Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0697/14
Data do Acordão:12/07/2016
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:FONSECA DA PAZ
Descritores:ACÇÃO PARA RECONHECIMENTO DE DIREITO
ZONA NON AEDIFICANDI
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Sumário:I - A Lei n.º 13/85, de 6/07, que, no seu art.º 23.º, n.º 3, assegurava aos proprietários de imóveis abrangidos por zonas “non aedificandi” para protecção de bens classificados o direito de requererem ao Estado a sua expropriação, foi revogado pela Lei n.º 107/2001, de 8/09, que substituiu o regime legal existente por outro mais exigente ou com requisitos mais onerosos.
II - A norma da Lei n.º 107/2001 que dispôs sobre o conteúdo de servidão administrativa já constituída na data do seu início de vigência, modelando os direitos dos proprietários abrangidos pelas zonas “non aedificandi” com abstracção dos factos que lhe deram origem, é aplicável a todas as servidões que subsistiam quando ela entrou em vigor.
III - Não pode proceder a acção para reconhecimento de um direito, intentada em 28/5/2003, onde é peticionada a condenação do R., ao abrigo do art.º 23.º, n.º 3, da Lei n.º 13/85, a emitir despacho a declarar a utilidade pública da expropriação de um prédio rústico parcialmente incluído em zona “non aedificandi” de protecção à “Estação Eneolítica de Leceia”, uma vez que os AA. não são titulares de um direito adquirido na vigência daquela Lei insusceptível de ser prejudicado por ulteriores alterações legislativas não retroactivas.
Nº Convencional:JSTA00069946
Nº do Documento:SA1201612070697
Data de Entrada:06/12/2014
Recorrente:SE DA CULTURA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAC LISBOA
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR ADM GER.
DIR ADM GER - SERVIDÃO ADMINISTRATIVA.
Legislação Nacional:LPTA ART106 ART69 ART70.
DL 329-A/95 ART6.
L 13/85 ART23 N3.
L 107/2001 ART50 N2.
DEC 45327 DE 1963/10/25.
CPC ART611.
CCIV66 ART12.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC036327 DE 1997/12/11.
Referência a Doutrina:J C VIEIRA DE ANDRADE - JUSTIÇA ADMINISTRATIVA (LIÇÕES) 1998 PÁG113-114.
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA - MANUAL DE PROCESSO ADMINISTRATIVO 2010 PAG9.
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA - ANULAÇÃO DE ACTOS ADMINISTRATIVOS E RELAÇÕES JURÍDICAS EMERGENTES 2002 PÁG669 PÁG717-719.
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:


1. O Ministro da Cultura, inconformado com a sentença do TAC de Lisboa que julgou parcialmente procedente a acção de reconhecimento de direito contra ele intentada por A……………. e B……………, dela recorreu para este tribunal, formulando, na respectiva alegação, as seguintes conclusões:
“1.ª) Na presente acção, os autores pediram a condenação do réu a ser-lhes reconhecido o direito de requerem a expropriação do imóvel de que são proprietários e a condenação do mesmo réu a emitir despacho a declarar a utilidade pública da mesma expropriação;
2.ª) Na presente acção foi emitida douta sentença declarando-se o reconhecimento judicial dos autores a requererem ao Estado, através do réu, a expropriação de parte do imóvel de que são proprietários, nos termos previstos no art.º 23.º, n.º 3, da Lei n.º 13/85, de 6/7;
3.ª) Acontece, porém, que a referida Lei n.º 13/85 está revogada pela Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro;
4.ª) A Lei em vigor – a referida Lei n.º 107/2001 – ao invés da Lei anterior, condiciona a expropriação de imóveis situados em zona de protecção de bens classificados (como é o caso de parte do imóvel dos autores) a que os mesmos prejudiquem a boa conservação dos bens culturais ou desvirtuem as suas características ou enquadramento (art.º 50.º n.º 2), sendo que nenhum desses pressupostos está presente no caso em julgamento;
5.ª) A douta sentença recorrida considerou, no entanto, ser aplicável a Lei n.º 13/85, na medida em que, quando foi delimitada a zona “non aedificandi”, abrangendo parte do imóvel dos autores, era essa a lei em vigor;
6.ª) Tal entendimento não toma em consideração que a emissão dos atos administrativos se rege pelas normas em vigor no momento em que são praticados, independentemente da natureza das situações a que se reportam e das circunstâncias que precedem a adoção das medidas;
7.ª) De igual modo, a apreciação do pedido feito pelos autores, independentemente dessas anteriores circunstâncias e das contingências de todo o procedimento, tem que ser aferido com base na lei em vigor;
8.ª) A não ser assim, além da violação do princípio “tempus regit actum”, teremos o réu a emitir um ato administrativo – o da utilidade pública da expropriação – com base em legislação já revogada;
9.ª) De notar, ainda, que, com base na lei anterior e com base no estabelecimento de zona “non aedificandi”, os autores não passaram a ser titulares de qualquer situação constituída;
10.ª) A douta sentença ao reconhecer o direito dos autores à expropriação com base em lei revogada é ilegal.”
Os recorridos contra-alegaram, tendo enunciado as conclusões seguintes:
“A) Quanto à questão prévia:
a) O presente recurso interposto pelo réu/recorrente Ministro da Cultura (agora Secretário de Estado da Cultura) é extemporâneo, porquanto tendo a douta sentença sido notificada às partes em 17.02.2014, e sendo o prazo de recurso de 20 dias (art.º 106.º da LPTA) a alegação do recurso do recorrente deveria ter sido apresentada até ao dia 10.03.2014, quando muito, com multa, até 13.03.2014;
b) Admitindo-se – por mera hipótese académica – que o prazo em questão fosse de 30 dias, ainda assim terminaria em 19.03.2014, ou em 24.03.2014, no 3.º dia com multa;
c) Nunca em 31.03.2014, data em que o recorrente apresentou a sua alegação em juízo, sendo o recurso, assim, manifestamente extemporâneo, devendo V.Exas. revogar o despacho de admissão do recurso, de fls., e em consequência julgar deserto o mesmo, ordenando o desentranhamento da alegação do recorrente.
B) Quanto ao fundo:
a) À cautela sempre dirão os AA./Recorridos que a lei aplicável ao caso submetido à apreciação de V.Exas. é a Lei n.º 13/85, conforme doutamente decidido nos pontos 3.3 e 3.4 da sentença recorrida, como referido no ponto II do corpo da presente alegação que se dá por reproduzido, conforme deverão decidir igualmente V.Exas.”.
O digno magistrado do Ministério Público junto deste Supremo emitiu parecer, onde concluiu que o recurso merecia provimento, por a lei aplicável à pretensão formulada em juízo pelos AA. ser a Lei n.º 107/2001 e não a Lei n.º 13/85.
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

2.1. A matéria de facto pertinente é a que foi considerada provada pela sentença recorrida, a qual se dá aqui por reproduzida, nos termos do n.º 6 do art.º 663.º do C.P.Civil.

2.2.1. Nas suas contra-alegações, os recorridos suscitaram a questão prévia da deserção do recurso, com o fundamento que a alegação do recorrente foi apresentada extemporaneamente, devendo, por isso, ser desentranhada.
Mas não têm razão.
Efectivamente, como resulta do art.º 5.º, n.º 1, da Lei n.º 15/2002, de 22/2, que aprovou o CPTA, as disposições deste diploma não se aplicam aos processos que se encontram pendentes à data da sua entrada em vigor (1/1/2004), motivo por que os presentes autos, instaurados em 28/5/2003, são regulados pela LPTA, aprovada pelo DL n.º 267/85, de 16/7.
Ora, de acordo com os artºs. 106.º, da LPTA e 6.º, n.º 1, al. e), do DL n.º 329-A/95, de 12/12, o recorrente dispunha do prazo de 30 dias para apresentação das alegações, a contar da data em que foi notificado do despacho de admissão do recurso.
Nestes termos, considerando-se o recorrente notificado do aludido despacho em 10/3/2014 (cf. fls. 241 dos autos), mostra-se tempestiva a apresentação das suas alegações, ocorrida em 31/3/2014.
Improcede, pois, a arguida questão prévia.

2.2.2. Os AA., alegando serem proprietários do prédio rústico denominado “………….”, com a área de 2120 m2, e que, em 23/9/85, se procedera à delimitação da zona “non aedificandi” da “Estação Eneolítica de Leceia”, incluindo na zona serviente uma faixa de 640 m2 daquele prédio, pediram, na acção que intentaram, ao abrigo do art.º 23.º, n.º 3, da Lei n.º 13/85, de 6/7, a condenação do R. a emitir despacho a declarar a utilidade pública da expropriação da totalidade do identificado prédio.
A sentença recorrida, começando por apreciar a questão de saber qual a legislação aplicável à situação sob litígio, entendeu que esta se regia pelo disposto na Lei n.º 13/85, “por ser a lei vigente à data em que uma parcela do prédio dos AA. foi incluída em zona non aedificandi de protecção à referida Estação Eneolítica de Leceia”. E uma vez que essa inclusão, em 1985/86, passou a constituir uma servidão administrativa, desde esse momento assistia aos AA. o direito de requererem ao Estado a expropriação da aludida parcela. Julgou, assim, a acção parcialmente procedente, declarando “o reconhecimento judicial do direito dos AA. a requererem ao Estado (através do Réu), nos termos previstos no art.º 23.º/3 da Lei n.º 13/85, de 6 de Julho, a expropriação da parcela de terreno de 640 m2, abrangida, nos termos do mapa anexo à Portaria n.º 470/86, publicada no DR, I Série, de 27/8/86, na referida zona non aedificandi de protecção à Estação Eneolítica de Leceia, a desanexar do prédio dos AA. acima identificado”.
Contra este entendimento, o recorrente, no presente recurso, alega que a situação em apreço se rege pela Lei n.º 107/2001 – que revogou a Lei n.º 13/85 –, a qual, no seu art.º 50.º, n.º 2, condiciona a expropriação de imóveis situados em zona de protecção de bens classificados à verificação de um prejuízo para a boa conservação de bens culturais ou ao desvirtuamento das suas características ou enquadramento. Não ocorrendo nenhuma destas condições e porque os AA. não eram titulares de situações jurídicas constituídas – que dependiam da emissão do acto de expropriação – conclui que a sentença deve ser revogada, por a Lei n.º 107/2001 não lhes conferir o direito peticionado.
Vejamos se lhes assiste razão.
Resulta da matéria fáctica provada que a “Estação Eneolítica de Leceia” foi classificada como imóvel de interesse público pelo Dec. n.º 45327, publicado no DG de 25/10/63, tendo a Câmara Municipal de Oeiras procedido à delimitação em planta da zona “non aedificandi” para “protecção da área de interesse arquitectónico” que foi homologada por despacho do Ministro da Cultura de 23/9/85. Tendo a zona serviente atingido o prédio dos AA. numa área de 640 m2, estes, em 6/4/94, requereram, ao Presidente da Câmara Municipal de Oeiras, a expropriação da totalidade do seu prédio. Após o Secretário de Estado da Administração Local e do Ordenamento do Território ter, por despacho de 10/4/97 (publicado no DR de 22/5/97), declarado a utilidade pública da expropriação de sete parcelas de terreno, onde se incluía a dos AA. com a área de 640 m2 e ter sido elaborado o relatório de peritagem, a Câmara Municipal de Oeiras desistiu da expropriação, motivo por que o referido Secretário de Estado, pela Declaração n.º 337/98 (publicada no DR de 10/11/98), revogou o seu anterior despacho e os AA. vieram requerer, em 7/4/2000, ao Ministro da Cultura, a expropriação da totalidade do seu prédio.
O contencioso das acções para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido, reguladas nos artºs. 69.º e 70.º da LPTA, é de jurisdição plena, sendo possível nele serem proferidas, além de sentenças meramente declarativas, decisões de efeitos condenatórios, constitutivos ou até executivos (de suprimento ou substituição) – cf. J. C. Vieira de Andrade in “Justiça Administrativa (Lições)”, 1998, págs. 113 e 114 e Ac. do STA de 11/12/97 – Proc. n.º 36327.
Nos processos de impugnação de actos administrativos, o juiz está vinculado pelo princípio “tempus regit actum”, dado que, se o que se discute é a validade desses actos, deve esta ser apreciada de acordo com os factos existentes e o direito vigente no momento em que são praticados. Esta vinculação é, assim, consequência do objecto do processo se definir por referência ao acto administrativo, cuja anulação, nulidade ou inexistência é pedida.
Tal vinculação já não se verifica nos processos de plena jurisdição, onde o que está em causa não é apreciar a validade dum acto administrativo de acordo com os fundamentos em que se baseou por referência ao momento em que foi praticado, mas averiguar se, no momento em que o tribunal decide, estão preenchidos os elementos constitutivos da pretensão e não existem elementos impeditivos, modificativos ou extintivos que lhe possam ser contrapostos” (cf. Mário Aroso de Almeida, in “Manual de Processo Civil”, 2010, pág. 91). Por isso, nestes processos, deve o juiz, nos termos do art.º 611.º, do CPC, tomar em consideração as superveniências relevantes para a decisão em termos de facto e de direito, existentes no momento do encerramento da discussão, para averiguar se se constituiu um direito que deva ser reconhecido pela Administração.
Assim, nas acções para reconhecimento de um direito, a regra é a aplicação do direito superveniente à sua instauração. Porém, se o interessado for titular de uma situação jurídica que se constituiu em momento anterior, tornando-se um direito adquirido, não pode este ser afectado pela superveniência resultante da lei nova não retroactiva.
Este principio tem, contudo, excepções, como sucede com os actos administrativos que devam ser qualificados como declarativos, por se limitarem a reconhecer uma situação jurídica que se constituiu anteriormente, bem como quando resulta da lei, sem margem para quaisquer dúvidas – para o que não basta a mera estipulação de um prazo de decisão – que os termos da situação devem ser impreterivelmente definidos em determinado momento, casos em que se deve aplicar o direito vigente naquele momento que corresponde ao do “preenchimento dos elementos constitutivos da situação jurídica”, ou por referência ao quadro jurídico existente na altura em que o acto teria obrigatoriamente que ser praticado (cf. Mário Aroso de Almeida, in “Anulação de actos administrativos e relações jurídicas emergentes”, 2002, págs. 669 e 717 a 719).
Portanto, pretendendo-se obter o reconhecimento de um direito conferido por uma norma que já não se encontra em vigor à data da instauração da acção respectiva, nem da prolação da sentença, a sua procedência depende de ele se ter constituído na vigência da lei anterior, correspondendo a um direito adquirido.
No caso em apreço, apesar de à data em que intentaram a acção (em 28/5/2003) já vigorar a Lei n.º 107/2001, os ora recorridos, invocando a Lei n.º 13/85, que por aquela havia sido revogada, pediram que lhes fosse reconhecido o direito conferido pelo art.º 23.º, n.º 3, quando estabelecia que “aos proprietários de imóveis abrangidos pelas zonas non aedificandi é assegurado o direito de requerer ao Estado a sua expropriação, nos termos das leis e regulamentos em vigor, sobre expropriações por utilidade pública”.
Embora a servidão administrativa já se encontrasse constituída à data do início de vigência da lei nova, esta, ao dispor sobre o conteúdo dessas servidões e ao modelar os direitos dos proprietários dos imóveis abrangidos pelas zonas “non aedificandi”, fê-lo sem olhar aos factos que lhe deram origem, sendo, por isso, aplicável a todas as servidões que subsistiam quando entrou em vigor (cf. art.º 12.º, n.º 2, 2.ª parte, do C. Civil).
Assim, a nova norma da Lei n.º 107/2001, que regulou de forma diferente os direitos dos proprietários dos imóveis abrangidos pelas zonas “non aedificandi” abstraindo do respectivo título constitutivo, passou a ser a aplicável, desde o início da sua vigência, ao conteúdo desse direito.
E não se pode afirmar, contra este entendimento, que os ora recorridos eram titulares de um direito adquirido na vigência da Lei n.º 13/85 que era insusceptível de ser prejudicado por ulteriores alterações legislativas não retroactivas. É que, sendo o facto constitutivo da situação jurídico-administrativa em causa o acto administrativo que deferisse a pretensão formulada pelos recorridos ao abrigo do citado art.º 23.º, n.º 3, a circunstância de esse acto não ter sido praticado, nem existirem elementos que permitam concluir, sem margem para dúvidas, que a situação teria de ser, impreterivelmente, definida num momento em que aquele preceito ainda vigorava, torna-os titulares de uma mera expectativa. Não beneficiavam eles, assim, de qualquer direito adquirido à sombra da Lei n.º 13/85 que obstasse à aplicação, desde a sua entrada em vigor, da Lei n.º 107/2001 que substituiu o regime legal existente por outro mais exigente ou com requisitos mais onerosos que passou a reger o conteúdo da servidão administrativa em questão.
Nestes termos, porque a procedência da acção dependia de, no momento da prolação da sentença, subsistir na esfera jurídica dos recorridos o direito conferido pelo art.º 23.º, n.º 3, da Lei n.º 13/85, que eles pretendiam ver reconhecido, terá de se conceder provimento ao presente recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida.

3. Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e julgando a acção totalmente improcedente.
Custas pelos ora recorridos em ambas as instâncias, fixando-se a taxa de justiça e a procuradoria em, respectivamente, €150,00 e €75,00 na 1.ª instância e em €250,00 e €125,00 neste Supremo.


Lisboa, 7 de Dezembro de 2016. – José Francisco Fonseca da Paz (relator) – Alberto Acácio de Sá Costa Reis – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.