Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01680/02
Data do Acordão:05/21/2003
Tribunal:3 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA.
GRAVE INSEGURANÇA.
ERRO NOS PRESSUPOSTOS DE FACTO.
Sumário: I - Nos termos do art. 8º, n.º 1, da Lei n.º 15/98, de 26/3, conceder-se-á autorização de residência em Portugal aos estrangeiros que se sintam impossibilitados de regressar ao seu país por aí se verificar uma grave insegurança devida a conflitos armados ou à sistemática violação dos direitos humanos.
II - Se o acto indeferiu ao recorrente, cidadão da Serra Leoa, um pedido de renovação da autorização de residência por razões humanitárias, fundando-se esse indeferimento no facto de aquele país ter entretanto obtido uma satisfatória estabilidade política e militar, soçobra o erro nos pressupostos assacado ao acto se o recorrente não logrou persuadir que a Serra Leoa continua num estado de grave insegurança, conforme ao referido em I, e se limitou a enunciar o receio de que a situação naquele país africano volte a degradar-se.
III - Não havendo elementos que enfraqueçam o juízo assertórico emitido pelo acto acerca da situação vivida na Serra Leoa, de modo a que devêssemos encará-lo como problemático, tem de se concluir que não persiste, quanto ao estado da Serra Leoa avaliado pelo acto, uma qualquer dúvida susceptível de se resolver em benefício do recorrente.
Nº Convencional:JSTA00059470
Nº do Documento:SA12003052101680
Data de Entrada:10/28/2002
Recorrente:A...
Recorrido 1:MINAI
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC CONT.
Objecto:DESP MINAI DE 2002/07/02.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM GER - ASILO.
Legislação Nacional:L 15/98 DE 1998/03/22 ART8 N1 ART33.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:
A..., identificado nos autos, interpôs recurso contencioso do despacho do Ministro da Administração Interna, de 2/7/02, que recusou a renovação da autorização de residência que lhe havia sido concedida por razões humanitárias.
O recorrente terminou a sua alegação de recurso formulando as conclusões seguintes (a numeração é da nossa responsabilidade):
1 – O requerente, ora recorrente, solicitou protecção ao Estado Português invocando receio fundado de perseguição no seu país de origem com a consequente violação sistemática dos direitos humanos, sendo ele uma vítima dessas violações, não tendo o Estado da Serra Leoa as condições necessárias para garantir a sua segurança.
2 – Pelo facto de o recorrente não concordar com a decisão de indeferimento do pedido de renovação da sua autorização de residência, por parte de Sua Excelência o Senhor Ministro da Administração Interna, impugnou tal acto administrativo.
3 – Nos termos do n.º 4, n.º 1, al. e), e n.º 2 do ECNR, a proposta de decisão dos pedidos de renovação de autorização de residência não pode ser delegado no Comissário Nacional Adjunto.
4 – Contudo, a Senhora Comissária Nacional Adjunta para os Refugiados elaborou tal proposta de decisão.
5 – Ao assinar o projecto/proposta que decide pela não renovação da autorização de residência, tal acto está ferido de incompetência relativa, dado ter praticado um acto incluído na competência do Comissário Nacional para os Refugiados.
6 – Não foi ao ora recorrente aplicado o princípio do benefício da dúvida quanto às declarações por si prestadas relativamente aos factos que constituíram o móbil da sua fuga, com base na situação de insegurança reinante no país de origem.
7 – Face ao «supra» alegado, estão, em nossa opinião e salvo o devido respeito, preenchidos os requisitos para a concessão da renovação da autorização de residência por razões humanitárias, previstos no art. 8º da Lei n.º 15/98, de 26/3.
A autoridade recorrida contra-alegou, tendo oferecido as seguintes conclusões:
A – O âmbito do recurso determina-se em função das conclusões da alegação do recorrente, desde que tais conclusões não exorbitem da petição inicial, ressalvados os casos de impossibilidade de arguição dos vícios à data da interposição daquele recurso.
B – A arguição do vício de incompetência relativa, feita apenas nas alegações, quando não se verificou a impossibilidade da sua arguição à data da interposição do recurso, impossibilita este Supremo Tribunal de apreciar tal vício.
C – De igual modo, está este Supremo Tribunal impossibilitado de apreciar a alegada violação do invocado princípio do benefício da dúvida.
D – O pedido de renovação da autorização de residência com base na protecção humanitária – de cariz subsidiário relativamente ao direito de asilo – referida na legislação adrede, impõe que a situação do país de origem se mantenha inalterada relativamente ao momento em que a autorização de residência foi concedida.
E – A situação do país de origem do ora recorrente é, hoje, muito diferente, para melhor, daquela que aconselhou lhe fosse concedida, em 1999, a autorização de residência por razões humanitárias.
F – A situação do recorrente, como se apresenta na actualidade, é insusceptível de aplicação do regime previsto no art. 8º da Lei n.º 15/98, de 26/3.
A Ex.ª Magistrada do MºPº emitiu douto parecer no sentido do não provimento do recurso.
À decisão interessam os seguintes factos, que se encontram assentes:
1 – O recorrente é um cidadão da Serra Leoa que se refugiou em Portugal, onde pediu asilo.
2 – Por despacho de 2/6/99, do Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna, foi recusada a concessão de asilo ao recorrente, mas foi-lhe concedida autorização de residência, por razões humanitárias, a qual foi depois renovada.
3 – Em 2/5/02, o recorrente requereu ao Director-Geral do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras outra renovação da sua autorização de residência.
4 – A propósito desse requerimento, o Comissário Nacional para os Refugiados, em 10/5/02, emitiu o parecer cuja cópia consta de fls. 24 a 27 dos autos, em que propôs que fosse «indeferido o pedido de renovação de autorização de residência por razões humanitárias».
5 – Ouvido a propósito desse parecer, o ora recorrente apresentou a resposta cuja cópia consta de fls. 28 a 33 dos autos e que designou de «alegações», em que defendeu o deferimento do seu pedido de renovação da autorização de residência.
6 – Em 14/6/02, e a propósito do referido pedido de renovação, a Comissária Nacional-Adjunta para os Refugiados emitiu o parecer cuja cópia consta de fls. 34 a 40 dos autos, de que se extracta o seguinte:
«Porém, as notícias que têm vindo a público sobre a situação na Serra Leoa dão conta que o quadro sócio-político-militar se alterou e que o país tem vindo a consolidar as esperanças de paz e de retorno à estabilidade governativa.
Parece-nos, pois, despiciendo fazer, aqui e agora, uma análise de tal situação, uma vez que tal já foi efectuado aquando da elaboração da proposta, permitindo-nos assim remeter neste aspecto para a mesma.
Diremos tão somente e em jeito de conclusão, que a situação sócio-política e militar na Serra Leoa é estável e permite, como aliás tem vindo a ser reconhecido pela ONU, o retorno de deslocados de guerra que se encontravam nos países vizinhos, o que terá de ser tomado em consideração para a reanálise do pedido efectuado pelo requerente.
Podemos sem dificuldade perceber perfeitamente que o requerente A... tenha uma situação estável em Portugal, que esteja perfeitamente enraizado no nosso país, que se sinta realizado e que tenha uma vida estável, como ele próprio refere nas alegações agora apresentadas, continuando assim a desejar manter esse “status quo”.
O que não percebemos, e não podemos entender, é que alguém que tenha beneficiado de um “estatuto humanitário”, como foi o caso do requerente, com características próprias e específicas e taxativamente definidas na lei, o pretenda agora adulterar por razões completamente diferentes, por razões notoriamente económicas.
Com efeito, as razões que parecem estar na base do pedido de renovação da autorização de residência por razões humanitárias, ora apresentado, são humanas e legítimas, por parte do requerente; no entanto, o meio utilizado para alcançá-las (pedido de renovação de autorização de residência por razões humanitárias) não é o meio próprio, nem idóneo para alcançar tal objectivo.
Tal objectivo não cabe seguramente no âmbito deste instituto, previsto no art. 8º da Lei n.º 15/98, de 26 de Março e na Convenção de Genebra.
Na verdade, a falta de condições de vida pessoal e socialmente dignas, que porventura se verifiquem no país de origem do requerente A... não se encontram entre as razões que justificam a aplicabilidade do regime subsidiário contido no art. 8º da Lei n.º 15/98, de 26 de Março.
Com efeito, no caso concreto dos cidadãos oriundos da Serra Leoa, e designadamente no caso do requerente, o motivo que originou a concessão do direito de autorização de residência por razões humanitárias foi a insegurança decorrente do conflito armado existente no território, que actualmente já não se verifica, não havendo por isso hoje em dia razões para lançar mão de tal mecanismo – cujo objectivo, repetimos, está claramente definido na lei, não sendo por isso também legítimo pretender desvirtuá-lo.
Com efeito, as melhorias assinaladas na Serra Leoa são prenunciadoras do nível de estabilidade razoável, o que permite prever que a vida das pessoas poderá ser retomada com normalidade.
Efectivamente, o preceituado no art. 8º da Lei 15/98 de 26/3 será aplicável num circunstancialismo objectivo, decorrente de uma situação de um conflito armado ou de uma sistemática violação dos direitos humanos, o que não nos parece ser o caso actual da Serra Leoa.
Face a todo o exposto, entendemos que o requerente A..., atentos os princípios reguladores do direito humanitário estatuídos, quer na Lei 15/98 de 26 de Março – “maxime” no seu art. 8º – quer na convenção de Genebra, não poderá continuar a beneficiar da autorização de residência por razões humanitárias.
Tal não significa necessariamente que a pretensão do requerente de permanecer em Portugal não possa ser alcançada por outro qualquer meio legítimo, mas não ao abrigo do art. 8º da Lei 15/98 de 26 de Março, uma vez que o quadro normativo que justificou o direito concedido inicialmente ao requerente deixou de se verificar, deixou de existir.
Face ao “supra” expendido, entendemos ser de manter o projecto de proposta já formulada a fls. 141 e ss., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e cuja conclusão passamos a citar:
III – Proposta
Em vista deste quadro, somos de entender que os requisitos exigidos no quadro normativo que justificou o direito concedido, inicialmente, ao peticionante deixaram de se verificar, pelo que não deverá ser concedido o pedido de renovação de autorização de residência.
Assim, propõe-se que seja indeferido o pedido de renovação de autorização de residência por razões humanitárias.»
7 – Referindo-se ao antecedente parecer, a autoridade recorrida, em 2/7/02, proferiu o seguinte despacho:
«Ao abrigo do art. 33º da Lei n.º 15/98 de 26 de Março, e nos termos do art. 23º, n.º 5, conjugado com o art. 26º da mesma Lei, com base na proposta do Comissariado Nacional para os Refugiados, não é concedida renovação da autorização de residência por razões humanitárias ao cidadão de nacionalidade serra leonesa A..., por já não se verificarem os requisitos exigidos no quadro normativo que justificou o direito concedido inicialmente ao abrigo do art. 8º da supra mencionada Lei.
Nos termos do art. 25º do mesmo diploma legal, o cidadão pode permanecer em território nacional durante um período de 30 dias, findo o qual fica sujeito à legislação sobre estrangeiros.».
Passemos ao direito.
Através do presente recurso contencioso, o recorrente acomete o acto administrativo que lhe denegou o pedido de renovação da autorização de residência em Portugal, que lhe havia sido anteriormente concedido por razões humanitárias. Tendo em conta que os ataques movidos ao acto impugnado só poderão relevar na medida em que constem das conclusões da alegação de recurso, passaremos de imediato a analisá-las, fazendo-o pela ordem da sua apresentação.
As duas primeiras conclusões são insusceptíveis de porem em causa a legalidade do acto recorrido, pois limitam-se a historiar sumariamente os antecedentes do acto e a referir a interposição do recurso contencioso. Por outro lado, as conclusões 3.ª a 5.ª consubstanciam a arguição de um vício formal (consistente na incompetência da autora da proposta de decisão, acolhida pelo acto) que poderia e deveria ter sido arguido «in initio» (cfr. o art. 36º, n.º 1, al. d), da LPTA); ora, esse vício, invocado apenas na alegação, foi extemporaneamente introduzido no recurso e, portanto, não pode ser apreciado. Assim, as três mencionadas conclusões são impotentes para acometer o acto impugnado.
Resta-nos apreciar as duas últimas conclusões, em que o recorrente, retomando o que alegara na petição de recurso, diz, basicamente, duas coisas: que, ao invés do que o acto pressupôs, a situação no país donde ele é originário (a Serra Leoa) continua a apresentar características de insegurança subsumíveis à previsão geral e abstracta do art. 8º, n.º 1, da Lei n.º 15/98, de 26/3; e que, de todo o modo, ele sempre deveria beneficiar do denominado princípio do benefício da dúvida em relação ao estado, por si declarado, de insegurança na Serra Leoa. Vejamos se alguma destas duas questões pode conduzir à supressão do acto «sub censura».
O art. 8º, n.º 1, da Lei n.º 15/98 prevê que seja concedida autorização de residência por razões humanitárias aos estrangeiros e aos apátridas a quem não sejam aplicáveis as disposições do art. 1º (que se refere ao direito de asilo) e que sejam impedidos ou se sintam impossibilitados de regressar ao país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual por motivos de grave insegurança devida a conflitos armados ou à sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifiquem.
O acto recorrido apropriou-se do conteúdo de um parecer emanado do Comissariado Nacional para os Refugiados em que se considerou que a situação político-militar na Serra Leoa melhorou consideravelmente em relação a tempos próximos, gozando o país de uma estabilidade que, inclusivamente, tem permitido «o retorno de deslocados de guerra que se encontravam nos países vizinhos». Aliás, o próprio recorrente, no art. 26º da sua petição de recurso, admitiu «que as eleições realizadas este ano na Serra Leoa decorreram de forma bastante tranquila» – ainda que temperasse este dito através da afirmação de que o país não viveria ainda «em perfeita estabilidade».
Portanto, o acto recorrido partiu do pressuposto de que o quotidiano da Serra Leoa deixou de apresentar uma «grave insegurança devida a conflitos armados ou à sistemática violação dos direitos humanos» (cfr. o transcrito art. 8º, n.º 1). E o recorrente não se mostrou capaz de infirmar este pressuposto, pois não persuadiu que, naquele país africano, permaneça o estado de insegurança que justificara a autorização de residência por razões humanitárias de que anteriormente beneficiou. No fundo, o recorrente limitou-se a enunciar o receio de que a situação na Serra Leoa volte a degradar-se; mas essa hipotética degradação constitui um facto futuro e incerto, que é insusceptível de contrariar os juízos de realidade em que assentou o despacho «sub judicio».
Deste modo, o acto não enferma do erro nos pressupostos que o recorrente lhe assaca. Por outro lado, o despacho recorrido aderiu inteiramente aos juízos assertóricos que, a propósito da situação actualmente vivida na Serra Leoa, a Comissão Nacional para os Refugiados emitira. Quer isto dizer que o acto não pôs em dúvida o facto de a Serra Leoa não passar hoje pela situação de «grave insegurança» a que o art. 8º, n.º 1, da Lei n.º 15/98, de 26/3, se refere, antes tendo seguramente dito, e de um modo que não foi abalado, que tal situação de perigo não existe. Portanto, nenhuns elementos há que inclinem no sentido de se dever encarar como problemático o juízo quanto ao satisfatório estado de segurança de que goza aquele país africano. E, não havendo dúvida quanto a esse decisivo facto, nenhuma razão há para que deva funcionar, contra o acto, o invocado princípio do benefício da dúvida – pois a existência desta seria sempre uma condição necessária da observância do princípio.
Assim, torna-se clara a improcedência das duas últimas conclusões da alegação do recurso.
Nestes termos, acordam em negar provimento ao presente recurso contencioso.
Custas pelo recorrente (sem prejuízo do apoio judiciário concedido):
Taxa de justiça: 200 euros
Procuradoria: 100 euros
Fixam-se os honorários devidos à ilustre Advogada do recorrente em 13 unidades de referência (cfr. a tabela anexa à Portaria n.º 150/2002, de 19/2). Lisboa, 21 de Maio de 2003.
Madeira dos Santos – Relator – António Samagaio – Jorge de Sousa