1:IFAP, IP
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: RECURSO JURISDICIONAL
DECISÃO RECORRIDA – Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel
. de 05 de Maio de 2016

Julgou a impugnação improcedente.

Acordam nesta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:



A……………. – Indústria de Produtos Pecuários do Norte, S.A., veio interpor o presente recurso da decisão supra mencionada, proferida no processo de impugnação n.º 364/12.3BEPNF, por si instaurado, contra os actos de autoliquidação de quatro “taxas para financiamento do Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações”, no valor global de EUR. 37.326,33, tendo, para esse efeito formulado, a final da sua alegação, as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal “a quo”, que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida pela recorrente, e que, salvo o devido respeito, não poderá ser mantida.

2. A sentença proferida é contraditória relativamente a outras sentenças proferidas pelo mesmo Tribunal quanto à mesma questão de direito, nas quais foram os pedidos formulados julgados totalmente procedentes e, consequentemente, anuladas as liquidações das taxas impugnadas e restituídos os montantes pagos.

3. A criação do Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações” (SIRCA) teve em vista, na sequência dos diplomas legais que interditaram que fossem enterrados animais mortos nas exploração das espécies bovina, ovina, caprina e suína, assegurar a recolha daqueles animais nas explorações com vista à sua eliminação e de forma a salvaguardar a segurança alimentar, a saúde pública e a protecção do ambiente.

4. Desta forma, a SIRCA consistia, nos termos Decreto-Lei n.º 244/2003, de 7 de Outubro, num serviço prestado a quem apresentasse os animais para abate, isto é, aos titulares de explorações que se dedicam à pecuária pelo que, consequentemente, era também sobre estes que, naturalmente, recaía a obrigação de proceder ao pagamento do respectivo serviço por via de uma taxa, cobrada através dos estabelecimentos de abate apenas por uma questão de eficácia na cobrança da taxa.

5. O Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações visava, como é comum num estado de direito, que apenas os beneficiários do sistema – produtores de gado – contribuíssem para o seu próprio financiamento, mediante o pagamento de uma taxa.


6. Sucede que, o Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro, veio revogar o previsto no Decreto - Lei 244/2003 no que respeita ao regime de financiamento, tendo sido radicalmente alterado o paradigma da responsabilidade pelo pagamento da taxa devida, o qual passou a recair sobre quem dela não retira qualquer benefício: os estabelecimentos de abate.

7. O legislador transformou a taxa em causa num verdadeiro imposto, porquanto, conforme resulta demonstrado, os beneficiários do SIRCA são apenas os respectivos produtores e apresentantes dos animais e não os estabelecimentos de abate.

8. Acresce que, a “Taxa TSAM” nada tem que ver com a “Taxa SIRCA”, cujos pressupostos e finalidade se afiguram totalmente distintos daquela taxa.
9. No caso da “Taxa TSAM", o valor da taxa paga pelos estabelecimentos comercias sobre os quais a mesma incide, é visto como uma contrapartida da segurança e de qualidade alimentar que os próprios titulares desses estabelecimentos têm que garantir no tocante aos produtos que comercializam e que aquele aquela contribuição lhes vai proporcionar e, portanto, existe em seu próprio benefício.

10. A recorrente assume-se como uma mera prestadora de serviços, cuja actividade se dirige essencialmente à prestação de serviços de abate de animais a terceiros – os apresentantes dos animais, esses sim, verdadeiros beneficiários do sistema em questão – o que a distingue daqueles que são produtores, distribuidores ou comerciantes de géneros alimentícios, nomeadamente de origem animal, e que, nessa medida, beneficiam da garantia de segurança e qualidade alimentar desses produtos resultante da actividade a que tais contribuições se destinam.

11. Mais se diga que os beneficiários da recolha dos animais mortos são apenas os respectivos produtores e apresentantes dos animais e não os matadouros, uma vez que a ausência de qualquer infecção permite que os produtores e apresentantes dos animais os possam comercializar. Contrariamente, infectados ou não, os matadouros procedem sempre ao seu serviço, a única diferença é que o animal enfermo não entra no circuito comercial com directo prejuízo para o apresentante do animal e não para o matadouro, que cobra sempre o seu serviço de abate.

12. Diversamente, do que sucede na Taxa de Segurança Alimentar Mais, em que o diploma procurou assegurar uma equitativa repartição dos custos dos programas de controlo, na medida em que vários operadores da cadeia alimentar são beneficiários, na Taxa SIRCA, estranhamente, a taxa é cobrada apenas aos matadouros, em clara violação do princípio do “utilizador pagador”.

13. Nos termos do artigo 9.º do Decreto -Lei n.º 119/2012, de 15 de Junho, e do n.º 3 da Portaria n.º 215/2012 de 17 de Julho, a Taxa de Segurança Alimentar Mais abrange sociedades comerciais com lojas de grande dimensão, propriedade de grandes grupos económicos, como por exemplo a “B………..” ou “C………..”, que podem facilmente incorporar a TSAM nos seus custos.

14. Ao contrário do que sucede com os estabelecimentos de abate que são incapazes de suportar taxas estranhas a sua actividade específica, comprometendo a sua sobrevivência, o que originará um número elevado de desempregados.

15. O facto de os titulares de explorações que tenham capacidade de recolha, transporte e destruição ficarem isentos da taxa de financiamento do SIRCA demonstra igualmente, de forma inequívoca, como os únicos beneficiários daqueles serviços são os titulares de explorações que não procedam directamente à recolha e transporte de cadáveres e, por isso mesmo, têm que recorrer aos serviços do Estado, suportando, por isso, o pagamento da respectiva contrapartida monetária.

16. Existem outras taxas impostas aos matadouros em que há efectivamente uma contrapartida específica, e em que estes, por isso, enquanto beneficiários da actividade desenvolvida, pagam as respectivas taxas sanitárias e taxas de controlo oficial, o que lhes permite a prossecução da actividade industrial e comercial a que se dedicam.

17. A taxa devida pelo financiamento do Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações (SIRCA), quando imposta aos estabelecimentos de abate, consubstancia um imposto e não uma taxa ou qualquer outra contribuição financeira.

18. Com efeito, atentas as características reconhecidas à taxa enquanto tributo, conclui-se que não estamos, in casu, perante a liquidação de qualquer taxa, porquanto a quantia exigida à ora Impugnante não é devida por qualquer prestação de um serviço público, pela utilização de um bem do domínio público, nem pela remoção de um obstáculo jurídico.

19. Na verdade, para que a SIRCA fosse susceptível de continuar a ser qualificada como uma taxa teria que ser possível identificar um vínculo de correspectividade entre o pagamento da mesma e a prestação efectuada pelo Estado.


20. Ora, se essa sinalagmaticidade existia enquanto a SIRCA era cobrada àqueles que dela beneficiavam (os detentores de animais), desapareceu a partir do momento em que com o Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro, passaram os estabelecimentos de abate de animais a figurar como seus sujeitos passivos.

21. Destarte, para que o montante cobrado seja uma taxa, a mesma terá, necessariamente, que incidir sobre os titulares de explorações (os beneficiários) e não sobre os estabelecimentos de abate (terceiros), pelo podemos afirmar que estamos perante um verdadeiro imposto e não qualquer taxa.

22. É então, mister afirmar que as liquidações impugnadas são ilegais, na justa medida em que violam o disposto no n.º 2 do artigo 4.º da LGT.

23. Ora, ao tratar-se de um imposto, acontece que os impostos obedecem ao princípio da legalidade tributária, consagrado no n.º 2, do artigo 103.º, da CRP, de acordo com o qual, “os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes.”

24. A criação de impostos é da exclusiva competência legislativa reservada da Assembleia da República, pelo que a lei a que se refere o referido n.º 2 do artigo 103.º da CRP é, em princípio, uma lei da AR, só podendo tratar-se de Decreto-Lei quando houver uma autorização concedida ao Governo.

25. Sucede que o Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro foi aprovado nos termos do artigo 198.º, n.º 1, alínea a), da CRP, ou seja, como se a matéria em causa fosse de competência não reservada da Assembleia da República, pelo que são organicamente inconstitucionais as normas constantes do Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro, designadamente o seu artigo 2.º, n.º 1, na medida em que procede à criação de um imposto sobre os estabelecimentos de abate em desrespeito pelos supramencionados comandos constitucionais.

26. Isto posto, a Constituição reconhece aos cidadãos o direito a não procederem ao pagamento dos impostos, não só no caso de os mesmos terem sido criados de forma inconstitucional, ou seja, quando não foram criados pela Assembleia da República, ou mediante autorização desta, mas igualmente quando a sua liquidação e cobrança não sejam feitas “nas formas prescritas na lei”.

27. Pelo que, em face de tudo o exposto são ilegais os actos de liquidação da denominada “Taxa para financiamento do Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações” que a Recorrente liquidou à Recorrida, no montante de €37.326,33. (trinta se sete mil trezentos e vinte e seis euros e trinta e três cêntimos), razão pela qual não pode ser mantida a sentença proferida pelo Tribunal “a quo”.

Requereu que seja concedido provimento ao presente recurso provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, sendo a acção julgada procedente e, em consequência, declarados nulos ou anulados os actos de autoliquidação da denominada “Taxa para financiamento do Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações”, que a Recorrente liquidou à Recorrida, no montante de €37.326,33 (trinta se sete mil trezentos e vinte e seis euros e trinta e três cêntimos), com a consequente devolução de tal montante.


Foi emitido parecer pelo Magistrado do Ministério Público no sentido da improcedência do recurso, indicando que: «A “taxa SIRCA”, tal como prevista no Decreto-Lei n.º 19/2011, de 17/2, não é de qualificar como imposto por lhe faltar a unilateralidade.
Contudo, deixou de ter o caráter de taxa por não assentar numa prestação de serviço.
A mesma é de considerar contribuição especial, considerando o art. 2.º do referido Dec. Lei e que tem uma bilateralidade presumida.
A cobrança da mesma à impugnante, proprietária de centro de abate, não impede que os montantes que auto liquidou e pagou pelas ditas taxas sejam repercutidos nos proprietários ou exploradores dos animais abrangidos.
Apesar de tal não ter sido previsto, não ocorre ilegalidade por violação do art. 4.º n.º 2 da L.G.T. nem inconstitucionalidade orgânica por violação do art. 165.º n.º 1 al. i) da C.R.P.
O princípio da legalidade previsto no art. 103.º n.º 2 da C.R.P. também não é aplicável por dizer respeito a imposto, em que a dita “taxa SIRCA” não se insere.».

Foram apresentadas contra-alegações pelo recorrido INSTITUTO DE FINANCIAMENTO DA AGRICULTURA E PESCAS, I.P. (IFAP, IP), pronunciando-se pela confirmação da sentença recorrida que encerram com as seguintes conclusões:

A. Recorrente na impugnação judicial objeto dos presentes autos impugna os atos de autoliquidação de duas "taxas para financiamento do Sistema de Recolha de Cadáveres de animais Mortos nas Explorações", no valor total de EUR 37.326,33, ou seja, as autoliquidações da denominada taxa SIRCA, cuja liquidação foi efetuada pelo IFAP em cumprimento do disposto no artigo 2º do Decreto-Lei nº 19/2011, de 7 de fevereiro, nos termos da qual a ora Recorrente era sujeito passivo da referida liquidação.

B. Deste modo, ao contrário do que pretende a Recorrente, não se pode dizer simplesmente que o único fundamento para "julgar como improcedente a impugnação radica, essencialmente, na classificação das "taxas para financiamento do Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações" não como taxa ou imposto mas, antes como contribuição financeira".

C. Acresce ao exposto que a Recorrente refere cerca de 11 processos onde alega existir "total identidade jurídica variando apenas o montante das taxas impugnadas", sendo que em nenhum deles o IFAP é parte processual, sendo que o único processo no qual o IFAP, IP, ora Recorrido, é efetivamente parte, ou seja, no qual a Recorrente poderia alegar "total identidade jurídica" é o Proc. nº 43/12.1BEPNF, e que não foi mencionado pelo ora Recorrido, no qual foi igualmente proferida sentença favorável ao IFAP, mas que, efetivamente, aguarda ainda o trânsito em julgado.

D. Relembra-se que no âmbito dos presentes autos existiu uma primeira sentença desfavorável ao IFAP que foi objeto de recurso para o STA (que correu termos na 2ª Secção de Contencioso Tributário, sob o nº 663/15) e na qual, em suma, se decidiu o seguinte:
"Com o novo regime legal [da taxa SIRCA] aprovado pelo DL 19/2011, o seu art. 2º, nº 1, passou a considerar que o sujeito passivo da taxa era o estabelecimento de abate e não o apresentante do animal para abate.
E é esta alteração qua a impugnante alega que é ilegal por violar o art. 4.º, nº 2, da LGT, porquanto ao vir exigir-se ao dono do estabelecimento o pagamento de uma quantia monetária para manutenção do SIRPE, o art. 2° do DL 19/2011, não atentou, nem considerou, que os donos dos estabelecimentos de abate que não estejam abrangidos pelo regime de isenção do n.° 4 do art. 2.° não têm qualquer sinalagmaticidade nessa atividade. Isto é, o art. 2.°, n.º 1, do DL 19/2011 é ilegal por violar o art. 4.°, n.° 2, da LGT, já que com exercício dessa atividade o Estado não presta em concreto um serviço público à impugnante, a impugnante não utiliza qualquer bem do domínio público ou o Estado remove qualquer obstáculo jurídico ao comportamento da impugnante.
(…)
Tem razão o recorrente.
Não sendo a Lei Geral Tributária uma lei de valor reforçado, antes uma lei ordinária comum, manifesto é que a julgada antinomia entre o disposto no seu artigo 4.°, n.° 2 e o estabelecido no artigo 1°, n.° 1 , do DL n.° 19/2011 ambas leis ordinárias comuns -, não é motivo válido e suficiente para fundamentar a julgada "ilegalidade das liquidações por vício de violação de lei", pois que, por definição, tal vício só ocorre entre actos normativos que não têm igual valor hierárquico, o que não é o caso dos presentes autos. Não se encontra, pois, justificação legal para a desaplicação, sem qualquer prévio juízo de inconstitucionalidade, do disposto no artigo 2.°, n.° 1, do DL n.° 19/2011.
Contrariamente ao decidido, a questão da inconstitucionalidade orgânica do artigo 2.°, n.° 1 do DL 19/2011 não se podia ter como prejudicada em face da julgada violação do n.° 2 do artigo 4.° da LGT - pois que a violação do artigo 4.º, n.° 2 da LGT não pode fundamentar um juízo de ilegalidade de outras normas legais e, havendo que, no provimento do recurso e na sequência da revogação da sentença recorrida, tomar posição sobre a natureza jurídica da prestação em causa (imposto, taxa ou contribuição) e dela conhecer", concluindo que a decisão recorrida teria de analisar a invocada inconstitucionalidade da norma que serve de fundamento legal/de direito do ato de autoliquidação, anulando a decisão recorrida e determinando a baixa dos autos ao Tribunal recorrido para que este aprecie os fundamentos da impugnação.

E. Apesar da recorrente alegar que não percebe a existência de duas sentenças contraditórias, sendo uma proferida em 12 de junho de 2014 e outra em 05 de maio de 2016, ao ler os fundamentos da douta sentença recorrida, os quais a Recorrente cita, aperceber-se-ia facilmente que a sentença em causa subscreve uma posição similar assumida pelo Tribunal Constitucional no seu douto Acórdão nº 539/2015, de 20/10/2015, ou seja, em momento posterior à prolação da primeira sentença.

F. De facto, a sentença recorrida refere expressamente que "A questão a decidir passa necessariamente pela qualificação jurídica da denominada taxa SIRCA. (…) Esta classificação tripartida dos tributos foi reconhecida e julgada pelo Tribunal Constitucional no seu douto Acórdão nº 539/2015, de 20/10/2015, publicado no Diário da República, nº Série, nº 227, de 19/11/2015, a propósito da denominada taxa de segurança alimentar mais, aprovada pelo DL 119/2012, de 15 de Junho.
Assim, atenta a identidade jurídica das denominadas taxas SIRCA e segurança alimentar mais, as considerações expendidas a propósito desta última são integralmente aplicáveis à taxa SIRCA, com as devidas adaptações.
(…) A taxa SIRCA não é um imposto e também não é uma taxa. Apesar de ser denominada taxa, juridicamente o tributo em causa é uma verdadeira contribuição financeira."

G. Face ao exposto, bem andou o Tribunal ao aderir integralmente ao Acórdão do Tribunal Constitucional citado e concluir que as liquidações impugnadas não padecem de qualquer ilegalidade, "julgando a impugnação judicial totalmente improcedente".

H. Os subprodutos animais, nomeadamente cadáveres inteiros ou partes de animais ou produtos de origem animal, não destinados ao consumo humano são uma fonte potencial de riscos para a saúde pública e animal e para o ambiente, sendo gerados principalmente durante o abate de animais para consumo humano, na produção de géneros alimentícios de origem animal, na eliminação de animais mortos e na aplicação de medidas de controlo de doenças.

I. O Decreto-Lei nº 244/2003, de 7 de Outubro (adiante DL 244/2003), estabelece o regime a que ficam obrigadas as entidades geradoras de subprodutos animais, de acordo com o disposto no Regulamento (CE) nº 1774/2002, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Outubro, e suas alterações, relativamente à sua recolha, transporte, armazenagem, manuseamento, transformação e utilização ou eliminação, bem como as regras de financiamento do sistema de recolha de animais mortos na exploração (SIRCA).

J. Além disso, o DL 244/2003 atribuiu ao agora Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, I. P. (IFAP, I. P.) a missão de assegurar a recolha, transporte e destruição dos cadáveres dos bovinos, ovinos, caprinos, suínos e equídeos mortos na exploração, tendo ainda estabelecido taxas de igual valor para todas as espécies de animais, como forma de financiamento do SIRCA.

K. Foi, pois, neste contexto que o Decreto-lei nº 244/2003 instituiu um encargo, ao qual se deu a designação de taxa, a cobrar aos apresentantes de animais para abate, através dos estabelecimentos de abate que eram também, nos termos do mesmo diploma, os responsáveis pela entrega do produto da taxas cobradas junto do INGA e a quem era imputável, em caso de incumprimento dessa obrigação, a prática de uma contraordenação, punível com coima [cfr. alínea c) do nº1 do artigo 10º do DL 244/2003].

L. A experiência adquirida ao longo do período de aplicação do referido regime levou a que fossem adotadas alterações para garantir a proporcionalidade entre os custos inerentes aos serviços de recolha, transporte e destruição dos cadáveres e os valores das taxas a cobrar, assegurando ainda uma repartição equitativa entre as várias espécies de animais.

M. O Decreto-Lei nº 19/2011, de 7 de Fevereiro, definiu as regras de financiamento do sistema de recolha de cadáveres de animais mortos nas explorações (SIRCA), sistema este criado ao abrigo do Regulamento (CE) nº 1774/2002, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Outubro, ao qual são também aplicáveis as normas constantes do Regulamento (CE) nº 1069/2009, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Outubro.

N. Com o Decreto-Lei nº 19/2011, de 7 de Fevereiro, pretendeu-se, assim, ajustar o regime de financiamento do SIRCA, criando condições para introduzir a adequada proporcionalidade, em particular na vertente da cobertura de custos, bem como uma maior equidade em termos de repartição dos mesmos em função da espécie de animal em presença, e ainda uma maior eficácia e celeridade nos procedimentos inerentes ao mecanismo de cobrança das taxas.

O. Nos termos do citado decreto-lei, para efeitos de financiamento do SIRCA, é cobrada uma taxa aos estabelecimentos de abate relativamente a bovinos, ovinos, caprinos, suínos e equídeos, produzidos no território continental e apresentados para abate.

P. Nesta medida, a alteração preconizada pelo Decreto-lei nº 19/2011, de 07/02, tornou coerente o espírito da anterior lei, já que passou a considerar que o devedor da taxa coincide com aquele a quem já era imputada a falta de pagamento junto do organismo competente, o que antes não acontecia.

Q. O recorrente insiste que a taxa SIRCA não é nem uma taxa, nem uma contribuição financeira conforme concluiu o Tribunal "a quo" baseado no entendimento do Tribunal Constitucional, concluindo que se trata de uma outra taxa aplicada a um sector de atividade diferente da indústria de abate de carnes e derivados e quem suma, nada tem que ver com o presente caso, insistindo estarmos perante um verdadeiro imposto e não uma taxa e/ou contribuição financeira.

R. Salvo o devido respeito, não lhe assiste razão, bem andou o Tribunal a quo ao julgar a impugnação judicial improcedente, uma vez que estamos de facto perante uma taxa e/ou contribuição financeira e não um imposto, como erroneamente pretende a ora recorrente, ao arrepio da jurisprudência constitucional e comunitária sobre esta matéria.

S. De facto, conforme se concluiu e bem no douto Acórdão nº 539/2015, de 20/10/2015, do Tribunal Constitucional, ao qual a douta sentença proferida aderiu na íntegra, o fornecimento, a título gratuito, do serviço público de eliminação de cadáveres de animais, constitui uma vantagem económica suscetível de constituir um auxílio de Estado às empresas que beneficiam desse serviço e, como tal, tal atividade deve ser taxada tendo em conta o princípio do poluidor-pagador, os custos das medidas de combate à poluição não devem ser suportados pela sociedade, através da tributação geral, mas por quem polui.

T. Aliás, este entendimento resulta, de forma inequívoca e uniforme, da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia

U. No entanto, por dever de patrocínio, refira-se ainda que mesmo se o Tribunal entendesse, como pretende a ora Recorrente, que o disposto no artigo 2º nº 1 do Decreto-Lei nº 19/2011 viola o disposto no artigo 4º nº 2 da LGT, por se tratar de um imposto e não de uma verdadeira taxa, para não aplicar a referida norma, o Tribunal a quo teria obrigatoriamente que declarar a inconstitucionalidade da norma em questão, por forma a que o Tribunal Constitucional se pronunciasse, sob pena de nulidade da sentença proferida.

V. A ora recorrente defende em suma que a taxa SIRCA "imposta aos estabelecimentos de abate é um verdadeiro imposto", insistindo na falta de bilateralidade e na falta de vínculo sinalagmático.

W. A este propósito a ora Recorrente cita um parecer proferido pelo Ministério Público, no qual salienta-se que, o ora recorrido não é parte, em que este conclui que "o mencionado Decreto-Lei 19/2011, de 7 de Fevereiro é ilegal, quer face à norma constante do artigo 4º, nº 2, da LGT, quer face à CRP uma vez que emanando do Governo, criou um novo imposto, em completo desrespeito pela reserva de lei formal, ditada pelo seu artigo 161º, nº 1, alínea c)" (realçado no original).

X. Salvo o devido respeito, não assiste razão à recorrente, porque conforme o próprio Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou, anteriormente, no âmbito dos presentes autos, para desaplicação desse regime jurídico o que é verdadeiramente relevante é apurar se tal regime padece de inconstitucionalidade por violar a reserva de lei da Assembleia da República na criação de impostos. Se o tributo em análise for um imposto e não uma taxa, diferença que poderá estabelecer-se tendo em conta o constante do art.º 4º, nº 2 da LGT e a numerosa doutrina sobre a diferença entre as características do imposto e da taxa, então poderemos estar perante uma violação da reserva de lei que fere o diploma de inconstitucionalidade e impossibilita a sua aplicação a qualquer caso concreto, concluindo que a decisão recorrida teria de analisar a invocada inconstitucionalidade da norma que serve de fundamento legal/de direito do ato de autoliquidação, anulando a decisão recorrida e determinando a baixa dos autos ao Tribunal recorrido para que este aprecie os fundamentos da impugnação, ou seja, nunca estaríamos perante um diploma ilegal, mas quanto muito inconstitucional!

Y. O Tribunal recorrido decidiu a nosso ver bem e de acordo com as normas citadas ao afirmar que "a criação desta contribuição financeira denominada taxa SIRCA por DL não viola os arts. 103.°, n° 2, e 165º, nº 1, alínea i), da CRP, pelo que não padece de qualquer inconstitucionalidade orgânica por violação de reserva de lei formal, pelo que não existe qualquer fundamento legal para desaplicar o regime legal aprovado pelo DL 19/2011, que determine a ilegalidade das liquidações impugnadas.
Sendo a taxa SIRCA uma contribuição financeira, as liquidações impugnadas não padecem de qualquer ilegalidade por vício de violação de lei, quer por violação do art. 4.° da LGT, quer por eventual desaplicação do regime jurídico aprovado pelo DL 19/2011 por inconstitucionalidade orgânica desse DL por violação da reserva de lei formal da Assembleia da República, nos termos dos arts. 103.°, n.° 2, e 165.°, n.° 1, alínea i), da CRP.
As liquidações impugnadas não padecem de qualquer ilegalidade.".

Z. Impossibilitar a cobrança da referida taxa, devida pela destruição dos subprodutos animais, originaria uma obrigação de desenvolver gratuitamente uma competência que foi cometida por lei e à qual, nos termos da mesma lei, corresponde uma contraprestação do particular, consubstanciada no pagamento da referida taxa. Tal entendimento violaria o disposto nos artigos 36º e 37º da Lei-quadro dos Institutos Públicos.

AA. Assim, a taxa sub judice tem por objetivo financiar um serviço público destinado à segurança sanitária e assegura a manutenção do sistema de recolha dos cadáveres de animais nas instalações dos produtores.

BB. Tal entendimento foi, inclusive, sufragado pelo próprio Tribunal de Justiça da União Europeia, ao considerar que a gratuidade devida pela destruição dos subprodutos animais, em circunstâncias similares, implicaria um auxílio de Estado ilegal.

CC. Neste âmbito o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) viria a decidir que "o artigo 92°, n° 1, do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 87°, n° 1, CE) deve ser interpretado no sentido de que um regime como o que está em causa no processo principal, que assegura aos produtores e aos matadouros a recolha e a eliminação, a título gratuito, dos cadáveres de animais e dos desperdícios dos matadouros, deve ser qualificado de auxílio de Estado" (realçado nosso).

DD. Relativamente à questão ora em dissídio e quanto à natureza de auxílio de Estado relativamente ao regime que assegura, no que aos presentes autos respeita, aos matadouros a eliminação a título gratuito, que, salienta-se, se justificou entre 1998 e 2004, mas em termos factuais atualmente já não faz sentido, e face à pronúncia da própria Comissão a este respeito, esta questão deverá ser objeto de reenvio prejudicial ao Tribunal da Justiça da União Europeia (TJUE).

EE. De facto, o Tribunal de Justiça precisou, no acórdão GEMO, que o encargo financeiro ocasionado pela eliminação dos cadáveres de animais e dos desperdícios dos matadouros deve ser considerado um custo inerente à atividade económica dos produtores e dos matadouros. O Tribunal concluiu, portanto, que o artigo 107º, nº 1, do TFUE deve ser interpretado no sentido de que um regime que assegura aos produtores e aos matadouros a recolha e a eliminação, a título gratuito, dos cadáveres de animais e dos desperdícios dos matadouros deve ser qualificado de auxílio de Estado a favor dos agricultores e dos matadouros (sublinhado nosso, cfr. Decisão da Comissão, de 13 de Julho de 2011, relativa ao regime de auxílios estatais C 3/09, publicado no Jornal Oficial da União Europeia nº L 274/15, de 19/10/2011, disponível em http://eur-lex.europa.eu/pt/index.htm), pelo que o entendimento do Tribunal a quo viola expressamente as normas comunitárias referidas, designadamente o disposto no artigo 107º nº 1 do TFUE, razão pela qual se requer o reenvio prejudicial para o TJUE.

FF. Relativamente à questão ora em análise e quanto à natureza de auxílio de Estado a Comissão entendeu, no essencial, que o fornecimento, a título gratuito, desse serviço de eliminação de resíduos, libera os produtores e os matadouros de encargos que, segundo o princípio do poluidor-pagador, normalmente teriam de suportar. O serviço constitui, assim, uma vantagem económica que se inscreve no âmbito de aplicação do artigo 87º, nº 1, CE.

GG. Ora, segundo o princípio do poluidor-pagador, os custos das medidas de combate à poluição não devem ser suportados pela sociedade, através da tributação geral, mas por quem polui, devendo os custos associados à proteção do ambiente ser incluídos, conforme já se referiu, nos custos de produção das empresas (interiorização dos custos).

HH. É certo que, ao pagamento de uma taxa deverá corresponder, em contrapartida, a prestação de um serviço.

II. Ora, este encargo financeiro tem-se repercutido, e deve continuar a repercutir-se, apenas naqueles que constituem o universo de utilizadores e beneficiários do SIRCA. Com efeito, são os apresentantes de animais para abate produzidos em território nacional assim como os próprios estabelecimentos de abate que recorrem aos serviços do SIRCA, a determinado momento, para recolher e eliminar os cadáveres de animais que morram de forma espontânea. E tanto assim é que, conforme decorre do artigo 3º do Decreto-lei nº 19/2011, quando em causa estejam animais provenientes das regiões autónomas, de trocas intracomunitárias ou importados, os mesmos não estão abrangidos pelos serviços do SIRCA e os seus detentores encontram-se obrigados a suportar os custos inerentes à destruição dos respetivos cadáveres, porque não contribuíram para o financiamento daquele Sistema.

JJ. Como já se referiu, os subprodutos animais, nomeadamente cadáveres inteiros ou partes de animais ou produtos de origem animal, não destinados ao consumo humano são uma fonte potencial de riscos para a saúde pública e animal e para o ambiente, sendo gerados principalmente durante o abate de animais para consumo humano, na produção de géneros alimentícios de origem animal, na eliminação de animais mortos e na aplicação de medidas de controlo de doenças.

KK. O Decreto-Lei nº 19/2011, de 7 de fevereiro, pretende, assim, ajustar o regime de financiamento do SIRCA, criando condições para introduzir a adequada proporcionalidade, em particular na vertente da cobertura de custos, bem como uma maior equidade em termos de repartição dos mesmos em função da espécie de animal em presença, e ainda uma maior eficácia e celeridade nos procedimentos inerentes ao mecanismo de cobrança das taxas.

LL. Razão pela qual com o Decreto-lei nº 19/2011, para efeitos de financiamento do SIRCA é cobrada uma taxa aos estabelecimentos de abate relativamente a bovinos, ovinos, caprinos, suínos e equídeos produzidos no território continental e apresentados para abate, sendo este sistema criado ao abrigo do Regulamento (CE) nº 1774/2002, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Outubro, ao qual são também aplicáveis as normas constantes do Regulamento (CE) nº 1069/2009, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de outubro.

MM. Acresce ao exposto que a alteração preconizada pelo Decreto-lei nº 19/2011, de 07/02, passou a considerar que o devedor da taxa coincide com aquele a quem já era imputada a falta de pagamento junto do organismo competente, o que antes não acontecia.

NN. Ao contrário do que pretende dar a entender a ora Recorrente, entre a taxa paga e a contrapartida recebida não tem que existir uma exata equivalência económica, mas uma mera equivalência jurídica.

OO. Ora, por força da possibilidade de um eventual impacto negativo para a saúde pública e animal e para o ambiente e face à necessidade de assegurar o respeito pelos restantes utilizadores do espaço público, impõe-se a sujeição a restrições ao exercício da atividade em questão.

PP. Conforme referimos, as normas reguladoras dos subprodutos animais, nomeadamente cadáveres inteiros ou partes de animais ou produtos de origem animal, não destinados ao consumo humano são uma fonte potencial de riscos para a saúde pública e animal e para o ambiente, sendo gerados principalmente durante o abate de animais para consumo humano, na produção de géneros alimentícios de origem animal, na eliminação de animais mortos e na aplicação de medidas de controlo de doenças.

QQ. O SIRCA visa salvaguardar o interesse público em aspetos relacionados com a recolha e destruição dos cadáveres de bovinos, ovinos, caprinos, suínos e equídeos mortos nas explorações, nos centros de agrupamento, nos entrepostos e nas abegoarias, com danos que essa destruição, designadamente, a levada a cabo pelos estabelecimentos de abate, tendo como preocupação a segurança alimentar, a saúde pública e a proteção do ambiente.

RR. Impossibilitar a cobrança da referida taxa, devida pela destruição dos subprodutos animais, originaria uma obrigação de desenvolver gratuitamente uma competência que foi cometida por lei e à qual, nos termos da mesma lei, corresponde uma contraprestação do particular, consubstanciada no pagamento da referida taxa. Tal entendimento violaria o disposto nos artigos 36º e 37º da Lei-quadro dos Institutos Públicos.

SS. Assim, a taxa sub judice tem por objetivo financiar um serviço público destinado à segurança sanitária e assegura a manutenção do sistema de recolha dos cadáveres de animais nas instalações dos produtores e trata-se de um encargo inerente à atividade desenvolvida.

TT. Tal entendimento foi, inclusive, sufragado pelo próprio Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), ao considerar que a gratuidade devida pela destruição dos subprodutos animais, em circunstâncias similares, implicaria um auxílio de Estado ilegal, que entendeu, numa situação similar que "o artigo 92°, n° 1, do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 87°, n° 1, CE) deve ser interpretado no sentido de que um regime como o que está em causa no processo principal, que assegura aos produtores e aos matadouros a recolha e a eliminação, a título gratuito, dos cadáveres de animais e dos desperdícios dos matadouros, deve ser qualificado de auxílio de Estado" (realçado nosso, cfr. Acórdão do TJUE, de 20 de novembro de 2003, no âmbito do Processo n° C-126/01, GEMO SA, disponível in www.curia.europa.eu/pt/transitpage.htm).

UU. No domínio da eliminação de resíduos, o princípio do poluidor-pagador exige que os custos da eliminação de resíduos sejam suportados pelo detentor dos resíduos e/ou pelos produtores dos produtos geradores dos resíduos, o que significa que de um ponto de vista económico não pode, portanto, haver dúvida que os custos da eliminação de matérias perigosas de origem animal são imputáveis aos produtores, aos matadouros e a outras pessoas que produzam ou sejam detentoras desse tipo de matérias.

VV. Logo, uma medida estatal que libere estes operadores daqueles custos deve, assim, ser considerada uma vantagem económica suscetível de constituir um auxílio de Estado. Na prática, o fornecimento, a título gratuito, do serviço de eliminação de resíduos em questão tem os mesmos efeitos que um subsídio direto destinado a compensar empresas pelos custos que suportam para eliminar os seus resíduos.

WW. Consequentemente, o fornecimento, a título gratuito, do serviço público de eliminação de cadáveres de animais constitui uma vantagem económica suscetível de constituir um auxílio de Estado às empresas que beneficiam desse serviço, devendo tal atividade ser taxada tendo em conta o princípio do poluidor-pagador, uma vez que os custos das medidas de combate à poluição não devem ser suportados pela sociedade através da tributação geral, mas por quem polui.

XX. Por último, refira-se ainda que as diversas contrapartidas consideradas pelo legislador como atributivas da natureza jurídica de taxa aos montantes exigidos ao sujeito passivo não pressupõem uma verificação cumulativa, bastando a existência de uma (1) prestação concreta de um serviço público, ou (2) utilização de um bem do domínio público ou (3) remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares, como é o caso sub judice, para enquadrar a contrapartida no âmbito do nº 2, do artigo 4°, da Lei Geral Tributária (LGT).

YY. Em conformidade com o exposto, conclui-se que as quantias liquidadas à ora recorrente têm natureza de taxa/contribuição financeira, e não de imposto, e, como tal, não está sujeita ao princípio de legalidade de reserva de lei formal constante dos artigos 106°, n° 2, e 168º, n.º 1, al. i) da CRP.

ZZ. Quanto à natureza de auxílio de Estado, no que aos presentes autos respeita, relativamente ao regime que assegura aos matadouros a eliminação a título gratuito, que, salienta-se, se justificou entre 1998 e 2004, mas em termos factuais atualmente já não faz sentido, a própria Comissão pronunciou-se concluindo que "o Tribunal de Justiça precisou, no acórdão GEMO, que o encargo financeiro ocasionado pela eliminação dos cadáveres de animais e dos desperdícios dos matadouros deve ser considerado um custo inerente à actividade económica dos produtores e dos matadouros. O Tribunal concluiu, portanto, que o artigo 107º, nº 1, do TFUE deve ser interpretado no sentido de que um regime que assegura aos produtores e aos matadouros a recolha e a eliminação, a título gratuito, dos cadáveres de animais e dos desperdícios dos matadouros deve ser qualificado de auxílio de Estado a favor dos agricultores e dos matadouros.
(113) No caso em apreço, pode considerar-se que a eliminação dos cadáveres de animais e dos resíduos de matadouro constitui um custo inerente à actividade, não apenas para os estabelecimentos de abate e as salas de desmancha" (realçado e sublinhado nosso, cfr. Decisão da Comissão, de 13 de Julho de 2011, relativa ao regime de auxílios estatais C 3/09, publicado no Jornal Oficial da União Europeia nº L 274/15, de 19/10/2011, disponível em http://eur-lex.europa.eu/pt/index.htm).

AAA. Relativamente à questão ora em dissídio e quanto à natureza de auxílio de Estado a Comissão entendeu, no essencial, que o fornecimento, a título gratuito, desse serviço de eliminação de resíduos, libera os produtores e os matadouros de encargos que, segundo o princípio do poluidor-pagador, normalmente teriam de suportar, pelo que o serviço constitui, assim, uma vantagem económica que se inscreve no âmbito de aplicação do artigo 87º, nº 1, CE.

BBB. Relativamente à questão ora em dissídio e quanto à natureza de auxílio de Estado a Comissão entendeu, no essencial, que o fornecimento, a título gratuito, desse serviço de eliminação de resíduos, libera os produtores e os matadouros de encargos que, segundo o princípio do poluidor-pagador, normalmente teriam de suportar. O serviço constitui, assim, uma vantagem económica que se inscreve no âmbito de aplicação do artigo 87º, nº 1, CE.

CCC. Consequentemente, o fornecimento, a título gratuito, do serviço público de eliminação de cadáveres de animais, constitui uma vantagem económica suscetível de constituir um auxílio de Estado às empresas que beneficiam desse serviço e, como tal, tal atividade deve ser taxada tendo em conta o princípio do poluidor-pagador, os custos das medidas de combate à poluição não devem ser suportados pela sociedade, através da tributação geral, mas por quem polui.

DDD. Em conformidade com o exposto, conclui-se que as quantias liquidadas à ora recorrente têm natureza de taxa/contribuição financeira, e não de imposto, e, como tal, não está sujeita ao princípio de legalidade de reserva de lei formal constante dos artigos 106°, n° 2, e 168º, nº 1, al. i) da CRP, devendo improceder, portanto, todos os fundamentos alegados pela recorrente, relativamente à ilegalidade da liquidação efetuada e à alegada existência de um imposto e não de uma taxa.

EEE. É certo que, ao pagamento de uma taxa deverá corresponder, em contrapartida, a prestação de um serviço, razão pela qual, este encargo financeiro tem-se repercutido, e deve continuar a repercutir-se, apenas naqueles que constituem o universo de utilizadores e beneficiários do SIRCA.

FFF. Com efeito, ao contrário do imposto, que não confere a quem o paga o direito a nenhuma contrapartida direta e imediata, sinalagmaticamente ligada a esse pagamento, a taxa é sempre a contrapartida individualizada de algo que se recebe em troca, seja um serviço concretamente prestado, seja a utilização de um bem do domínio público, seja a remoção do limite legal ao exercício de determinada atividade, conforme sucede no caso dos presentes autos (cfr. art. 4º, nº 2 da LGT).

GGG. Nesta medida, é manifesto que a recorrente incorre em manifesto erro de direito quanto à interpretação e aplicação do disposto no artigo 2º, nº 1 do DL 19/2011, porquanto se trata de uma verdadeira taxa/contribuição financeira e não de um imposto, razão pela qual bem andou o Tribunal a quo que concluiu em sintonia e de acordo com as próprias normas citadas.

HHH. Razão pela qual se assume como forçosa a conclusão de que nenhum vício pode ser assacado à douta decisão recorrida, a qual se mostra não só correta, como procedeu a uma correta decisão sobre a matéria de facto e correta interpretação e aplicação das normas legais e processuais aplicáveis ao caso sub judice.


A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
A. A impugnante no exercício da sua atividade e em cumprimento do DL 19/2011, de 7 de fevereiro, procedeu às autoliquidações da denominada taxa SIRCA em 20/02/2012 e 20/03/2012, nos montantes de, respetivamente, €16.775,48 e €20.550,85 (fls. 19 a 30).

B. A impugnante pagou ao IFAP esses montantes, nessas datas (fls. 19 a 30).

C. A impugnante procedeu às autoliquidações em cumprimento das instruções recebidas do IFAP (fls. 19 a 30).

***

A questão objecto de recurso foi analisada recentemente por este Supremo Tribunal Administrativo em acórdão proferido no recurso n.º 834/16, amplamente discutido na secção em sentido que mereceu, e, merece o nosso completo apoio sem que se descortinem nestes autos quaisquer razões ou fundamentos, não tidos em conta naquele acórdão que possam conduzir a decisão diversa, pese embora as extensas contra-alegações deste processo constantes, pelo que, por economia de meios, nos limitamos a transcrever quanto ali se disse e ponderou:
«(…) A sentença recorrida, (…), julgou totalmente improcedente a impugnação judicial deduzida pela ora recorrente contra autoliquidações de “taxas para financiamento do Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações (SIRCA)”, no entendimento de que os tributos em causa têm a natureza de “contribuição financeira (art. 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP) - e não de taxas ou de impostos -, podendo ser criadas por Decreto-lei sem prévia autorização da Assembleia da República.
Fundamentou-se o decidido no Acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional em 20 de Outubro de 2015 – Acórdão n.º 539/2015, de 20 de Outubro –, a propósito da denominada taxa de segurança alimentar mais, aprovada pelo DL 119/2012, de 15 de junho, que a sentença recorrida considerou atenta a identidade jurídica das denominadas taxas SIRCA e segurança alimentar mais que as considerações expendidas a propósito desta última são integralmente aplicáveis à taxa SIRCA, com as devidas adaptações. Após longa transcrição daquele Acórdão do Tribunal Constitucional (cfr. sentença recorrida, a fls. 93 a 105 dos autos), concluiu a sentença recorrida que (s)endo a taxa SIRCA uma contribuição financeira, as liquidações impugnadas não padecem de qualquer ilegalidade por vício de violação de lei, quer por violação do art. 4.º da LGT, quer por eventual desaplicação do regime jurídico aprovado pelo DL 19/2011 por inconstitucionalidade orgânica desse DL por violação da reserva de lei formal da Assembleia da República, nos termos dos artºs. 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP.
Discorda do decidido a recorrente, persistindo na alegação de que o Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro (…) transformou a taxa em causa num verdadeiro imposto, porquanto, conforme resulta demonstrado, os beneficiários do SIRCA são apenas os respectivos produtores e apresentantes dos animais e não os estabelecimentos de abate, que são no novo diploma os sujeitos passivos da taxa, mais alegando que a “Taxa TSAM” nada tem a ver com a “Taxa SIRCA”, cujos pressupostos e finalidade se afiguram distintos daquela taxa, daí que o decidido pelo Tribunal Constitucional quanto à “taxa de segurança alimentar mais “ não possa ser transposto para a taxa “SIRCA”, que alegadamente não tem a natureza jurídica de “contribuição financeira” ou de “taxa”, mas a de imposto, sendo que a sua criação não obedeceu ao princípio da legalidade tributária, consagrado no n.º 2, do artigo 103.º, da CRP, pois o Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro foi aprovado nos termos do artigo 198.º, n.º 1, alínea a), da CRP, ou seja, como se a matéria em causa fosse da competência não reservada da Assembleia da República, pelo que são organicamente inconstitucionais as normas constantes do Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro, designadamente o seu artigo 2.º, n.º 1, na medida em que procede à criação de um imposto sobre os estabelecimentos de abate em desrespeito pelos supramencionados comandos constitucionais e ilegais os actos de autoliquidação sindicados.
(…)
Vejamos.
A doutrina define as “contribuições” como prestações pecuniárias e coactivas exigidas por uma entidade pública em contrapartida de uma prestação administrativa presumivelmente provocada ou aproveitada pelo sujeito passivo (cfr. Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2015, p. 260).
Entende o Tribunal Constitucional, ao arrepio de doutrina qualificada – vg. Sérgio Vasques, Suzana Tavares da Silva, para quem até à aprovação do “regime geral” constitucionalmente previsto as contribuições financeiras devem continuar a ser sujeitas à reserva de lei parlamentar -, no Acórdão que a sentença recorrida invoca para fundamentar a sua decisão do sentido da não inconstitucionalidade orgânica do Decreto-lei 19/2011, de 7 de Fevereiro, não estarem as contribuições financeiras sujeitas à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
Não obstante, mesmo acatando esse entendimento – não incontroverso na doutrina, como referimos já – é lícito ao julgador sindicar o regime legal do tributo paracomutativo quando este se apresente desconforme com os princípios fundamentais que devem conformar o seu regime, designadamente com o princípio da igualdade.
No regime da taxa “Sirca”, tal como configurado pelo Decreto-Lei n.º 19/2011 – e ao contrário do que sucedia no regime precedente (Decreto-Lei n.º 244/2003, de 7 de Outubro) e do que lhe sucedeu (Decreto-Lei n.º 33/2017, de 23 de Março) -, o legislador estabeleceu que: «Para efeitos de financiamento do SIRCA é cobrada uma taxa aos estabelecimentos de abate relativamente a bovinos, ovinos, caprinos, suínos e equídeos, produzidos no território continental e apresentados para abate (…)» – cfr. o n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro -, estando os estabelecimentos de abate isentos do pagamento de tal taxa relativamente a animais que provenham de explorações em que os respectivos titulares, por si ou através de organizações de produtores, recorrendo ou não à prestação de serviços de terceiros, assegurem a recolha, o transporte, a eventual concentração em unidades intermédias aprovadas para o efeito e a destruição dos animais referidos no n.º 1 mortos nas suas explorações (cfr. o n.º 4 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro) e bem assim relativamente a animais para abate provenientes das regiões autónomas, de trocas intracomunitárias ou importados directamente para esse efeito (cfr. o n.º 6 do artigo 2.º), neste caso estando os apresentantes de animais para abate (…) obrigados a suportar os custos inerentes à recolha, ao transporte e à destruição dos cadáveres (cfr. o artigo 3.º do Decreto-lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro).
Não oferece dúvidas que estando a taxa “SIRCA” afecta ao financiamento do sistema de recolha de cadáveres de animais mortos em explorações (SIRCA) – cfr. o artigo 1.º do Decreto-lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro -, é o titular da exploração, e não o estabelecimento de abate, aquele que directamente beneficia da existência e funcionamento do “SIRCA”, compreendendo-se, pois, que seja a ele que se imponha o encargo de contribuir para o financiamento de tal sistema.
A lei pretérita e posterior assim o estabeleciam, aliás – cfr. o n.º 2 do artigo 5.º e o n.º 2 do artigo 9.º do Decreto-lei n.º 244/2003, de 7 de Outubro e artigos 7.º a 10.º do Decreto-lei n.º 33/2017, de 23 de Março -, sem prejuízo de, designadamente por razões de praticabilidade, o legislador impor aos estabelecimentos de abate a obrigação de liquidação, cobrança e entrega de tal tributo.
Esta solução legal, que o Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro não observou, é a que melhor se afigura conforme ao princípio da igualdade, na sua dimensão de equivalência, pois que onera com o tributo aquele que, no circuito produtivo, é o directo beneficiário do serviço público prestado. O estabelecimento de abate não o é, e como tal, afigura-se desconforme a tal princípio configurá-lo não como substituto tributário, com ou sem retenção, mas como contribuinte directo.
Entendemos, pois, ser inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, na sua dimensão de equivalência (artigo 13.º da Constituição), a taxa “SIRCA” tal como configurada pelo Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro, na medida em que configura o “estabelecimento de abate” como contribuinte directo do tributo, quando o presumível beneficiário do serviço que esta se destina a financiar é, não ele, mas o titular da exploração.».

Assim, suportados na fundamentação que antecede, temos que concluir ter a sentença recorrida incorrido em erro de julgamento por, analisando a situação que em concreto foi submetida a julgamento, haver concluído pela conformidade com a Constituição da República Portuguesa da taxa Sirca, quando tal taxa, tal como configurada pelo Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro, se apresenta desconforme com a Constituição da República Portuguesa, por violação do princípio da igualdade, na sua dimensão de equivalência (artigo 13.º da Constituição), na medida em que configura o “estabelecimento de abate” como contribuinte directo do tributo, não sendo esta entidade o presumível beneficiário do serviço que a taxa se destina a financiar, sendo seu beneficiário o titular da exploração dona dos animais abatidos nas condições referenciadas naquele diploma.
Tal erro de julgamento determina inelutavelmente a revogação da sentença recorrida a que agora se procede.


Deliberação
Termos em que acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e julgar procedente a impugnação.

Custas pela recorrida.
(Processado e revisto pela relatora com recurso a meios informáticos (art.º 131º nº 5 do Código de Processo Civil, ex vi artº 2º Código de Procedimento e Processo Tributário).

Lisboa, 17 de Maio de 2017. – Ana Paula Lobo (relatora) – Dulce Neto – Francisco Rothes.