Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:043/03
Data do Acordão:04/29/2003
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:ANTÓNIO MADUREIRA
Descritores:USURPAÇÃO DE PODER.
INGA.
FUNÇÃO JUDICIAL.
INSTITUTO NACIONAL DE INTERVENÇÃO E GARANTIA AGRÍCOLA.
QUOTA DE PRODUÇÃO DE LEITE.
Sumário:I - O vício de usurpação de poder "consiste na prática, por um órgão da Administração, de acto incluído nas atribuições do poder legislativo ou judicial". Reconduz-se à violação do princípio da separação de poderes, constituindo, no fundo, uma forma de incompetência agravada.
II. Não é a simples existência de conflitos privados na área de intervenção da Administração que a impossibilita de exercer os seus poderes de autoridade, desde que previamente legitimada por lei e movida unicamente pelo propósito da realização do interesse público.
III. Havendo um produtor de leite titulado, que tinha através de um acordo particular, três associados, com participação nos lucros e perdas na proporção de 50% para o produtor titulado e 50% para os seus três associados, e tendo esse acordo sido dissolvido, o acto do INGA que, conhecedor da situação e a pedido dos interessados dividiu a quota de produtor em duas quotas iguais, entregando uma ao referido produtor titulado e outra aos seus três associados, não invadiu a esfera de competências dos tribunais judiciais, pois que o que fez foi manter a quantidade de referência e dividi-la pelos seus associados, em face do conhecimento que tinha dessa associação, assim garantindo a continuação de uma quantidade de produção que era do interesse nacional não ser diminuída e de cujo não aumento funcionava como garante. O que significa que actuou movido pelo propósito de realização do interesse público, para a qual estava legitimado por lei, e não pelo de dirimir o conflito de interesses entre o recorrente e os recorridos particulares, pelo que esse acto não está inquinado do vício de usurpação de poder
IV. Igualmente não está inquinado do vício de incompetência, porquanto, de acordo com o estabelecido no art.º 7.º do D.L.108/91, de 15-3 e nas alíneas e) e d), do n.º 2, do art.º 25.º, da Portaria n.º 214/91, incumbe ao INGA controlar, junto do comprador, a redistribuição da quantidade de referência pelos respectivos produtores, bem como assegurar a implementação e controlo de todas as medidas complementares necessárias à boa execução do regime comunitário, o que lhe confere o poder/dever de corrigir qualquer quota de entregas que considere estar incorrectamente atribuída ou de dirimir quaisquer questões que a este respeito sejam levantadas, quer pelos beneficiários, quer pelos compradores.
Nº Convencional:JSTA00059210
Nº do Documento:SA120030429043
Data de Entrada:01/10/2003
Recorrente:A...
Recorrido 1:CONSELHO DIRECTIVO DO INGA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAC COIMBRA.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM ECON - APOIO FINANC PRODUÇÃO.
Legislação Nacional:PORT 214/91 DE 1991/03/15 ART25 N2 E.
DL 108/91 DE 1991/03/15 ART2 B G.
Legislação Comunitária:REG CONS CEE 857/84 DE 1984/03/31 RELATIVO A DISTRIBUIÇÃO DE QUOTAS DE PRODUÇÃO DE LEITE ART12 C.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC47676 DE 2001/12/28.; AC STA PROC1280/02 DE 2003/03/23.; AC STAPLENO PROC35590 DE 2003/03/13.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
1. RELATÓRIO
A... residente na quinta ..., Almoster, Santarém, interpôs, no TAC de Coimbra, recurso contencioso da decisão do Conselho Directivo do Instituto Nacional de Intervenção e Garantia Agrícola (INGA), que determinou que a quota leiteira de 2.045.426,5 kg, que se encontrava atribuída em nome do recorrente, fosse dividida em duas partes iguais, uma deste e a outra a dividir pelos “seus associados”, determinando também que a quota do recorrente passasse a ser no total de 1.425.509,3 Kgs, correspondente àqueles 50% mais 402,796 Kgs a F4.
Por sentença do TAC de 18/9/96, foi negado provimento ao recurso (fls 297- 305).
Dela foi interposto recurso para este Supremo Tribunal, que, por acórdão de 6/3/2 002, anulou a sentença recorrida e ordenou a baixa dos autos, para conhecimento do vício de usurpação de poder, nela não conhecido (fls 412-418).
Por sentença de 29/5/2002, foi conhecido esse vício, que foi julgado não verificado e, em consequência, novamente negado provimento ao recurso contencioso (fls 424-431).
Com ela se não conformando, dela interpôs o recorrente o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões (fls 462-464):
1.ª)- A decisão recorrida não fixou correctamente a matéria de facto provada, designadamente no que respeita ao ponto 1 da “ Matéria de Facto Provada”, pois aí considera-se apenas e tão só alguma factualidade respeitante às relações jurídicas entre o recorrente e o segundo recorrido particular, quando dos autos resulta suficientemente provado que o recorrente celebrou três contratos denominados “Acordo para compensação de lucros e perdas”, um com cada um dos recorridos particulares, contratos esses que se destinavam à exploração da vacaria do Recorrente.
2.ª)- Estes factos e outros que a eles são atinentes são relevantes para o presente recurso e assim os entendeu o douto Acórdão do STA de fls.403 e seguintes, que, na fixação da matéria de facto os considerou expressamente, pelo que, a decisão recorrida deveria reproduzir a matéria de facto que consta daquele douto Acórdão a fls.412 e 413, pois esses são os factos relevantes que estão provados nos autos.
3.ª)- Considerando que a Informação n.° 222/DAT-DJ/93 ( fls. 89 a 98) que baseou a decisão do Conselho Directivo do INGA que é objecto do recurso contencioso, considerou expressamente o litígio que opunha o Recorrente aos seus associados, revelando conhecer as pretensões dos interessados bem como as decisões judiciais entretanto proferidas no âmbito de providências cautelares, que as partes haviam interposto no Tribunal Judicial, com vista a obterem solução provisória e urgente para o litígio, através de medidas concretas que foram decretadas, ao praticar o acto recorrido o INGA igualmente tomou medidas com vista a dirimir um litígio ao qual era alheio.
4.ª)- A titularidade ou propriedade da quota surge como questão inerente à validade e subsistência da cláusula contratual que consagra a independência da propriedade dos bens incorpóreos de cada empresa, estabelecendo que a quota gerada no âmbito das explorações conjuntas pertence ao recorrente, pelo que se trata de questão no âmbito das relações jurídicas de Direito privado existentes entre o Recorrente e cada um dos Recorridos particulares por força dos contratos celebrados entre as partes, sendo essa cláusula e os seus efeitos jurídicos e de facto que constitui o motivo do litígio entre as partes.
5.ª)- A referida Informação e a decisão que a teve por base, mais não fez do que dirimir este litígio, tanto mais que ao dividir a quota em nome do recorrente em duas partes iguais, cabendo uma ao recorrente e outra aos seus associados, o INGA fê-lo com base naquilo a que chamou “um juízo de equidade, para o que interpretou os contratos e decidiu implicitamente sobre a não aplicação ou invalidade da referida cláusula contratual que estabeleceu que a quota gerada no âmbito das explorações conjuntas pertence ao recorrente .
6.ª)- A decisão de divisão e consequente redução da quota do recorrente não foi realizada ao abrigo ou em cumprimento de qualquer norma legal, nem foi realizada para prosseguir o interesse público que o INGA devesse prosseguir, não consistindo em medida adequada e necessária para evitar que se excedesse a quantidade global garantida, tanto mais que nem sequer reverteu para a reserva nacional para retribuição, pois que se decidiu entregar imediata e directamente aquela metade da quota aos recorridos particulares ao abrigo do regime de transferências, e, em detrimento do recorrente.
7.ª)- O acto recorrido teve como objectivo a composição de um conflito de interesses entre particulares, definindo uma relação jurídica de direito privado, como seja a extensão dos direitos e obrigações das partes naqueles contratos.
Tal acto envolve a prática de acto material e substancialmente jurisdicional e da esfera de atribuições dos tribunais, pelo que é nulo por estar inquinado de usurpação de poder.
8.ª)- Ao considerar não existir abuso de poder, a sentença recorrida cometeu erro de julgamento.
9.ª)- E ao entender que o INGA, ao decidir daquela forma e com os fundamentos que invocou, não invadiu a esfera de competências dos tribunais, tendo procedido no âmbito das suas competências procedendo à distribuição nos termos do acto recorrido, fez errada interpretação da Lei, pois o art.º 25.°da portaria n.º 214/91, de 15/03, não permite interpretação no sentido de abranger a competência para atribuição de quotas aos produtores, pelo que violou, por erro de interpretação, designadamente os artigos 25.º, n.º 2 e) da Portaria n.º 214/91, de 15/03, o art.º 2.° g) e b) do Dec. Lei n.° 108/91, de 15/03, e os artigos 2.°,4.°, 12.° c) e d) do Reg. CEE 857/84, do Conselho.
10.ª)- Face à legislação aplicável ( Reg. CEE 857/84 do Conselho, Dec. Lei n.° 108/91, de 15 de Março, Portaria n.º 828/91 de 14 de Agosto, Portaria n.º 1225/91 de 31/12 e Portaria n.º 714/92, de 11/07, só o recorrente tinha a qualidade de produtor, pois apenas em seu nome é que foram feitas as entregas de leite à Cooperativa, sendo para o INGA e para os interesses do Estado indiferente que o leite fosse produzido por uma ou mais pessoas e entregue apenas em nome de uma, pois a associação irregular do recorrente e dos seus associados não produzia efeitos externos às associações, e muito menos, efeitos legais face ao Estado.
11.ª)- Ao considerar que “o recorrente e seus associados funcionavam como um produtor, mas funcionavam assim em termos formais, uma vez que eram vários produtores associados para efeitos de quota” ( cf. fls. 430), a sentença recorrida considerou correctamente os factos, mas deles retirou conclusão que não tem enquadramento legal e é contrária à vontade que as partes manifestaram nos contratos.
12.ª)- Sem conceder, ainda que competisse ao INGA definir a situação jurídica de quem estava na posse da quota, sempre o acto recorrido estaria inquinado de violação de Lei, por errada qualificação da situação jurídica em causa e porque não aplicou critérios objectivos e estritamente jurídicos na referida decisão, decidindo à margem do princípio da legalidade.
13.ª)- Deve, pois, revogar-se a douta decisão recorrida, e julgar-se o acto recorrido NULO por usurpação de poder ou, caso assim se não entenda, deverá o mesmo ser anulado por estar inquinado de incompetência, e violação de Lei.
Contra-alegou o recorrido (Conselho Directivo do INGA), tendo formulado as seguintes conclusões (fls 489-492):
1.ª)- O vício de usurpação de poder pode existe, concretamente, quando um órgão da Administração pratica um acto da competência dos tribunais.
2.ª)- O recorrido é, de acordo com o art.º 7.º do D.L.108/91, de 15-3, a entidade competente para garantir a execução do disposto no presente diploma e respectivas normas regulamentares.
3.ª)- Compete, ainda, ao INGA, nos termos das alíneas e) e d), do n.º 2, do art.º 25.º, da Portaria n.º 214/91, controlar, junto do comprador, a redistribução da quantidade de referência pelos respectivos produtores, bem como assegurar a implementação e controlo de todas as medidas complementares necessárias à boa execução do regime comunitário.
4.ª)- Tem, assim, o recorrido, a obrigação legal de corrigir qualquer quota de entregas que considere estar incorrectamente atribuída ou de dirimir quaisquer questões que a este respeito sejam levantadas, quer pelos beneficiários, quer pelos compradores.
5.ª)- O recorrido pode, e deve, interpretar qualquer negócio jurídico celebrado entre beneficiários, que tenha repercussões, directas ou indirectas, no regime das quotas leiteiras.
6.ª)- As entregas efectuadas durante o ano de referência, e das quais resultou a atribuição da quota em causa, são fruto da exploração leiteira que o recorrente e os seus associados contratualmente constituíram e geriram.
7.ª)- A destruição daquela unidade produtiva, mantendo porém, ambas as partes, o interesse de continuarem, de forma autónoma e independente, a produzir leite, levou a uma inevitável reanálise do processo a fim de serem fixadas as quantidades de referência que deveriam caber a uma e outra parte.
8.ª)- Por força do Reg. (CEE) n.º 3641/90, de 11-12, do Conselho, foi fixada a Portugal, a partir de 1 de Abril de 1991, uma quantidade global garantida de produção leiteira anual - que não pode ser excedida pela soma das quantidades de referência individuais - de 1 779 000 t para entregas.
9.ª)- O recorrido é a única entidade com competência para assegurar a execução do regime comunitário, pois que todas as alterações às quantidades de referência de cada produtor têm de ser feitas com o máximo cuidado, para que o regime não fique desiquilibrado, sob pena de, em última análise, o país poder vir a ser penalizado pela União Europeia.
10.ª)- A intervenção do recorrido surge a pedido do comprador, do próprio recorrente e dos seus associados, manifestando apenas o exercício cabal das atribuições e competências que lhe foram conferidas pelo regime das quotas leiteiras, designadamente o D.L. n.º 108/91 e a Portaria n.º 214/91.
12.ª)- Em virtude de, o regime não oferecer uma resposta concreta para a presente questão controvertida, o recorrido decidiu socorrer-se, em sede interpretativa, da jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias.
13.ª)- A qual demonstra que, na acepção da al. c) do artigo 12.º do Reg. n.º 857/84, o “Acordo de mealheiro” mais não configura do que um único produtor entendido como um grupo de pessoas singulares cuja exploração se situa no território da Comunidade e que vende leite ou outros produtos lácteos.
14.ª)- Não sendo possível delimitar as quantidades de leite produzidas, quer pelos associados, quer pelos A..., e considerando, ainda, que ao abrigo dos acordos celebrados as partes se obrigavam em partes iguais a suportar os custos da exploração e a beneficiar dos lucros daí resultantes, decidiu-se que a quota leiteira deveria ser cindida em duas partes iguais, cabendo uma parte aos A... e a outra aos associados;
15.ª)- A quantidade de referência de um comprador reporta-se ao total da quantidade dos produtores.
16.ª)- O recorrente e associados funcionavam como um produtor, mas apenas em termos formais, pois eram vários produtores associados para efeitos de quota.
17.ª)- Sendo a associação feita na base de 50% de lucros e 50% de perdas, a autoridade recorrida, aplicando o conceito ao caso concreto, procedeu à distribuição.
18.ª)- A decisão recorrida é aquela que melhor prossegue os fins pretendidos pelo legislador nacional e comunitário, nos termos do art.º 3.º, n.º 1, do D.L. 108/91.
19.ª)- A quantidade de referência deve andar sempre associada à exploração.
20.ª)- Com a repartição da exploração deverá ser repartida a quota.
21.ª)- A jurisprudência do Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia aceita como sendo perfeitamente possível a repartição de uma quota leiteira, nomeadamente no Ac. da Sexta Secção, proferido em 16.10.1997, no âmbito do Proc. C-165/95, ou no «acórdão Twijnstra» (Proc.C-81/91).
22.ª)- A jurisprudência do Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia nunca censurou ter sido uma entidade administrativa a proceder à referida repartição, bem pelo contrário.
Os recorridos particulares não contra-alegaram.
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O Exm.º Magistrado do Ministério Público emitiu o douto parecer de fls 500, no qual se pronunciou pelo provimento do recurso, em virtude de dever ser julgado procedente o arguido vício de usurpação de poder.
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Foram colhidos os vistos dos Exm.ºs Juízes Adjuntos, pelo que cumpre decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2. 1. OS FACTOS:
A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:
1. O segundo recorrido particular e o recorrente celebraram um acordo para compensação de lucros e perdas, com vista à exploração de gado leiteiro, nos seguintes termos:
- o primeiro tinha uma empresa de exploração de uma vacaria, não dispondo de instalações, equipamento nem casa;
- o segundo tinha uma empresa de exploração de imóveis;
- considerando estes factos, e mantendo a individualidade de cada uma das empresas, celebraram um acordo mealheiro, a vigorar pelo período de 5 anos e com início em Agosto de 1988, nos termos do qual se obrigaram a juntar em comum todos os lucros e perdas anuais e a dividir uns e outras na proporção de 50% para cada um.
2. Todo o leite produzido era vendido à Cooperativa Agrícola de Produtores de Leite do Oeste-Estremadura, CRL;
3. A unidade de produção estava em nome do recorrente, no INGA, e por esta razão a quota leiteira foi-lhe atribuída;
4. A quota leiteira atribuída pelo INGA em nome do recorrente foi de 2.045.426,5 kg, tendo sido considerada a produção do ano de 1990;
5. Por ofício enviado ao recorrente em 18/4/94, a autoridade recorrida comunicou-lhe que tinha decidido que a quota leiteira de 2.045.426,5 kg, em nome do recorrente, seria dividida em duas partes iguais, uma referente ao recorrente e a outra a dividir pelos sócios, passando a sua quota a ser de 1.022.713;
6. Esta decisão teve por base a informação n.º 222/DAT-DJ/93, enviada ao recorrente posteriormente.
Nas conclusões 1.ª e 2.ª, o recorrente insurge-se contra esta matéria de facto dada como provada, que considera insuficiente, defendendo que os autos fornecem prova da totalidade da matéria de facto dada como provada no acórdão deste STA de fls 403-418 e que a mesma é relevante para a decisão do recurso, pelo que deve essa matéria ser considerada.
E, a nosso ver, assiste-lhe razão, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 712.º, n.º 1, alínea a) do CPC, se dá essa matéria por reproduzida (fls 412-413), dessa forma se julgando procedentes as conclusões 1.ª e 2.ª das alegações de recurso..
E, assim, temos:
1. O recorrente possuidor de “uma empresa cujo objecto é a exploração de imóveis aos quais pertencem uma casa de habitação, vacaria com correspondente sala de ordenha e demais recheio” com capacidade para a produção de 1 000 000 litros de leite por ano, mas que não possuía gado – celebrou três contratos denominados “Acordo para compensação de lucros e perdas”, um com cada um dos recorridos particulares – criadores de gado e titulares de empresas mas, que, contudo, não possuíam instalações para essa criação – destinados à exploração da vacaria do recorrente, nos quais entre outra coisa foi acordado o seguinte:
- Cada um dos recorridos particulares obrigou-se a “explorar na sua empresa uma tal quantidade de gado leiteiro que a instalação de ordenha fazendo parte da empresa de B (o recorrente) esteja totalmente ocupada, de modo que seja produzida a quantidade de leite de aproximadamente 1 000 000 litros de leite por ano.”
- Os parceiros “mantendo, no entanto, a independência das empresas de cada um”, obrigam-se a “depositar todas as receitas numa conta conjunta e a pagar todas as despesas desta mesma conta”, acordando também que a partilha dos lucros se faria “segundo a chave fixa de divisão: a cada um a metade.”
- Aqueles contratos tinham a duração de cinco anos, renováveis (fls 50-66 dos autos).
2. Todo o leite produzido era vendido à Cooperativa Agrícola de Produtores de Leite do Oeste-Estremadura, CRL.
3. A “unidade de produção” estava em nome do recorrente, no INGA, e por essa razão, a quota leiteira foi-lhe atribuída, sendo o mesmo titular de 4 distintos números de associados (3 277, 3 278, 3 279 e 3 280/61) daquela Cooperativa – vd gls 66 a 72 e 97.
4. A quota leiteira atribuída pelo INGA em nome do recorrente foi, no total, de 2.045.426,5 kg, tendo sido considerada a produção do ano de 1990.
5. Durante o ano de 1 990, o recorrente entregou leite na Cooperativa Agrícola de Produtores de Leite de Oeste-Estremadura sob quatro números de associados.
6. Por ofício enviado ao recorrente em 18/4/94, a autoridade recorrida comunicou-lhe que tinha decidido que a quota leiteira de 2.045.426,5 kg, em nome do recorrente, seria dividida em duas partes iguais, uma referente ao recorrente e a outra a dividir pelos sócios, passando a sua quota a ser de 1.022.713;
7. Deste modo, a quota do recorrente passaria a ser de 1 425 509,3, a qual correspondia a 50% da quota de 2 045 426,5, a que acresceram 402 796 de F4-vd doc. de fls 320 do processo instrutor
8. Esta decisão teve por base a informação n.º 222/DAT-DJ/93, enviada ao recorrente posteriormente.
2. 2. O DIREITO:
O recorrente imputa à sentença recorrida erros de julgamento, decorrentes de ter julgado improcedentes os alegados vícios de usurpação de poderes, incompetência e violação de lei.
O vício de usurpação de poderes, por cujo conhecimento há que começar, decorre, para o recorrente, do facto do acto contenciosamente impugnado ter dirimido uma questão no âmbito das relações jurídicas de Direito privado existentes entre ele e cada um dos recorridos particulares, por força dos contratos celebrados entre as partes, reconhecendo a validade e a subsistência do negócio jurídico celebrado entre elas, sem que tal tivesse sido feito ao abrigo ou em cumprimento de qualquer norma legal ou realizado para prosseguir o interesse público que o INGA devesse prosseguir, que era a regulamentação das quotas leiteiras atribuídas a Portugal, porquanto não consistiu em medida adequada e necessária para evitar que se excedesse a quantidade global garantida, tanto mais que nem sequer reverteu para a reserva nacional para reatribuição, pois que se decidiu entregar imediata e directamente aquela metade da quota aos recorridos particulares, ao abrigo do regime de transferências, e, em detrimento do recorrente.
O recorrido, por sua vez, considera que actuou com vista a assegurar o interesse público que o INGA deve prosseguir, de acordo com o estabelecido no art.º 7.º do D.L.108/91, de 15-3 e nas alíneas e) e d), do n.º 2, do art.º 25.º, da Portaria n.º 214/91, de controlar, junto do comprador, a redistribuição da quantidade de referência pelos respectivos produtores, bem como assegurar a implementação e controlo de todas as medidas complementares necessárias à boa execução do regime comunitário, o que lhe confere o poder/dever de corrigir qualquer quota de entregas que considere estar incorrectamente atribuída ou de dirimir quaisquer questões que a este respeito sejam levantadas, quer pelos beneficiários, quer pelos compradores.
Vejamos.
O vício de usurpação de poder “consiste na prática, por um órgão da Administração, de acto incluído nas atribuições do poder legislativo ou judicial” (Freitas do Amaral, in “Direito Administrativo”, vol.II, pág. 295). Reconduz-se à violação do princípio da separação de poderes, constituindo, no fundo, uma forma de incompetência agravada.
O que está em causa, no caso sub judice, é a violação da função jurisdicional, reservada aos tribunais (artigo 202.º da CRP).
De acordo com pacífica doutrina e jurisprudência, a função jurisdicional consiste “na actividade da resolução, com imparcialidade, à luz do direito constituído, dos conflitos de interesses ou litígios de natureza pública ou privada”, enquanto que a função administrativa consiste “na realização, pelo Estado, do interesse de satisfação das necessidades colectivas através da prestação de bens e serviços” (cfr., por todos, o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 12/92, de 30/3/92 e os acórdãos deste STA de 13/3/2003 e de 23/3/2003, proferidos nos recursos n.ºs 35 590 (Pleno) e 1 280/02, respectivamente).
O litígio existente entre o recorrente e os seus associados consistiu, conforme o resumiu a sentença recorrida, na destruição da unidade produtiva referenciada e caracterizada na matéria de facto e de, após essa destruição, ambas as partes intervenientes no acordo dela constitutivo terem reclamado o seu direito à quota atribuída a essa unidade. A actuação do recorrido consistiu em, perante essa situação, ter intervindo, determinando que a quota leiteira referente às quantidades de leite produzidas em 1990 fosse dividida em partes iguais, cabendo uma ao recorrente e outra aos seus associados.
Ora, do que ficou dito resulta que existiu, de facto, um conflito de interesses entre o recorrente e os seus associados, recorridos particulares, e que, no que respeita à atribuição da quota leiteira, o mesmo foi decidido pelo recorrido.
Mas, como se escreveu no acórdão deste STA de 28/11/2001, proferido no recurso n.º 47 676, “não é a simples existência de conflitos de índole privada na área de intervenção da Administração que a impossibilita de exercer os seus poderes de autoridade, desde que previamente legitimada por lei e movida unicamente pelo propósito de realização do interesse público.”
Vejamos, então, como está regulada esta matéria.
O regime de quotas leiteiras no âmbito da Comunidade Europeia foi instituído pelo Regulamento (CEE) n.º 804/68, de 27/7/78, e aplicado pelos Regulamentos (CEE) n.º 857/84, do Conselho, de 31/3/84 e 1 564/88, de 3/6/88. As quantidades globais garantidas para entregas aos compradores e a quantidade para vendas directas ao consumo foram fixadas, para Portugal, pelos Regulamentos (CEE) n.ºs 3 641/90 e 3 642/90, ambos do Conselho, de 11/12.
A aplicação desses regimes em Portugal foi fixada, sem prejuízo da aplicação directa da regulamentação comunitária, pelo Decreto-Lei n.º 108/91, de 15/3, regulamentado pela Portaria n.º 214/91, da mesma data.
O Regulamento n.º 857/84 define o produtor agrícola como a pessoa singular ou colectiva ou grupos de pessoas singulares ou colectivas cuja exploração se situa no território da Comunidade (alínea c) do seu artigo 12.º), definindo-o o Decreto-Lei n.º 108/91 em moldes idênticos (pessoa individual ou colectiva, ou seus agrupamentos, que venda o leite ou outros produtos lácteos directamente ao consumo ou o entregue a um comprador – artigo 2.º, alínea g)).
A entidade competente para garantir a execução do estatuído nestes diplomas é o INGA (artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 108/91 e 25.º, n.º 2 da Portaria n.º 214/91).
A atribuição de quotas aos produtores está conferida aos compradores (artigo 2.º, n.º 2 da Portaria n.º 214/91), o que não impede que, como bem salienta o Exm.º Magistrado do Ministério Público no TAC, a propósito do vício de incompetência assacado ao acto impugnado, por não competir ao INGA, mas sim ao comprador, proceder à redistribuição de quotas pelos produtores, “a norma de competência invista o INGA no poder-dever de “controlar, junto do comprador, a redistribuição da quantidade de referência pelos respectivos produtores (artigo 25.º, n.º 2, alínea e) da Portaria n.º 214/91).
Ora, sob pena de este poder se esvaziar, por inconsequente, tendo em conta que entre o INGA e o comprador não há relação de subordinação hierárquica com os correspectivos poder de dar ordens e dever de obediência, o poder de controlo cometido ao INGA tem de comportar, pelo menos, os poderes de revogação e de substituição primária relativamente ao comprador.”
Aplicando este quadro legal à situação sub judice, temos que o INGA detinha competências para proceder à redistribuição da quota do produtor/recorrente, tendo-o feito com base no pressuposto de que este era um agrupamento de quatro produtores (que, perante o comprador, apresentava 4 números de associado). O que há, portanto, que indagar, tendo em conta o que se deixou dito sobre o vício de usurpação de poderes, é se, com a sua actuação, o recorrido pretendeu resolver o conflito privado surgido entre os produtores integrantes do agrupamento produtor, ou se, pelo contrário, pretendeu exercer os seus poderes de autoridade, que os preceitos legais referenciados lhe conferem, tendo-se determinado unicamente pelo propósito de realização do interesse público.
E, em face dos elementos constantes dos autos, a resposta não pode deixar, em nosso entender, de acolher a segunda posição, o que afasta esse vício, mesmo que a decisão não esteja de acordo com a lei.
Com efeito, perante o considerado “desfazer do agrupamento produtor” e a alegada capacidade de continuação de produção da mesma quantidade de leite, o que o recorrido fez foi mantêr a quantidade de referência e dividi-la pelos seus associados, em face do conhecimento que tinha dessa associação, assim garantindo a continuação de uma quantidade de produção que era do interesse nacional não ser diminuída e de cujo não aumento funcionava como garante.
O que significa que actuou movido pelo propósito de realização do interesse público, para o qual estava legitimado por lei, e não pelo de dirimir o conflito de interesses entre o recorrente e os recorridos particulares. Ou seja, actuou no exercício da função administrativa e não na esfera de competências dos tribunais, nos quais, segundo se colhe dos autos, o assunto está a ser dirimido e, uma vez por eles resolvido, poderá ser apresentado ao recorrido, que o terá de acatar (artigo 208.º da CRP) e eventualmente refazer a sua posição.
Donde resulta que a actuação do recorrido não só não está inquinada do vício de usurpação de poderes, como igualmente não está ferida do vício de incompetência.
Improcedem, assim, as referidas conclusões 3.ª a 9.ª.
Nas conclusões 10.ª a 12.ª, defende o recorrente que a sentença impugnada julgou erradamente, ao considerar que o recorrente e seus associados funcionavam como um produtor, mas funcionavam assim em termos formais, uma vez que eram vários produtores associados para efeitos de quota, na medida em que só o recorrente tinha a qualidade de produtor, pois só em seu nome foram feitas entregas de leite à Cooperativa, sendo para o INGA e para o Estado indiferente que o leite fosse produzido por uma ou mais pessoas e entregue apenas em nome de uma, pois que a associação irregular do recorrente e dos seus associados não produzia efeitos externos às associações e, muito menos, efeitos legais face ao Estado.
Mas não lhe assiste razão, em nosso entender.
Com efeito, a lei fala em agrupamentos de produtores, que, no presente caso, existia. Sintomático é, aliás, que sendo as entregas de leite feitas pelo recorrente em seu nome, essas entregas fossem feitas sob 4 números de associado, nem o próprio recorrente pondo em causa a existência desse agrupamento.
A lei, ao estabelecer um agrupamento de produtores, não teve seguramente em mente o estabelecimento de sociedades regulares, antes admitindo a associação de facto.
E tendo o mesmo sido dissolvido, havia, para que pudesse haver individualização de produtores, que fosse individualizada a produção de cada um. Não tendo esse objectivo sido alcançado por acordo dos associados, entendemos que o recurso utilizado à comparticipação nos lucros e perdas (afinal o critério normal para caracterizar e quantificar as quotas dos associados) se apresenta como um critério aceitável para essa divisão e, como tal, que o acto impugnado se não encontra inquinado do vício que lhe é assacado nas conclusões 10.ª a 12.ª.
Na verdade, como defende o recorrido, a quantidade de referência deve andar sempre associada à exploração e, sendo esta repartida, repartida deve ser a quota.
A quantidade de referência global não podia ser alterada, pelo que a única solução era proceder à repartição da quota pelos seus associados, que, como resulta do que ficou dito, é da competência do INGA e foi feito em moldes perfeitamente aceitáveis, tendo em conta a situação de facto carreada para os autos.
3. DECISÃO
Nesta conformidade, acorda-se em negar provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 300 euros e a procuradoria em metade.
Lisboa, 29 de Abril de 2003.
António Madureira –Relator – Rosendo José – Pires Esteves