Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0389/18
Data do Acordão:05/03/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Descritores:REVISTA
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
RESPONSABILIDADE CIVIL
INDEMNIZAÇÃO
Sumário:A apreciação dos pressupostos da responsabilidade civil é uma questão juridicamente relevante pelo que a intervenção do Supremo Tribunal Administrativo pode contribuir para a elaboração de padrões de apreciação de casos semelhantes.
Nº Convencional:JSTA000P23258
Nº do Documento:SA1201805030389
Data de Entrada:04/16/2018
Recorrente:A...
Recorrido 1:CP - CAMINHOS DE FERRO PORTUGUESES, EPE
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Formação de Apreciação Preliminar da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

1. A………………. intentou, no TAC de Lisboa, contra CP – Caminhos de Ferro Portugueses, EP, acção administrativa comum pedindo que o condutor do veículo da ré fosse declarado o único culpado pelo acidente ferroviário que a vitimou e consequentemente, que a Ré fosse condenada a pagar-lhe uma indemnização que ressarcisse os danos físicos, materiais e morais daí decorrentes.

O TAC julgou a acção parcialmente procedente.

Autora e a Ré apelaram para o TCA Sul e este, concedendo provimento ao recurso da CP, julgou improcedente a acção, considerando prejudicada a apreciação do recurso da Autora.

É desse Aresto que a Autora vem recorrer (artigo 150.º/1 do CPTA).

II. MATÉRIA DE FACTO
Os factos dados como provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III. O DIREITO
1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o STA «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto como «válvula de segurança do sistema» para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos, pois, se tais requisitos se verificam in casu socorrendo-nos para isso da matéria de facto seleccionada no Acórdão recorrido.

2. A Autora propôs contra a CP a presente acção pedindo que o condutor do seu comboio fosse declarado o único culpado pelo acidente ferroviário ocorrido no dia ………., na …………, em Lisboa, por ter arrancado sem se certificar que as suas portas estavam fechadas e sem antes de ter sido dado qualquer sinal sonoro de partida. O que provocou que a autora se desequilibrasse e caísse à linha sofrendo danos físicos, materiais e morais computados no valor de € 500.500 e no valor que vier a ser liquidado em execução de sentença pelos danos referidos no artigo 96º da p. i., bem como no pagamento de juros desde a citação até integral pagamento, acrescidos da sobretaxa de 5% a título de sanção pecuniária compulsória, desde o trânsito em julgado da sentença e até integral pagamento.
O TAC de Lisboa julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou a ré a indemnizar a autora na quantia global de € 179.600, bem como no pagamento de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Autora e Ré apelaram para o TCA Sul e este, apreciando em primeiro lugar o recurso da Ré, concedeu-lhe provimento e julgou a acção improcedente. Daí que tivesse julgado prejudicado o recurso da Autora.
Para tanto ponderou o seguinte:
“….
Ora, destes factos não é possível retirar que o desequilíbrio da autora - e consequente queda e lesões sofridas - é imputável a um facto ilícito praticado pela ré ou pelos seus funcionários.
Com efeito, apenas se provou que, estando aberta a porta da carruagem por onde a autora subiu para o comboio, esta desequilibrou-se e caiu, sofrendo diversos ferimentos, o que só por si - isto é, desacompanhado da prova de qualquer outro facto [pois verifica-se que não se apurou a versão da autora nem da ré, quanto à dinâmica do acidente (cfr. maxime e factos n.ºs 2 a 5 e 32 a 34, elencados como não provados na sentença recorrida, correspondentes aos quesitos 3, 4, 6, 7 e 95 a 97 e acima transcritos), ficando por apurar os exactos termos em que se deu tal desequilíbrio, ou seja, se o mesmo ocorreu pela causa indicada pela autora, pela ré ou eventualmente por outra não inteiramente coincidente com qualquer das causas indicadas pelas partes] - não pode ser considerado como traduzindo a prática de um facto ilícito, isto é, como consubstanciando a violação de um dever objectivo de cuidado por parte da ré ou dos seus funcionários, pois apenas lhes é imputável a abertura da porta da carruagem, mas cabe sublinhar que, para os passageiros poderem entrar e sair das carruagens, as respectivas portas têm de estar abertas pelo que, nada mais se tendo provado, não se pode considerar que o facto de a porta da carruagem se encontrar aberta viola qualquer dever objectivo de cuidado ou que é a causa do desequilíbrio da autora, pelo que tem de se concluir que a sentença recorrida errou ao julgar em sentido diverso.
Efectivamente, na sentença recorrida considerou-se que existe nexo de causalidade adequada entre a actuação da ré e o evento danoso, já que o risco criado pela falta de aviso para não subir para o comboio e pelo facto de ser possível o início da marcha do comboio com as portas da carruagem abertas, o que sucedeu, é, em abstracto, susceptível de provocar o evento danoso, ou seja, levar a que as pessoas subam para os comboios mesmo quando sabem que estão atrasadas em relação à hora da partida e ocorram quedas para a linha.
…..
Ora, da factualidade dada como provada nada resulta no sentido de que a autora subiu para o comboio quando este já estava em andamento - pressuposto em que assenta a sentença recorrida - pois, como acima salientado, apenas se apurou que, estando aberta a porta da carruagem por onde a autora subiu para o comboio, esta desequilibrou-se e caiu …. o que só por si - isto é, desacompanhado da prova de qualquer outro facto - não pode ser considerado como traduzindo a prática de um facto ilícito ou de um facto que tenha sido a causa do desequilíbrio da autora.
Ora, não sendo possível imputar à ré qualquer facto ilícito, nem de um facto que tenha sido a causa do desequilíbrio da autora (e da consequente queda e danos que sofreu), terá de ser concedido provimento ao recurso interposto pela ré, revogada a sentença recorrida e, consequentemente, julgada totalmente improcedente a presente acção, pois cabia à autora o ónus de provar os pressupostos da responsabilidade civil - concretamente o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo causal -, os quais são de verificação cumulativa, pelo que a falta de prova de qualquer deles resolve-se contra ela, nos termos do art. 342º n.º 1, do Código Civil.

Dito por outras palavras, não se podendo imputar à ré qualquer facto ilícito que tenha sido a causa do desequilíbrio da autora (e da consequente queda e lesões sofridas), fica prejudicado o conhecimento do pressuposto relativo à culpa…. .

3. Está em causa nesta revista a apreciação dos pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos relacionados com as lesões sofridas pela Autora quando pretendia aceder a uma das carruagens do comboio onde viajaria, questionando-se se os respectivos requisitos da ilicitude, culpa e nexo causal se encontram preenchidos.
As questões relacionadas com a responsabilidade civil extra contratual revestem, muitas vezes, relevância jurídica e social suficientes para merecer a admissão da revista. Relevância essa que, no caso, é evidente.
Com efeito, estão em causa as graves consequências resultantes da queda da Autora ao pretender entrar num comboio e a identificação do responsável por essa queda. Actividade em que as instâncias divergiram já que o TAC atribuiu essa responsabilidade à Ré por ter concluído que esta “não logrou provar que fez tudo o que devia fazer e estava ao seu alcance para evitar o acidente, ou seja, não logrou elidir de todo a presunção de culpa que sobre si recaía” e, por outro lado, que o facto, em abstracto, era suficiente para produzir o dano pelo que existia nexo de causalidade entre a actuação da ré e o evento danoso.

Entendimento que o TCA contrariou por considerar que “da factualidade dada como provada nada resulta no sentido de que a autora subiu para o comboio quando este já estava em andamento - pressuposto em que assenta a sentença recorrida - pois, como acima salientado, apenas se apurou que, estando aberta a porta da carruagem por onde a autora subiu para o comboio, esta desequilibrou-se e caiu …. o que só por si …. não pode ser considerado como traduzindo a prática de um facto ilícito ou de um facto que tenha sido a causa do desequilíbrio da autora.”
O que significa que as instâncias interpretaram de modo inteiramente contraditório os factos assentes na M.F. O que é juridicamente relevante e central na apreciação concreta da responsabilidade civil pelo acidente dos autos.
Sendo assim, e sendo que, no caso, a decisão que se pede neste recurso envolve a apreciação de questões de significativa relevância jurídica e social encontram-se reunidos os requisitos da sua admissão.
Decisão
Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em admitir a revista.
Sem custas.

Lisboa, 3 de Maio de 2018. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – São Pedro.