Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0986/13
Data do Acordão:12/18/2014
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:VÍTOR GOMES
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
REFORMA DE ACÓRDÃO
Sumário:Não é susceptível de reforma o acórdão cujo sentido decisório não resulta de erro ostensivo.
Nº Convencional:JSTA000P18404
Nº do Documento:SA1201412180986
Data de Entrada:05/31/2013
Recorrente:A... LDA
Recorrido 1:INFARMED IP
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo

1. A……….. Ldª pede reforma, ao abrigo do n.º2 do art.º 668.º do Código de Processo Civil (anterior à Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho), do acórdão de 10/7/2013, que não admitiu o recurso de revista que interpôs.
Alega que a questão que se pretende submeter ao Supremo Tribunal Administrativo consiste, na sua base, em aferir da insindicabilidade de actos ou decisões administrativas com fundamento no equívoco entendimento de que tais actos ou decisões foram proferidas no âmbito de uma margem de discricionariedade supostamente conferida pelo legislador. E que o acórdão errou ao considerar que a norma era transitória e que teria havido substituição do regime e que, em face dessa substituição, não seria de prever que a mesma questão venha a surgir em contextos futuros. Isto porque a alteração da base legal ao abrigo da qual a decisão administrativa foi proferida (art.º 38.º da Portaria 1430/2007, de 2 de Novembro, face ao art.º 2.º da Lei n.º 26/2011, de 16 de Junho), apenas alterou os pressupostos de aplicação do regime, mantendo-se a possibilidade de ser questionada, em casos futuros a natureza “permissiva” ou “concessiva” da norma, bem como o juízo acerca da sindicabilidade ou insindicabilidade contenciosa da actuação administrativa ao seu abrigo.

Não houve resposta.

2. O n.º 4 do acórdão, onde a recorrente surpreende o “lapso manifesto” tem o seguinte teor:
“4. Não é exacto que a opção interpretativa do acórdão recorrido implique a insindicabilidade contenciosa do exercício do poder administrativo ou contenda com a efectividade de tutela jurisdicional, como argumenta a recorrente para identificar uma questão jurídica de importância fundamental. A actuação administrativa continua a ser objecto de controlo jurisdicional, embora nos termos que são próprios do exercício de poderes deste tipo.
Apesar disso, em primeira análise, dir-se-ia que no caso se apresenta uma questão que constitui um "candidato natural" à discussão em sede de revista. O problema surge formulado com elevado grau de abstracção podendo a solução encontrada propiciar orientação à Administração, aos particulares e aos tribunais para a generalidade dos casos de transferências de farmácias entre municípios na vigência do regime considerado, respeita à disciplina de um sector da actividade económica densamente regulado, de importância fundamental na vida das populações, e incide sobre um aspecto dessa regulação que, interessando directamente aos agentes, não deixa de ter relevância reflexa na comodidade dos povos, e a controvérsia (na construção do acórdão) gira em torno da natureza, discricionária ou vinculada, do poder conferido ao INFARMED pelo art.º 38.º da Portaria n.º 1430/2007, o que arrasta dificuldades metódicas acrescidas. Por outro lado, não é isenta de dificuldades a determinação do sentido do preceito, seja quanto à natureza do poder, seja quanto aos pressupostos da transferência. Parece, pois, estarmos perante uma controvérsia com capacidade de expansão que ultrapassa os limites da situação singular.
Há, todavia, um óbice decisivo à admissão da revista com este fundamento. O que para ele importa é verificar-se uma situação de relevância prática que tenha como ponto obrigatório de referência o interesse objectivo, isto é, a utilidade jurídica da revista e esta em termos de capacidade de expansão da controvérsia de modo a ultrapassar os limites da situação singular e não uma mera relevância teórica, medida pelo exercício intelectual, mais ou menos complexo, que seja possível praticar sobre as normas discutidas (cfr. ac. STA, de 20/6/2012, Proc. 0416/12). Ora, a norma em causa tem natureza transitória – aliás, o regime veio a ser substituído pelo constante do art.º 2.º da Lei n.º 26/2011, de 16 de Junho – pelo que não é razoavelmente previsível que essa mesma questão venha a ressurgir em contextos futuros.

E também se não justifica abrir o terceiro grau de jurisdição à luz da cláusula de salvaguarda da parte final do preceito: "para garantir uma melhor aplicação do direito". A jurisprudência tem concretizado o respectivo preenchimento em duas perspectivas: (i) os casos em que exista um erro ostensivo na aplicação do direito pelas instâncias; (ii) os casos em que se deparem questões de direito de tal modo difíceis, complexas ou intrincadas que aconselhem a intervenção clarificadora do órgão de cúpula do sistema e se revelem susceptíveis de colocação em casos futuros. Não só a importância fundamental em razão da relevância jurídica e social, mas também a melhor aplicação do direito se projectam pela vocação de repetição num numero indeterminado de casos futuros, em termos de garantia de uniformização do direito (cfr. ac. STA de 29/11/2011, Proc. 569/11).
Ora, o entendimento adoptado pelo acórdão recorrido não se apresenta como flagrantemente erróneo ou manifestamente insustentável. E, pelo já referido carácter transitório do regime, essa interpretação não é susceptível de influenciar casos futuros”.


3. De acordo com a disposição legal invocada (art.º 669.º, n.º 2, al. a) do CPC, na versão anterior ao novo Código aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 /6), a sentença (ou acórdão) insusceptível de recurso pode ser reformada pelo tribunal que a proferiu quando, por manifesto lapso do juiz, tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos.
No caso, o requerente sustenta ter havido erro na qualificação jurídica dos factos, o que, relativamente a um acórdão proferido no exercício da competência prevista no n.º 5 do art.º 150.º do CPTA que se mantenha no seu âmbito típico, como sucedeu com o acórdão em causa, só pode ser o que respeite à identificação das questões colocadas e decididas no acórdão do TCA para que se pedia revista. Efectivamente, o acórdão que procede à verificação dos requisitos exigidos pelo n.º 1 do art.º 150.º do CPTA não qualifica juridicamente os factos materiais da causa. Identifica questões e ocorrências processuais relevantes em ordem a determinar se pretende discutir-se uma questão pertinente e de importância fundamental, pela relevância jurídica ou social, ou se afigura claramente necessária a intervenção do Supremo para melhor aplicação do direito. E, neste juízo como em geral, a reforma só é consentida perante lapsos manifestos, não bastando que a solução encontrada pela decisão que é objecto desse pedido – o acórdão da formação de apreciação preliminar – seja discutível ou de acerto duvidoso. A reforma é um remédio excepcional, pois derroga os princípios da estabilidade das decisões judiciais e do esgotamento do poder jurisdicional depois de proferida a decisão.
Vejamos.
Desde logo, não pode dizer-se que a afirmação de que a norma do art.º 38.º da Portaria tinha natureza “transitória” enferme de manifesto lapso porque isso corresponde formalmente à inserção sistemática da norma no “Capítulo V” do diploma regulamentar, que abrange as normas dos artºs 32º a 42.º e é precisamente intitulado “Disposições finais e transitórias”.
Mas o que se apresenta como decisivo é que também não é sustentável ter o acórdão pressuposto uma representação manifestamente errada da evolução do regime legal, em termos de, por virtude desse erro, ter ficado esvaziada, em substância, a sua ratio quando negou a virtualidade de expansão da controvérsia.
Com efeito, não só é exacto que o artº 2.º da Lei n.º 26/2011, de 31 de Agosto veio introduzir um novo regime legal nesta matéria, como a Portaria n.º 352/2012 revogou expressamente a Portaria 1430/2007, de 2 de Novembro (art.º 37.º). Face ao que não pode considerar-se manifestamente errada a afirmação de que não é razoavelmente previsível que a controvérsia versada no presente recurso venha a ressurgir, em termos essencialmente semelhantes, face ao novo regime jurídico. Há mudanças de tomo. Basta comparar os art.º 31.º e 32.º da Portaria n.º 352/2012 com os art.ºs 38.º, 39.º e 40.º da Portaria n.º 1430/2007. O acto de iniciativa pública que desencadeava os pedidos de transferência para concelhos limítrofes, impugnado nos presentes autos e a propósito do qual se discutia a natureza dos poderes da Administração – a publicação da “lista” referente às situações que permitem transferências para concelhos limítrofes – deixou de ter lugar no novo regime legal, passando a tramitação do pedido de transferência a obedecer ao disposto no art.º 20.º e seguintes da Portaria 352/2012, com as necessárias adaptações.

Tanto basta para julgar que não se verifica qualquer das hipóteses previstas no n.º 2 do art.º 669.º do anterior Cod. de Processo Civil e indeferir o pedido de reforma do acórdão de fls. 489-493, que não admitiu o recurso de revista.

4. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir o pedido de reforma e condenar a recorrente nas custas do incidente.

Lisboa, 18 de Dezembro de 2014. – Vítor Gomes (relator) – Alberto Augusto Oliveira – São Pedro.