Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01234/09
Data do Acordão:01/14/2010
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ROSENDO JOSÉ
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
PRESSUPOSTOS
Sumário:Assume relevância jurídica e social fundamental determinar se, de acordo com o quadro legal introduzido pela Lei n.º 66-A/2007 de 11 de Dezembro, o exercício da competência electiva atribuída ao Plenário do Conselho das Comunidades Portuguesas, nos termos do art. 33º alínea b) para eleger o seu Conselho Permanente, exige a aprovação prévia de regulamento interno do Conselho em Plenário, nos termos do artigo 37º n.º 3, ambos do mesmo diploma legal, ou se pode aplicar-se à eleição o regulamento editado para execução da Lei anterior revogada que previa um Conselho Permanente, embora eleito por outro órgão, com diferente estruturação e competências.
Nº Convencional:JSTA000P11292
Nº do Documento:SA12010011401234
Recorrente:A...
Recorrido 1:MNE
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Formação de Apreciação Preliminar
Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do STA:
I – Relatório:
A… instaurou no TAF de Lisboa processo urgente de contencioso eleitoral contra
MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS (MNE),
em que impugnou as eleições realizadas no Plenário do Conselho das Comunidades Portuguesas que reuniu em Lisboa nos dias 15 a 17 de Outubro de 2008, para os membros do Conselho Permanente das Comunidades Portuguesas (doravante CPCP).
O A. imputou vícios às eleições, que na sua perspectiva, as ferem de nulidade.
O TAF de Lisboa, por sentença de 3/4/2009, julgou procedente o pedido, anulou a eleição do CPCP e determinou que em nova reunião do Plenário do Conselho, deveria, previamente, ser aprovado o regulamento e só depois, com base na regulação que dele dimanar, ser repetida a eleição dos membros do CPCP.
Inconformado, o MNE interpôs recurso jurisdicional para o TCA-Sul que, por Acórdão de 6/8/2009, concedeu provimento ao recurso, revogou a sentença recorrida e indeferiu a pretensão.
É deste Acórdão que A… pede a admissão de revista, nos termos do artigo 150º n.º 1 do CPTA.
O MNE apresentou contra-alegações, nas quais pugna pela inadmissibilidade da revista por não se verificarem os respectivos pressupostos legais e, quanto ao mais, pela manutenção da decisão recorrida.
III – Apreciação. Os pressupostos de admissão do recurso de revista.
1. O Recorrente não indicou, como lhe competia, as razões pelas quais entende dever este recurso excepcional ser admitido no presente caso. Porém, seguindo orientação já assente e atento o papel de intervenção selectiva com vista à regulação do sistema do contencioso que este recurso excepcional é chamado a desempenhar, esta formação conhecerá, ex officio, da verificação dos pressupostos exigidos pelo art. 150º n.º 1 do CPTA para a admissão da revista.
2. O recurso de revista está regulado no artigo 150.º do CPTA como excepcional, com o sentido de reservado para aquelas situações em que estejam em causa questões jurídicas ou sociais tão relevantes que atinjam o grau «fundamental», ou quando a intervenção do STA seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito (n.º 1).
Para concretizar os enunciados conceitos abertos da previsão legal esta formação tem considerado que a relevância jurídica fundamental existe quando a questão a apreciar na revista – determinar com precisão qual o regime jurídico adequado à pretensão do A. com base nos factos fixados pelo tribunal de apelação e aplicá-lo nas circunstancias do caso -, é especialmente complexa e difícil, seja em razão de inovações no quadro legal; do uso de conceitos indeterminados; de remissões condicionadas à adaptabilidade a diferente matéria das soluções da norma que funciona como supletiva e, em geral quando o quadro legal suscite dúvidas na doutrina e na jurisprudência.
No que concerne à relevância social fundamental de determinada questão, este pressuposto tem vindo a dar-se por verificado, designadamente nos casos em que o problema suscitado se apresenta como direito difuso, ou apesar de não ter essa natureza, as circunstâncias são de molde a fazer prever que vai surgir no contencioso, de forma idêntica para um vasto número de interessados, actual ou potencial, isto é, a questão apresenta capacidade de se expandir com reflexos na decisão de um assinalável número de casos futuros, ou ainda pendentes. O interesse social tem sido associado também às questões que são sentidas numa comunidade ampla de pessoas ou por uma faixa muito importante da opinião pública como especialmente importantes, isto é, sem as quais o bem comum fica em perigo.

A intervenção do STA tem sido entendida como claramente necessária quando esteja em causa questão que suscite relevante incerteza ou dúvida por se detectarem correntes diferentes quanto à respectiva solução, ou o assunto seja novo, sem que sobre ele se tenha pronunciado o STA, sendo, razoavelmente, de prever que nas circunstâncias daquela causa e da pertinência com que nela são colocados os problemas jurídicos, a intervenção e pronúncia do órgão de cúpula do sistema de justiça administrativa pode contribuir para a aplicação do direito que melhor garante estabilidade, segurança, previsibilidade e eficácia.

Passemos à análise do caso:

3. O Conselho das Comunidades Portuguesas é um órgão colegial composto de 73 membros, 63 dos quais eleitos pelos portugueses residentes no estrangeiro, inscritos no posto consular da residência que tenham completado 18 anos até 50 dias antes das eleições.
O Conselho das Comunidades Portuguesas (em Plenário) elege cinco membros – eles mesmos de origem electiva - para integrar uma formação restrita, o Conselho Permanente que é composto por cinco membros eleitos pelo Plenário e pelos presidentes das comissões de carácter permanente.
Neste processo o litígio reporta-se à eleição, pelo Plenário dos referidos cinco membros do Conselho Permanente
O recorrente elege como questão essencial que entende ser fundamental para admissão da revista “... saber se, in casu, a eleição poderia processar-se sem que tivesse sido aprovado previamente um regulamento do Plenário do Conselho das Comunidades Portuguesas”.
Alega em sede de conclusões (cfr. fls. 908 e ss.):
I) Ao contrário do que é manifesto no douto acórdão recorrido, nunca foi posta em causa a vigência do Regulamento do Plenário do Conselho das Comunidades Portuguesas vigente antes da aprovação da lei n.º 66-A/2007.
II) O que está em causa é a não regulação, no quadro de tal regulamento, das eleições de 5 membros do Conselho Permanente, não previstas na lei anterior e, por isso mesmo, não reguladas.
III) determinando a lei nova que essa eleição se faça em conformidade com o regulamento do Conselho e não prevendo o regulamento vigente qualquer tipo de eleição, porque tal tipo não existia na versão anterior da lei, não podiam realizar-se as eleições antes que fosse aprovado regulamento que permitisse regular tal processo eleitoral. (...)”
O TAF de Lisboa apreciou o litígio assim:
“ O regulamento e a respectiva alteração (...) foram elaborados antes da entrada em vigor da lei n.º 66-A/2007, sendo a reunião de 15 a 17 de Outubro de 2008 a primeira reunião do primeiro Conselho das Comunidades Portuguesas constituído após a entrada em vigor desta Lei.
De acordo com o art. 17º da Lei 48/96 na redacção introduzida pela Lei 21/2002:
(...)
2 – Os membros do Conselho Permanente são eleitos, aquando da realização do primeiro plenário após as eleições, para a totalidade do mandato do Conselho, de acordo com regulamento a aprovar por cada conselho regional (...).
A constituição do Conselho Permanente foi alterada pela Lei n.º 66-A/2007, passando a ser constituído por, além dos presidentes das comissões de carácter permanente que tenham sido constituídas, 5 membros eleitos pelo Plenário de entre os 65 membros que compõem o Conselho das Comunidades,(...).
A eleição desses 5 membros, de acordo com o n.º 3 do art. 37º, é realizada na primeira reunião do plenário após as eleições, de acordo com o previsto no regulamento do Conselho.
Por imposição do art. 37º n.º 3 portanto, o Regulamento do Conselho das Comunidades Portuguesas (regulamento interno do seu funcionamento, que lhe compete aprovar nos termos do art. 2º n.º 2) – após a entrada em vigor da Lei n.º 66-A/2007 – tem de estabelecer normas sobre o processo eleitoral dos cinco membros do Conselho Permanente previstos na al. a) do n.º 1 do art. 37º.
O que o regulamento anterior do CCP não previa – nem tinha de prever, uma vez que a eleição dos membros do Conselho Permanente era feita no primeiro Plenário após as eleições, pelos Conselhos regionais (...). Que não portanto de acordo com o previsto no Regulamento interno de funcionamento do próprio Conselho das Comunidades.
Sublinhem-se as alterações introduzidas pela Lei n.º 66-A/2007 no que respeita às competências do Conselho reunido em plenário (...) . Só com a Lei n.º 66-A/2007 – em cuja vigência foi já eleito o Conselho que reuniu pela primeira vez em Outubro de 2008 – o Conselho Passou a ter por competência a eleição dos membros do Conselho permanente, nos termos da al. b) do art. 33º.
E a regulação de tal processo não pode ser suprida pela aplicação do disposto no art. 7º do regulamento anterior (...). Porque se trata de matéria que por lei posterior tem de ser prevista no regulamento do Conselho e porque os “casos omissos” a que se refere o art. 7º são relativos “às questões ou dúvidas relativas à organização e funcionamento da reunião do plenário do conselho...”, onde manifestamente não cabem as regras relativas ao processo de eleição dos membros do Conselho Permanente.”
Com base neste raciocínio concluiu que:
“ao eleger os cinco membros do Conselho permanente (...), sem que previamente tivesse aprovado o regulamento interno do seu funcionamento (nos termos do art. 2º n.º 2 da Lei n.º 66-A/2007 de 11.12 e ao qual se alude no art. 37º n.º 3 da mesma Lei) o Plenário do Conselho das Comunidades Portuguesas incorreu em vício de violação de lei, por infracção daquelas disposições legais.”
Razão pela qual anulou a aludida eleição.
Diferentemente o TCA-S com base no disposto no artigo 119º n.º 1 do CPA e da proibição de criação de vazio legal, entendeu que:
“ No caso concreto, não tendo sido elaborado novo regulamento, deve considerar-se em vigor o regulamento aprovado em 1997, na primeira sessão plenária do CCP, e alterado em 2003, o qual contém as regras necessárias para a realização do acto eleitoral em causa (...).
Não se justifica, portanto, a anulação da eleição em causa pelas razões que serviram de fundamento à sentença recorrida, que ao considerar a inaplicabilidade do Regulamento editado por via do art. 15º n.º 6, alínea b) da lei anterior do CCP (Lei n.º 48/96, de 4 de Setembro, na redacção que lhe foi conferida pela lei n.º 21/2002 de 21 de Agosto), violou o artigo 119º do Cód. Proc. Administrativo, que mantém em vigor os regulamentos de execução cujo diploma legal habilitante foi entretanto revogado, enquanto não for substituído por regulamentação substitutiva.”
E nesta linha concedeu provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida, indeferindo a pretensão do recorrido.
4. É possível agora recortar a questão jurídica central controvertida nos autos que consiste em determinar e interpretar o quadro legal da eleição do Conselho Permanente a que se referem os artigos 31.º, 33.º b), 37.º, 38.º e 39.º da Lei 66-A/2007, quanto à obrigatoriedade, ou não, de tal eleição ser precedida da aprovação de um regulamento do Conselho que contemple especificamente esta matéria.
Importa saber se esta questão ascende, de um ponto de vista jurídico ou social, ao grau de questão “de importância fundamental” exigido pelo artigo 150º n.º 1 do CPTA para a admissão da revista, ou se reclama a intervenção do STA para garantir a melhor aplicação do direito.
Para o Acórdão do TCA, o aspecto jurídico determinante foi o disposto no artigo 119.º do CPA, que se refere aos regulamentos necessários à execução das leis em vigor e proíbe a respectiva revogação global sem que a matéria seja objecto de nova regulamentação.
Sobre a interpretação deste artigo do CPA conhecem-se apenas os Ac. do STA de 3.11.2004, P. 0678/04 e 29.3.2006, P. 01105/05 em que estava em causa a retroactividade da revogação de acto normativo ilegal e o Ac. de 19.01.2005, P. 1086/04, em que se pretendia saber se um regulamento independente caducava pela revogação da Lei habilitante substituída por outra que continha a mesma normação.
Ou seja, nenhuma das pronúncias versa sobre a questão identificada nestes autos. Mas, resulta patente das anteriores intervenções do STA e da controvérsia estabelecida nestes autos a previsível conveniência de a solução das matérias considerar a natureza do regulamento cuja emissão está prevista pelo n.º 3 do art.º 37.º citado.
Por outro lado, não se está perante uma situação que aparente ou em que seja invocada revogação de regulamento anterior, mas sim da revogação da Lei anterior, passando o novo Conselho das Comunidades Portuguesas a ter diferente composição, e competências mais alargadas e também passando agora a Comissão Permanente do Conselho das Comunidades a ser eleita no âmbito do Conselho (isto é, por órgão diferente do que era anteriormente) e a assumir outras funções.
Portanto, a questão que se suscita tem a ver com a interpretação de normas relativas à competência electiva e aos procedimentos eleitorais para um órgão político-administrativo, cuja actuação se repercute nas políticas relativas à emigração e às comunidades portuguesas.
A necessidade de rigor, certeza e segurança que se exigem em matéria de eleição de um órgão desta natureza tem uma relevância objectiva evidente. O facto de se tratar de assunto não repetitivo ou pouco frequente no contexto geral do contencioso administrativo, tem a ver com a própria natureza eleitoral da matéria, mas permanece a referida importância social, em virtude de estar em causa definir a conduta institucionalmente exigível aos órgãos da Administração Pública, a quem incumbe assegurar o funcionamento correcto do processo eleitoral de órgão de natureza político-administrativa.
Além de que a matéria é nova na legislação aplicável e no contencioso e apresenta dificuldades superiores ao comum, como se pode depreender das divergentes decisões das instancias e das ainda inexistente oportunidades de interpretação do art.º 119.º do CPTA em conexão com matéria de regulamento eleitoral.
A questão a apreciar pode ocorrer em moldes semelhantes em casos futuros, e a circunstância de essa repetibilidade se antever escassa, atentas as especificidades do contexto em que se coloca, não claudicam, ainda assim, a relevância objectiva que a mesma reveste no contexto geral do contencioso eleitoral e da aplicação do art.º 119.º do CPA.
Pode assim concluir-se que o interesse suscitado pela presente revista transcende objectivamente os das partes e preenchem a exigência de importância fundamental da questão jurídica e social em causa.
III – Decisão:
Nos termos antecedentes, em aplicação do art.º 150.º n.ºs 1 e 5 do CPTA, acordam em admitir o recurso de revista.
Sem custas, nesta fase.
Lisboa, 14 de Janeiro de 2010. – Rosendo Dias José (relator) – José Manuel da Silva Santos Botelho - Maria Angelina Domingues.