Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01342/17
Data do Acordão:06/06/2018
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL
CRÉDITOS VENCIDOS APÓS DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA
BENS PENHORADOS
BENS PENHORÁVEIS
Sumário:A instauração da execução fiscal por créditos vencidos posteriormente à declaração de falência, como são os créditos exequendos, encontra expresso apoio legal no disposto no n.º 6 do artigo 180.º do CPPT, preceito que há-de ser, contudo, interpretado razoavelmente, atenta a unidade do sistema jurídico, no sentido de que só será viável o prosseguimento dos processos de execução fiscal por créditos vencidos após a declaração de falência se forem penhorados bens não apreendidos naquele processo.
Nº Convencional:JSTA000P23391
Nº do Documento:SA22018060601342
Data de Entrada:11/24/2017
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:A... E FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam os juízes da secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:


O MINISTÉRIO PÚBLICO, inconformado, interpôs recurso da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria (TAF de Leiria) datada de 23 de Dezembro de 2016, que julgou procedente a oposição deduzida por A……………, à execução instaurada pelo Serviço de Finanças do Entroncamento, com o nº 2020201201015664, para cobrança coerciva de dívidas relativas a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares de 2008, no valor total de € 10.328,78.
Alegou, tendo apresentado conclusões, como se segue:
1. É possível a instauração de novas execuções fiscais após a declaração de insolvência, sendo que para créditos vencidos anteriormente deverá a execução ser sustada de imediato e avocada pelo tribunal Judicial;
2. Para cobrança, de créditos vencidos após a declaração de insolvência a execução prosseguirá, mas apenas se forem penhorados bens não apreendidos no processo de insolvência, tendo-se em atenção as obrigações decorrentes da prescrição.
3. Ao julgar extinta a execução em virtude de os créditos em causa não terem sido reclamados no processo de insolvência, a douta sentença recorrida violou o disposto no art. 180º nº 6 do CPPT (sendo que a dívida exequenda se reporta a IRS de 2008, tendo a respectiva liquidação sido emitida em 2012 e a insolvência da oponente sido declarada em 2011).
4. Pelo que a douta sentença deverá ser revogada e substituída por outra que determine a prossecução da execução (com a limitação acima mencionada em termos de bens passíveis de penhora), conhecendo ainda dos restantes, vícios invocados pela oponente, os quais não foram conhecidos e que deverão improceder, nos termos constantes do parecer pre-sentencial elaborado.

Contra-alegou a recorrida A……………., da seguinte forma:
1.º A Recorrida alegou três fundamentos na sua impugnação:
A. Prescrição por falta de liquidação dentro do prazo;
B. Falta de proveito comum do casal;
C. Falta de reclamação de créditos na insolvência.
2.° A Meritíssima Juiz apenas apreciou um dos fundamentos e deu razão à impugnante não necessitando de prosseguir.
3.º A matéria dada como provada é a que foi indicada pela recorrente.
4.º A questão que se levanta é de direito.
5.º Vem o Ministério Público dizer que a execução, ao contrário do decidido, pode prosseguir.
6.º Pode sobre bens não apreendidos no processo de insolvência.
7.º Ora esta é uma questão nova.
8.° Durante todo o processo e durante a execução foi levantada a questão de bens não apreendidos.
9.º Nem existem.
10.º Pois, foram declarados insolventes ambos os executados.
11.º A insolvência abrange todos os bens.
12.° Não tendo levantado a questão no processo, não pode agora o Ministério Público vir ao processo com esta questão.
13.º O recurso não pode servir para resolver questões novas.
Conclusões:
A. O Recorrente levanta uma questão nova, que não pode ser atendida.

Colhidos os visto legais cumpre decidir.

Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte factualidade concreta:
A. Em 26.05.2008, a Oponente, A……………, e B………….. apresentaram a declaração de rendimentos modelo 3 de IRS, na qualidade de casados, declarando, no respectivo Anexo G, a alienação, pelo valor de € 166.490,00 do prédio urbano, inscrito na matriz sob o art. 7219, e, no campo 504, que pretendiam reinvestir a totalidade do valor de realização sem recurso ao crédito;
B. Em 19.02.2009, foi homologado o divórcio por mútuo consentimento da Oponente e B………………..;
C. Em 28.09.2011, foi proferida sentença, no âmbito do processo n.° 1477/11.4TVNO, que correu termos no 1.° Juízo do Tribunal Judicial de Ourém, declarando a insolvência da Oponente, tendo sido fixado o prazo de 30 dias para a reclamação de créditos;
D. Em 02.08.2012, foi emitida a demonstração da liquidação de IRS, referente a 2008, tendo a mesma sido remetida para a morada de B………………;
E. Em 20.09.2012, foi instaurado no Serviço de Finanças do Entroncamento, em nome da Oponente e ex-marido, o processo de execução fiscal n.° 2020201201015664, proveniente de dívida de IRS, de 2008, no valor de € 10.328,78;
F. Através de ofício datado de 07.01.2013, foi no âmbito do PEF referido na alínea antecedente, citado C………………, na qualidade de Administrador da Insolvência da Oponente;
Nada mais se deu como provado.

Há agora que conhecer o recurso que nos vem dirigido.
Tal como vem delineado o recurso que nos é dirigido, pretende-se afirmar que ocorreu um erro de julgamento na sentença recorrida uma vez que o crédito exequendo venceu-se após a declaração de insolvência pelo que não estaria relacionado com a insolvência propriamente dita, podendo, por isso, a execução prosseguir contra a executada aqui oponente, mas incidindo apenas sobre bens que não devessem estar integrados no dito processo de insolvência, nos termos do disposto no artigo 180º, n.º 6 do CPPT - o disposto neste artigo não se aplica aos créditos vencidos após a declaração de falência ou despacho de prosseguimento da acção de recuperação da empresa, que seguirão os termos normais até à extinção da execução.
Ou seja, o crédito exequendo não tem relação com a declaração de insolvência e o respectivo processo judicial e por essa razão é que o processo de execução deverá prosseguir a sua normal tramitação sem as limitações e impedimentos resultantes dos n.ºs. 1 a 5 daquele artigo 180º.
Discorda a recorrida alegando que se trata de uma questão nova que nunca foi levantada no processo e por isso não pode ser conhecida no presente recurso.

Começando pela argumentação da recorrente podemos afirmar que não se trata de questão nova, como bem se surpreende da sua petição inicial, artigos 18º a 20º, a recorrente já coloca a questão ao afirmar que a dívida teve origem em 2008, antes da declaração da sua insolvência, pelo que a Fazenda Nacional devia tê-la reclamado no respectivo processo de insolvência, não o tendo feito precludiu o seu direito.
Foi precisamente esta a questão que foi decidida na sentença recorrida, a de saber se a execução fiscal de que estes autos são apenso pode ou não prosseguir relativamente ao imposto liquidado em 2012, ainda que referente a 2008, e qual a repercussão que essa mesma execução fiscal pode ter nos bens apreendidos no processo de insolvência.
Concluímos, assim, que não se trata de questão nova a suscitada pelo recorrente, trata-se precisamente da questão suscitada pela recorrida na petição inicial e que foi decidida na sentença recorrida.
Improcede, portanto, esta questão.

Relativamente à questão decidida na sentença recorrida surpreende-se, efectivamente, que a mesma foi decidida em sentido contrário ao da jurisprudência deste Supremo Tribunal, bem como em desrespeito do disposto no artigo 180º, n.º 5 do CPPT.
Sobre a mesma escreveu-se, entre outros, no acórdão datado de 06.04.2011, recurso n.º 0981/10:
Da possibilidade de, após declaração de insolvência, ser instaurada e prosseguir execução fiscal para cobrança de dívida respeitante a facto tributário anterior àquela declaração (IRC de 2005), embora liquidada e vencida após a declaração de insolvência
A sentença recorrida, a fls. 73 a 79 dos autos, julgou não provada e improcedente a oposição deduzida, por considerar aplicável ao caso dos autos o disposto no n.º 6 do artigo 180.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), pois que embora o facto gerador da dívida exequenda respeite ao ano de 2005 (IRC de 2005), resulta das matérias assente que (…) no dia 6 de Julho de 2009, na sequência de uma acção inspectiva, foi praticado acto de liquidação adicional, relativo a IRC do exercício de 2005, no valor de 18.503,25 €, sendo que a obrigação de pagamento do imposto venceu-se após o termo do prazo para pagamento voluntário, donde resulta estar-se no âmbito do n.º 6 do artigo 180.º do CPPT que (…) afasta o regime da suspensão e da avocação do processo executivo aos processo de insolvência quanto aos créditos vencidos após a declaração de insolvência, razão pela qual a Administração Fiscal não só podia, quanto ao imposto devido na sequência da liquidação adicional, praticado em 6 de Julho de 2009, instaurar a execução fiscal, como seguir os seus trâmites normais (cfr. sentença recorrida a fls. 77 e 78 dos autos).
Discorda do decidido a recorrente, alegando que, em face do artigo 128.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), se a Fazenda Nacional pretendia que o seu crédito fosse liquidado tinha de o ter reclamado no processo de insolvência, o que não sucedeu, pois que o crédito em causa constitui, nos termos do artigo 47.º do CIRE, uma dívida da insolvência uma vez que o seu fundamento é anterior à data da declaração de insolvência, pelo que deveria ter sido reclamada no processo de insolvência, para aí, e apenas no âmbito desse processo, poder ser liquidada, à semelhança do que aconteceu com os demais credores da Recorrente, não podendo a Fazenda, como reiteradamente faz, apresentar liquidações à Recorrente referentes a dívidas respeitantes a datas anteriores à sua declaração de insolvência.
Mais alega que, ao contrário do determinado na sentença de que se recorre, ao processo de insolvência não se aplicam preceitos contidos no CPPT (cfr. as conclusões das alegações de recurso supra transcritas).
Vejamos.
A alegada inaplicabilidade do disposto no artigo 180.º do CPPT ao processo de insolvência apenas poderia resultar do facto de este preceito legal se haver de ter como tacitamente revogado (pois que o não foi expressamente) aquando da entrada em vigor do CIRE (em 15 de Setembro de 2004, nos termos do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto), por incompatibilidade do disposto neste Código com o prescrito no n.º 6 do artigo 180.º do CPPT.
Não o entendemos assim, contudo, antes se entende, com JORGE LOPES DE SOUSA (Código de Procedimento e de Processo Tributário: Anotado e Comentado, II volume, 5.ª ed., Lisboa, Áreas Editora, 2007, pp. 232/233, nota 7 ao art. 180.º do CPPT), estar-se perante um regime especial para os processos de execução fiscal, pois que só pode entender-se que uma lei geral revoga uma lei especial quando for detectável uma intenção inequívoca do legislador nesse sentido, como impõe o n.º 3 do artigo 7.º do Código Civil, o que não sucede neste caso.
Ora, estando o n.º 6 do artigo 180.º do CPPT em vigor e tendo ele por objecto específico os créditos vencidos após a declaração de falência ou despacho de prosseguimento da acção de recuperação (ou, no âmbito do CIRE, da declaração de insolvência a que se referem os artigos 28.º e 36.º do CIRE, ex vi do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março), é este preceito legal aplicável, e, ao abrigo do que nele se dispõe, há-de reconhecer-se que a instauração da execução fiscal por créditos vencidos posteriormente à declaração de falência, como são os créditos exequendos em causa nos presentes autos (cfr. os números 1 a 4 do probatório fixado na sentença recorrida e supra transcrito), encontra expresso apoio legal no disposto no n.º 6 do artigo 180.º do CPPT, que estabelece, em derrogação ao disposto nos números anteriores do mesmo artigo, que: «O disposto neste artigo não se aplica aos créditos vencidos após a declaração de falência ou despacho de prosseguimento da acção de recuperação da empresa, que seguirão os termos normais até à extinção da execução».
Observe-se contudo que, embora a lei diga expressamente, relativamente às situações contempladas no n.º 6 do artigo 180.º do CPPT, que (os processos) seguirão os termos normais até à extinção da execução, propõe JORGE LOPES DE SOUSA (op. cit. p. 233), no que tem sido acompanhado pela jurisprudência deste Tribunal (cfr. Acórdãos de 24/10/2001, rec. n.º 26.344, de 15/11/2006, rec. n.º 625/06 e de 12 de Novembro de 2009, rec. n.º 102/09, Ac. de 14/4/2010, rec. n.º 51/10) que «(…) deverá entender-se este seguimento em consonância com as normas do CPEREF e do CIRE, sob pena de se abrir a porta à possibilidade de se inutilizar todo o esforço de recuperação da empresa e de satisfação equilibrada dos direitos dos credores que se visa com estes processos especiais, o que seria uma solução manifestamente desacertada, atentos os fins de interesse público e social estão subjacentes àqueles», pelo que «(…) a interpretação razoável daquele n.º 6, que se compagina com a unidade do sistema jurídico, que é o elemento primacial da interpretação jurídica (artigo 9.º, n.º 1 do Código Civil), é a de que só será viável o prosseguimento dos processos de execução fiscal por créditos vencidos após a declaração de falência ou insolvência ou do despacho de prosseguimento da acção de recuperação da empresa se forem penhorados bens não apreendidos naqueles processos de falência ou recuperação ou insolvência».
E é este o entendimento que também aqui adoptamos, em conformidade com a jurisprudência citada, pelo que há-de concluir-se que falece razão ao recorrente quando considera no caso dos autos não poder ser instaurada e prosseguir a execução fiscal. Esta pôde ser instaurada e prosseguir em conformidade com a lei, embora sofra restrições no que toca à penhora de bens, só podendo ser apreendidos bens não apreendidos no processo de falência.
É certo que, como alega o recorrente, o n.º 1 do artigo 47.º do CIRE considera credores da insolvência, uma vez decretada esta, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração (…). Não obstante, porque a reclamação de créditos implica a prova documental da existência dos mesmos, não seria possível reclamar na insolvência um crédito - como o dos autos - relativo a imposto ainda não liquidado nessa data (neste sentido RUI DUARTE MORAIS, A Execução Fiscal, Coimbra, Almedina, 2005, p. 208) e que apenas o foi alguns anos depois.
Não tem, pois, razão a recorrente, quando alega relativamente ao crédito exequendo que se a Fazenda Nacional pretendia que o seu crédito fosse liquidado tinha de o ter reclamado no processo de insolvência. É que o crédito em causa, referindo-se embora a IRC de 2005, apenas foi liquidado em 2009, não sendo por isso, na prática, possível reclamá-lo antes e sendo lícito à Administração fiscal liquidá-lo nessa data, pois que ainda não se esgotara o prazo legal de que dispunha para o liquidar (cfr. o artigo 45.º da Lei Geral Tributária).
E não estando o crédito liquidado, não teria como ser reclamado no processo de insolvência, nem poderia vencer-se em momento anterior a essa liquidação.

Não havendo agora razão, de facto ou de direito, para alterar este entendimento, e aplicando o mesmo à concreta situação dos autos podemos concluir que se fez um errado julgamento da questão que foi decidida na sentença recorrida, pelo que, a mesma não se pode manter.

Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, em:
- conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida;
- julgar improcedente a questão suscitada pela recorrida nos artigos 18º a 20º da petição inicial;
- ordenar a baixa dos autos ao Tribunal a quo para que conheça das restantes questões suscitadas na oposição.
Custas pela recorrida.
D.n.

Lisboa, 6 de Junho de 2018. – Aragão Seia (relator) – Dulce Neto – Pedro Delgado.