Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0870/17
Data do Acordão:09/14/2017
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Descritores:INTIMAÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P22220
Nº do Documento:SA1201709140870
Data de Entrada:07/10/2017
Recorrente:MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA FORMAÇÃO DE APRECIAÇÃO PRELIMINAR DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:


I. RELATÓRIO.
A…………….., intentou, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (doravante TAC), contra o Ministério da Educação, acção de intimação para consulta de processos ou passagem de certidões, pedindo a consulta integral e completa do processo do concurso a que se referia o Aviso n.º 4870/2016, publicado no DR, 2.ª Série, de 12/04/2016 sem ocultação, em quaisquer documentos, da identidade dos candidatos.
Aquele Tribunal julgou improcedente essa pretensa, absolvendo da instância o Réu.

O Autor apelou para o TCA Sul e este concedeu provimento ao recurso.

É desse acórdão que a Entidade Requerida vem recorrer ao abrigo do disposto no artigo 150.º/1 do CPTA.

II.MATÉRIA DE FACTO
Os factos dados como provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III.O DIREITO

1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos, pois, se tais requisitos se verificam in casu socorrendo-nos para isso da matéria de facto seleccionada no Acórdão recorrido.

2. O TAC indeferiu a pretensão da Requerente pela seguinte ordem de razões:
“… Tanto no direito à informação procedimental como no direito à informação não procedimental está sempre em causa, em último termo, o acesso à informação na posse ou detidas em nome das entidades abrangidas pelo âmbito subjectivo de aplicação da Lei n.º 26/2016, nos termos do seu art.º 4º, com a diferença de que no direito à informação não procedimental a lei ordinária e a Constituição acentuam o suporte da informação, qualquer que ele seja [art.ºs 1º, n.º 1, 3º, n.ºs 1, al. a) a e), e 2, entre outros, da Lei n.º 26/2016, 104º, n.º 1, do CPTA e 268º, n.º 2, da Constituição, que fala em “direito de acesso aos arquivos e registos administrativos”].
No caso em pauta, a informação que a Requerente pretende, e solicitou, respeita a um concreto procedimento administrativo em curso, pendente – a saber: o concurso para o cargo de director de serviços da Direcção de Serviços dos Recursos Humanos e Formação, no qual a Requerente é candidata - pelo que se trata de uma informação procedimental, cujo acesso é regulado pelos art.ºs 82º a 85º do CPA (…)
Com o conteúdo e as restrições apontadas, o acesso à informação procedimental é extensivo a quaisquer pessoas que não sejam directamente interessados no procedimento, desde que provem ter nele interesse legítimo no conhecimento dos elementos que pretendam (art.º 85º, n.º 1, do CPA).

O direito à informação procedimental não abrange a informação que conste de documentos classificados ou que revelem segredo comercial ou industrial ou segredo relativo à propriedade literária, artística ou científica (art.º 83º, n.º 1, 2ª parte, do CPA), mas abrange os documentos relativos a terceiros, “sem prejuízo da protecção dos dados pessoais nos termos da lei” (n.º 2 do art.º 83º cit.), a qual se pode conseguir mediante a expurgação dos dados pessoais.
…..
Na circunstância, a Requerente pretende não só a “consulta” dos documentos do processo de concurso, mas também que lhe seja “comunicada” ou “posta à disposição” “toda a informação relativa ao mencionado concurso ….
Com semelhante extensão é inegável que a pretensão da Requerente, a ser satisfeita, envolve o acesso a dados pessoais dos outros candidatos, em relação aos quais a Requerente é “terceiro”, porquanto é pessoa singular que não é o titular desses dados pessoais [al. f) do art.º 3º da Lei n.º 67/98]. Ponto é saber se pelo só facto de ser terceiro lhe é vedado, em absoluto, isto é, em quaisquer circunstâncias, o acesso aos dados em questão.
A este propósito o art.º 6º da Lei n.º 67/98 determina que o tratamento de dados pessoais só pode ser efectuado, e portanto o tratamento não é proibido, em duas circunstâncias: (i) se o seu titular tiver dado de forma inequívoca o seu consentimento “ou” (ii) se o tratamento for necessário para realizar alguma das finalidades enumeradas nas várias alíneas do artigo, nomeadamente para “prossecução de interesses legítimos do responsável pelo tratamento ou de terceiro a quem os dados sejam comunicados, desde que não devam prevalecer os interesses ou os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados” [al. e) do art.º 6º cit.].
Donde resulta que ao terceiro interessado no acesso cabe o ónus de invocar e provar o consentimento inequívoco do titular dos dados ou justificar o carácter legítimo do seu interesse no acesso aos dados pessoais (visto que uma coisa e outra não se presumem) e ao responsável pelo tratamento deles o ónus de demonstrar na decisão que indefira o pedido do requerente que os interesses ou os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados prevalecem sobre os do requerente – tudo ónus que devem ser cumpridos por esta ordem lógica.
Compulsados o requerimento pelo qual a Requerente solicitou o acesso bem como o ofício de notificação à Requerente da autorização de acesso a apenas parte da informação pretendida, verifica-se que nenhuma das partes cumpriu o respectivo ónus nos termos acabados de assinalar, pelo que a Autoridade Requerida, apesar de tudo, não podia ter deferido o pedido. Com efeito, a decisão da Autoridade Requerida, tomada sem que fosse demonstrada a prevalência dos interesses ou dos direitos, liberdades e garantias dos titulares dos dados pessoais em questão, só seria relevante, e susceptível de ser censurada, se a Requerente, cumprindo, por sua vez, o respectivo ónus, tivesse demonstrado que a sua pretensão de acesso, enquanto terceiro, aos dados pessoais contidos nos documentos que solicitou era justificada à luz das normas legais aplicáveis.

O Autor apelou para o TCA Sul e este concedeu provimento ao recurso pelas razões que se seguem:
“… A recorrente defende que a sentença recorrida incorreu em erro ao julgar improcedente o pedido de intimação, pois:
1) A Lei 67/98, de 26/10, não tem aplicação nos procedimentos concursais quando o acesso aos documentos for da iniciativa dos candidatos, com excepção das notações da avaliação psicológica que, no caso, em apreciação não teve lugar;
2) Só o acesso aos documentos do concurso - sem ocultação da identidade dos candidatos - lhe permitirá exercer o direito de impugnar qualquer decisão que tenha sido tomada relativamente ao concurso.
Desde já se adianta que improcede a argumentação descrita em 1), mas procede a indicada em 2), conforme de seguida se demonstrará.
O recorrido facultou à recorrente …. documentação relativa ao procedimento concursal aberto pelo Aviso n.º 4870/2016, publicado no Diário da República, 2ª Série, de 12/02/2016, para o cargo de director de serviços de Gestão de Recursos Humanos e Formação, da Direcção-Geral da Administração Escolar, designadamente as fichas de avaliação curricular e das entrevistas, e na qual foi ocultada a identificação - maxime o nome - dos candidatos, com excepção da identificação relativa à própria recorrente.
A recorrente defende que tal anonimização não tem aplicação nos procedimentos concursais quando o acesso aos documentos for da iniciativa dos candidatos, como é o caso, em que a informação foi solicitada pela recorrente enquanto candidata no procedimento concursal em causa (com excepção das notações da avaliação psicológica que no caso em apreciação não teve lugar), mas sem razão.
…..
As definições legais de dados pessoais não esclarecem em que casos se considera que uma pessoa está identificada. Evidentemente, a identificação exige elementos que descrevam uma pessoa de forma a distingui-la de todas as outras e de a tornar reconhecível enquanto indivíduo. O nome de uma pessoa é um exemplo perfeito desse tipo de elementos descritivos. Em casos excecionais, outros elementos de identificação poderão produzir o mesmo efeito que um nome. Por exemplo, no caso das figuras públicas, poderá ser suficiente mencionar o cargo da pessoa (por ex., Presidente da Comissão Europeia).” (sublinhado e sombreado nossos)];
….
Ora, pretendendo a recorrente ter acesso, através de consulta, à identificação – maxime ao respectivo nome - dos outros candidatos, está em causa o tratamento [acesso] de dados pessoais [maxime do nome] por terceiro [concretamente pela recorrente], pois a recorrente não é a titular desses dados, sem prejuízo de ser directamente interessada – isto é, candidata - no procedimento concursal em causa.
…..
Deste normativo legal decorre que a recorrente poderá ter acesso à identificação dos restantes candidatos se:
- tais candidatos tiverem dado, de forma inequívoca, o seu consentimento, ou
- tal acesso for necessário para a prossecução de interesses legítimos da recorrente, desde que não devam prevalecer os interesses ou os direitos, liberdades e garantias de tais candidatos.
Ora, no caso sub judice nada se provou no sentido de que os restantes candidatos deram o seu consentimento a que a recorrente tivesse acesso à sua identificação, sendo certo que sobre a recorrente recaía o ónus da prova desta condição de legitimidade (cfr. art. 342º n.º 1, do Cód. Civil).
De todo o modo, encontra-se preenchida a segunda condição de legitimidade acima descrita.
Efectivamente, a recorrente tem direito a impugnar designadamente a decisão final do procedimento concursal ora em causa - aberto pelo Aviso n.º 4870/2016, publicado no Diário da República, 2ª Série, de 12 de Abril de 2016, para o cargo de director de serviços de Gestão de Recursos Humanos e Formação, da Direcção-Geral da Administração Escolar - (cfr. art. 268º n.º 4, da CRP), mas só poderá exercer de forma efectiva tal direito, melhor dizendo, só poderá ponderar de forma esclarecida se vai ou não impugnar o concurso em causa se tiver acesso à identificação dos outros candidatos, pois, caso contrário, poder-se-á tornar impossível ou, pelo menos, muito difícil detectar eventuais erros existentes nas razões invocadas para fundamentar a decisão final [sem o conhecimento da identidade dos outros candidatos pode ser impossível ou, pelo menos, muito difícil, por exemplo, conjugar os juízos de valor exarados nas respectivas fichas de avaliação curricular com os correspondentes currículos, e, em consequência, detectar eventuais erros].
Acresce que inexistem interesses ou direitos, liberdades e garantias dos restantes candidatos que prevaleçam sobre o interesse legítimo da recorrente no acesso a tal identificação.
Pelo exposto, deverá ser concedido provimento ao presente recurso jurisdicional, revogando-se a sentença recorrida e, em consequência, intimada a Directora-Geral da Direcção-Geral da Administração Escolar a facultar à recorrente a consulta do procedimento concursal em causa sem ocultação da identificação dos restantes candidatos, no prazo de 10 dias úteis, a contar do trânsito em julgado do presente acórdão (cfr. arts. 108º n.º 1 e 160º n.º 1, ambos do CPTA, na redacção do DL 214-G/2015, de 2/10, tal como as demais referências feitas ao CPTA neste acórdão, e art. 87º, al. c), do CPA de 2015), sob pena de, não o fazendo, poder incorrer em responsabilidade civil, disciplinar ou criminal e ser-lhe aplicada a sanção pecuniária compulsória prevista no art. 169º, do CPTA.”.

3. É desse acórdão que a Entidade Requerida vem recorrer, ao abrigo do disposto no artigo 150.º/1 do CPTA, alegando estar em causa a questão de saber se um candidato a um “procedimento concursal, referente a um cargo de direcção intermédia de 1.º grau da Administração Pública, tem direito à consulta de todo o procedimento concursal, sem ocultação da identificação dos restantes candidatos, apesar de no requerimento apresentado para esse efeito, não ter cumprido o ónus de justificar o caractér legítimo do seu interesse no acesso aos dados pessoais dos restantes candidatos.” Questão que era de importância jurídica e social fundamental.

4. No presente recurso está em causa o acesso à informação administrativa.
As instâncias, como se acabou de ver, proferiram decisões contraditórias sobre a essa matéria.
Deste modo, atenta a sua relevância jurídica e a importância social dessa questão, é muito importante saber o entendimento do Supremo Tribunal Administrativo sobre a mesma, isto é, sobre a latitude dos direitos dos cidadãos no acesso à informação em poder da Administração sobretudo, como é o caso, quando se sabe que essa informação pode ser decisiva para o exercício do seu direito impugnatório.
Justifica-se, pois, a admissão do recurso não só pela relevância jurídica da questão como pela sua utilidade, que ultrapassa o caso sujeito.
Decisão
Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em admitir a revista.
Sem custas.

Lisboa, 14 de Setembro de 2017. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – São Pedro.