Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:048423
Data do Acordão:04/10/2002
Tribunal:3 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:ADVOGADO.
INCOMPATIBILIDADE.
VEREADOR EM REGIME DE PERMANÊNCIA.
DISCRICIONARIEDADE IMPRÓPRIA.
Sumário:I - Em princípio, a legalidade material de um acto administrativo praticado no exercício de poderes vinculados afere-se de acordo com os pressupostos estabelecidos na lei, sendo irrelevante, para aquele efeito, que o acto tenha invocado um fundamento de direito que não suportava o seu sentido decisório.
II - No entanto, nos casos da chamada discricionariedade imprópria, existe um momento de interpretação ou avaliação que só à Administração compete realizar, de modo que, omitida por ela essa actividade, o tribunal não pode substituir-se-lhe e afirmar que o acto praticado, embora baseado num fundamento ilegal, continuava conforme ao que a lei impunha.
III - As funções de vereador de uma câmara municipal, em regime de permanência, não são integráveis na previsão do art. 69º, n.º 1, al. f), do EOA, pelo que se fundou num motivo ilegal o acto do Conselho Superior da Ordem dos Advogados que, baseando-se exclusivamente no sobredito preceito, declarou haver incompatibilidade entre o desempenho daquelas funções e o exercício da advocacia.
IV - A mencionada incompatibilidade também não emerge das demais alíneas do n.º 1 do art. 69º do EOA.
V - Se a mesma incompatibilidade pudesse discernir-se no disposto no art. 68º do EOA, a sua declaração pressuporia a prévia interpretação e aplicação «in concreto», a realizar pelos órgãos competentes da Ordem dos Advogados, da cláusula geral inserta nesse artigo.
VI - Não tendo o acto dito em III exercido a discricionariedade imprópria correspondente à determinação e aplicação da mencionada cláusula geral, ficou excluída qualquer possibilidade de o tribunal vir a afirmar que tal acto, ainda que fundado num motivo ilegal, tivera um sentido que estava em harmonia com a lei.
Nº Convencional:JSTA00057477
Nº do Documento:SA120020410048423
Data de Entrada:01/09/2002
Recorrente:CONSELHO SUPERIOR DA ORDEM DOS ADVOGADOS
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAC COIMBRA.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM GER - INCOMPATIBILIDADES.
Legislação Nacional:EOA84 ART69 N1 F ART68.
L 64/93 DE 1993/08/26 ART6 N2 NA REDACÇÃO DA L 12/98 DE 1998/02/24.
Jurisprudência Nacional:AC STA DE 1989/06/27 PROC21262.; AC STA DE 1990/04/24 PROC26903.; AC STA DE 1993/06/08 PROC31832.; AC STA DE 1993/06/29 PROC30946.; AC STA DE 1998/04/29 PROC35534.; AC STA DE 2000/06/05 PROC44462.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:
O Conselho Superior da Ordem dos Advogados interpôs recurso jurisdicional da sentença do TAC de Coimbra que, concedendo provimento ao recurso contencioso deduzido pelo Dr. A..., anulou o acórdão em que aquele órgão, negando provimento a um recurso hierárquico, incidente sobre a deliberação do Conselho Geral da mesma Ordem em que se havia indeferido o pedido do Dr. A... de cancelamento da suspensão da sua inscrição na Ordem dos Advogados, decidira que o facto de o recorrente desempenhar, em regime de permanência, as funções de vereador de uma câmara municipal era incompatível com o exercício da advocacia.
O ora recorrente terminou a sua alegação de recurso, enunciando as conclusões seguintes:
1 – A norma do art. 69º do EOA é meramente exemplificativa; a confirmar esta tese, estão a letra e o espírito que informou o texto do art. 68º e o próprio título que o encima – «Âmbito das Incompatibilidades» – o que denuncia o propósito do legislador em definir, em geral, as actividades consideradas incompatíveis com o exercício da advocacia.
2 – O legislador introduziu no art. 68º do EOA os princípios e os critérios a que deve obedecer toda e qualquer declaração de incompatibilidade, para além das especificadas no art. 69º: só serão incompatíveis com o exercício da advocacia as actividades ou funções que diminuam a independência e a dignidade da profissão.
3 – “O art. 68º do EOA enuncia um preciso quadro legal de incompatibilidade do exercício da advocacia, exercitável «a se» pelos órgãos competentes da Ordem dos Advogados, para além das incompatibilidades fixadas no n.º 1 do art. 69º, que, como se demonstrou, assume natureza meramente exemplificativa” (cfr., neste sentido, o Ac. do STA de 21/10/99, rec. n.º 44.401).
4 – Não estando incluída no elenco exemplificativo do art. 69º a incompatibilidade entre os cargos de vereador de câmara municipal a tempo inteiro e a de advogado, cabe à Ordem dos Advogados apreciar a situação concreta de incompatibilidade, por força da norma do art. 68º do EOA. Ora,
5 – O exercício simultâneo das profissões de advogado e de vereador de câmara municipal a tempo inteiro não é admissível, por força do preceituado no art. 68º do EOA, que define os princípios fundamentais e os valores éticos exigidos à prática da advocacia.
6 – A incompatibilidade entre as duas funções emerge do facto de o cargo de vereador de câmara municipal, a tempo inteiro, ser um cargo político de notória influência, relevância social e manifesta visibilidade externa, que retira ao seu titular os atributos de independência e de dignidade que o exercício das funções da advocacia exigem; o advogado tem de ser e parecer independente e digno.
7 – As incompatibilidades previstas no art. 68º do EOA são legítimas constitucionalmente quando justificadas pela necessidade de preservar a independência e a dignidade da profissão do advogado; o prestígio da Ordem dos Advogados e da advocacia alicerça-se no prestígio dos seus membros; todas as profissões são disciplinadas, mas a advocacia merece um tratamento especial porquanto lida com direitos e interesses fundamentais dos cidadãos e das pessoas colectivas.
8 – A sentença recorrida, ao decidir no sentido em que decidiu, violou as normas dos artigos 68º e 69º do EOA.
9 – Deve o presente recurso ser julgado procedente e, em sua consequência, revogar-se a sentença recorrida porque o acto recorrido, a deliberação do plenário do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, que deliberou ser incompatível a profissão de advogado com o cargo de vereador a tempo inteiro de câmara municipal, indeferindo, em consequência, o pedido de cancelamento de suspensão da inscrição na Ordem dos Advogados, formulado pelo aqui recorrido, não padece de violação das normas citadas na sentença recorrida.
O recorrido contra-alegou, acabando por formular as conclusões seguintes:
A – O aqui recorrido defendeu e defende, no presente recurso, que o exercício do cargo de vereador não constitui incompatibilidade com o exercício da advocacia, mas tão só e apenas impedimento nas acções em que sejam partes os municípios, quer seja atento o disposto nos artigos 4º e 6º da Lei n.º 64/93 e 1º da Lei 12/98 face ao EOA, quer seja atento o EOA face às Leis 64/93 e 12/98.
B – Face ao disposto na al. f) do n.º 1 do art. 69º do EOA, não existe incompatibilidade entre o exercício do cargo de vereador de câmara municipal, a tempo inteiro ou em regime de permanência, e a advocacia.
C – Isto pela simples razão de que o art. 73º, n.º 2, al. c), do EOA dispõe expressa e inequivocamente:
“(Impedimentos para o exercício da advocacia)
(...) 2 – Estão impedidos de exercer o mandato judicial:
(...) c) Os vereadores nas acções em que sejam partes os municípios.”
D – Não obstante esta expressa consideração produzida na douta sentença recorrida, a verdade é que o recorrente, nas suas doutas alegações de recurso, pura e simplesmente omite qualquer referência ao citado preceito legal, bem como às considerações que sobre o mesmo fizeram, quer o recorrido, quer a douta sentença recorrida.
E – Se o vereador de uma câmara municipal estivesse impedido de forma absoluta de exercer a advocacia, ou seja, se essa situação estivesse contemplada pelo art. 69º do EOA, não faria sentido que, depois, o art. 73º criasse o impedimento relativo, para os vereadores, de exercerem o mandato judicial nas acções em que os municípios sejam partes.
F – O próprio legislador foi bem claro no próprio EOA: o exercício do cargo de vereador não constitui incompatibilidade com o exercício da advocacia, e tanto assim é que essa matéria foi retirada do art. 69º do EOA e passou a ter assento no art. 73º, em sede de impedimento relativo. Portanto, é absurdo pretender defender, como faz o recorrente, que um vereador para quem se prevê, expressamente, um impedimento relativo, esteja abrangido por um impedimento absoluto que aniquilaria à partida o relativo, por o absorver.
G – A própria Ordem dos Advogados, já no decurso do presente processo de anulação, veio a reconhecer o carácter não exemplificativo, mas sim taxativo, do elenco das incompatibilidades, quando, no seio da 3.ª Secção do V Congresso dos Advogados Portugueses, concluiu pela necessidade de “revisão do sistema de incompatibilidades com o exercício da advocacia e, bem assim, dos impedimentos com a prática de actos de advocacia, a efectuar em sede de alteração legislativa, consagrando critérios gerais e não indeterminados e com ressalva de direitos adquiridos, e de modo a torná-lo mais exigente e abrangendo outras situações, nomeadamente o desempenho de cargos políticos”.
H – Face ao disposto nos artigos 4º e 6º da Lei 64/93 e no art. 1º da Lei 12/98, face ao EOA, remete-se pura e simplesmente para os considerandos da douta sentença recorrida e logo se verá a sem razão do recorrente.
I – Face a tudo quanto se deixa exposto, só com a manutenção incólume da douta sentença recorrida se fará Justiça.
O Ex.º Magistrado do MºPº junto deste STA emitiu douto parecer no sentido do não provimento do recurso porque o recorrente não teria contrariado os fundamentos em que a sentença fez assentar a sua pronúncia anulatória.
A matéria de facto pertinente é a dada como provada na decisão «sub censura», que aqui se dá por integralmente reproduzida – como estabelece o art. 713º, n.º 6 do CPC.
Passemos ao direito.
O recurso contencioso dos autos tomou por objecto o acórdão da entidade aqui recorrente, produzido em 15/10/99, que negou provimento ao recurso hierárquico que o ora recorrido interpusera da deliberação do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, de 26/3/99. Esta última deliberação tinha-se pronunciado sobre um requerimento do recorrido, em que este, admitindo embora a sua qualidade de vereador de uma câmara municipal, em regime de permanência, dissera que tal não obstava ao exercício da advocacia e, por isso, pedira que fosse cancelada a suspensão, então vigente e resultante da anterior assunção desse cargo público, da sua inscrição na Ordem dos Advogados; mas a referida deliberação denegou o mencionado pedido, fazendo-o com o fundamento de que persistia uma incompatibilidade entre o exercício da advocacia e o desempenho daquelas funções de vereador.
Apesar de negar provimento ao sobredito recurso hierárquico, mantendo o sentido decisório adoptado pela entidade «a quo», o acórdão acometido no recurso contencioso não se apropriou, sequer «per relationem», da globalidade da fundamentação enunciada no acto hierarquicamente impugnado. Considerando que «a questão a resolver» era «de extrema simplicidade», o acórdão enfrentou-a por uma única perspectiva – a de a incompatibilidade em causa transparecer da mera conjugação do estatuído nos artigos 6.º, n.º 2, da Lei n.º 64/93, de 26/8 (na redacção originária, repristinada pelo art. 1º da Lei n.º 12/98, de 24/2), e 69º, n.º 1, al. f), do EOA; e foi apenas com base nesses dois preceitos que o mesmo acórdão veio a negar provimento ao recurso hierárquico, de modo que a pronúncia inserta no acto contenciosamente impugnado tinha, e tem, a sua latitude circunscrita a esse fundamento de direito.
O art. 6º do ETAF diz-nos que, por via de regra, «os recursos contenciosos são de mera legalidade e têm por objecto a declaração da invalidade ou anulação dos actos recorridos». Portanto, o recurso contencioso consiste no ataque feito a um acto existente e determinado, sendo o acto acometido tal e qual é; nessa medida, a avaliação acerca da legalidade do acto contenciosamente recorrido deve começar, e muitas vezes findar, pela exploração do seu efectivo conteúdo, a fim de se aferir se a fisionomia individual que o acto apresenta está, ou não, imune às críticas que no recurso lhe vêm dirigidas.
No entanto, casos há em que o conhecimento da legalidade do acto pode extravasar das razões nele acolhidas, impondo-se averiguar se o acto, apesar da constatada impotência dos motivos jurídicos que adoptou, não será legal à luz de fundamentos da mesma ordem que o seu autor não referiu. Este procedimento é inadmissível sempre que o acto haja exercido poderes discricionários com que se relacionem os fundamentos tidos por ilegais – já que o tribunal não pode substituir-se à Administração na enunciação dos juízos que a esta compita fazer; e por razões semelhantes, é ainda inaceitável que o tribunal supra o silêncio da Administração em todos os casos da chamada discricionariedade imprópria, pois a vinculação que a esta é inerente não prescinde de um momento interpretativo ou de avaliação que só à Administração cabe realizar. Ao invés, é imperioso aferir-se da legalidade do acto em função dos autênticos pressupostos legais nas demais situações correspondentes ao exercício de poderes estritamente vinculados, pois não seria aceitável que, com base num qualquer erróneo ou insuficiente fundamento de direito, se anulasse um acto que entretanto se averiguou deter o único sentido que a lei directa e necessariamente impunha (cfr., neste sentido, v.g., os acórdãos do STA de 27/6/89, rec. n.º 21.262, de 24/4/90, rec. n.º 26.903, de 8/6/93, rec. n.º31.832, de 29/6/93, rec. n.º 30.946, de 29/4/98, rec. n.º 35.534, e de 5/6/2000, rec. n.º 44.462).
Postas as anteriores considerações, retornemos ao caso vertente. Vimos atrás que o acto recorrido consubstanciara uma decisão de indeferimento de um recurso hierárquico, fundada numa incompatibilidade discernida nos artigos 6.º, n.º 2, da Lei n.º 64/93, de 26/8, e 69º, n.º 1, al. f), do EOA. Sendo assim, e posto que a exactidão de tais fundamentos de direito vinha questionada no recurso contencioso, ao tribunal «a quo» incumbia, ao menos em primeira linha, verificar se tais razões poderiam sustentar a estatuição incorporada no acto. E foi isso que o TAC de Coimbra precisamente fez, vindo a sentença anulatória a concluir que aqueles preceitos não constituíam fundamento bastante para que o acto contenciosamente impugnado tivesse decidido no sentido que perfilhou – o da existência de uma incompatibilidade entre o exercício da advocacia e o desempenho do cargo de vereador em questão, com o consequente indeferimento do recurso hierárquico interposto de um outro acto em que já se dissera haver tal incompatibilidade.
Seria de esperar que o núcleo do recurso jurisdicional interposto dessa sentença acometesse as razões em que ela se fundara. Mas não é isso que perpassa pela alegação do presente recurso, em que a decisão «a quo» se mostra sobretudo atacada de viés. Realmente, relendo o «corpus» da alegação e as conclusões que a culminaram, vê-se que o recorrente quis sobretudo persuadir que a incompatibilidade afirmada pelo acto existe à luz de um preceito – o art. 68º do EOA – que o mesmo acto não invocara e que, em bom rigor, não foi tomado em conta no discurso lógico que a sentença adoptou para concluir pela existência do vício invalidante. Daí que o Ex.º Magistrado do MºPº tenha dito que o recurso «sub judicio» não concretizou «um ataque pertinente e eficaz aos fundamentos em que assentou a sentença impugnada», o que redundaria no fracasso do presente meio impugnatório.
Esta posição do Digno Magistrado é algo excessiva. Por um lado, a última conclusão da alegação de recurso, ao incluir a denúncia de que a sentença errara no juízo que efectuou sobre a violação de lei determinante da anulação, contém uma crítica directa à decisão da 1.ª instância; e essa crítica, embora algo desfasada da orientação geral da alegação, não pode deixar de ser agora conhecida. Por outro lado, e mesmo que não existisse a conclusão 9.ª, restringindo-se então o recurso à defesa da legalidade do acto à luz do art. 68º do EOA, teria sempre de se ver até que ponto a declaração de incompatibilidade não envolveria o uso de poderes exclusivamente vinculados, por forma a determinar-se se continuava possível aferir da legalidade do acto à luz daquele art. 68º, invocado na alegação do presente recurso. Relembre-se que dissemos «supra» que, no domínio da actuação administrativa vinculada, os poderes de cognição do tribunal podem ir além dos fundamentos de que o acto recorrido explicitamente partiu; pelo que a afirmação do recorrente, de que o acto é legal por um motivo jurídico que ele não acolheu e que a sentença referiu mas não considerou relevante, sempre nos obrigaria a que apreciássemos se o acórdão contenciosamente recorrido correspondeu ao exercício de poderes vinculados e se estes eram susceptíveis de agora nos permitir dizer que o indeferimento do recurso hierárquico correspondeu a uma decisão correcta e merecedora de subsistir na ordem jurídica, embora por motivos legais diversos.
Nesta conformidade, teremos, «primo», de discernir se a sentença «sub censura» decidiu bem ao julgar ilegal o fundamento jurídico em que o acto fundou a incompatibilidade. Se concluirmos que a sentença resolveu correctamente esse ponto, veremos, «secundo», se é, ou não, possível apreciar a legalidade do acto à luz do mencionado art. 68º do EOA. E, só no caso de ocorrer essa possibilidade, é que passaremos, «tertio et ultimo», a essa nova perspectiva de avaliação da legalidade da deliberação que culminou o recurso hierárquico.
Vimos já que o acórdão contenciosamente recorrido fundara a incompatibilidade entre o exercício da advocacia e o desempenho das funções de vereador em regime de permanência no disposto nos artigos 6º, n.º 2, da Lei n.º 64/93, de 26/8, e 69º, n.º 1, al. f), do EOA; e que, a propósito desta questão fundamental, a sentença «a quo» disse que, de tais preceitos, não era possível extrair a incompatibilidade aludida, pelo que o acto enfermava da violação de lei resultante da ofensa daquelas normas.
Ora, podemos já adiantar que o Mm.º Juiz «a quo» decidiu bem a questão que se relacionava com aqueles artigos. A Lei n.º 64/93, de 26/8, estabeleceu «o regime jurídico de incompatibilidades e impedimentos de titulares de cargos políticos e altos cargos públicos» (art. 1º, n.º 1), dispondo, no seu art. 6º, referente aos «autarcas», o seguinte:
«1 – Os presidentes e vereadores de câmaras municipais, mesmo em regime de permanência, a tempo inteiro ou parcial, podem exercer outras actividades, devendo comunicá-las, quando de exercício continuado, quanto à sua natureza e identificação, ao Tribunal Constitucional e à assembleia municipal, na primeira reunião desta a seguir ao início do mandato ou previamente à entrada em funções nas actividades não autárquicas.
2 – O disposto no número anterior não revoga os regimes de incompatibilidades e impedimentos previstos noutras leis para o exercício de cargos ou actividades profissionais.»
A redacção deste art. 6º foi completamente alterada pela Lei n.º 28/95, de 18/8, passando o preceito a dispor que o exercício de outras actividades só continuava a ser possível para «os autarcas a tempo parcial». Contudo, a Lei n.º 12/98, de 24/2, veio eliminar esta última redacção e repristinar o texto originário do art. 6º da Lei n.º 64/93 (art. 1º), estabelecendo ainda que esta renovada solução seria aplicável aos vereadores de câmaras municipais «a partir do início do mandato resultante das eleições de 14 de Dezembro de 1997» (art. 2º) – sendo a um mandato deste género que se refere o problema posto nos autos.
Deste modo, quando o ora recorrido formulou o requerimento que veio a ser indeferido pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados, já fora reposta em vigor a redacção originária do art. 6º da Lei n.º 64/93, da qual resultava que a eventual existência de uma incompatibilidade entre o «status» de autarca e o de advogado só poderia sobrevir das normas definidoras do exercício da advocacia. E foi assim que o acto contenciosamente recorrido encarou o problema, vislumbrando a incompatibilidade em causa no estatuído na al. f) do n.º 1 do art. 69º do EOA.
Este artigo, que estabeleceu a «enumeração das incompatibilidades», estatui, no seu n.º 1, que «o exercício da advocacia é incompatível com as funções e actividades seguintes», as quais estão referidas em quinze alíneas, sendo que na f) se alude às funções de «presidente, excepto nas comarcas de 3.ª ordem, secretário, funcionário ou agente das câmaras municipais». Vê-se, assim, que o cargo de vereador, mesmo em regime de permanência, não está abrangido no texto da referida al. f). E deve acrescentar-se que não é possível interpretar extensivamente a alínea no sentido de nela incluir as funções inerentes àquele cargo. Há interpretação extensiva quando, a partir da menção legal de uma qualquer espécie, se ascende à consideração do seu género próximo, de modo a possibilitar-se a ulterior descida a outra espécie desse género, afinal também considerada «mente legislatoris». Mas, no que toca à redacção daquela alínea f), é temerário dizer-se que o legislador do DL n.º 84/84, de 16/3, que aprovou o EOA, disse nela menos do que pretendia dizer, pois não só restringiu a incompatibilidade a alguns presidentes de câmara, abstendo-se de a estender a todos, como não podia ignorar que nas câmaras municipais havia vereadores e que o art. 55º da Lei n.º 79/77, de 25/10, então vigente, contemplava mesmo a figura dos vereadores em regime de permanência.
Eis-nos perante a certeza de que o acto contenciosamente impugnado, ao fundar a sua estatuição no art. 69º, n.º 1, al. f), do EOA, lançou mão de um fundamento jurídico ilegal, porque incapaz de sustentar minimamente a decisão adoptada.
Mas a anterior conclusão não esgota a indagação a fazer – como acima dissemos. A definição de incompatibilidades profissionais, seja em que domínio for, corresponde a um desvio à regra da liberdade de acesso às profissões, regra essa que é estruturante de uma sociedade livre (cfr. o art. 47º, n.º 1, da Constituição). Por isso, tal definição haverá de estar juridicamente estabelecida «a priori», correspondendo a sua aplicação casuística ao exercício de poderes vinculados por parte da entidade competente para a enunciar. Portanto, temos ainda que ver se, apesar da estreita latitude do acto, o regime jurídico aplicável «in casu» tornava absolutamente certo que a incompatibilidade declarada existia realmente – ainda que fundada num preceito que o acto não referiu.
É patente que essa incompatibilidade não se depreende de nenhuma das demais alíneas do art. 69º, n.º 1, do EOA – como, aliás, vem admitido na conclusão 4.ª da alegação de recurso. Por isso mesmo, o ora recorrente sustenta que ela resulta do estabelecido no art. 68º do mesmo diploma – norma que, respeitando ao «âmbito das incompatibilidades», dispõe que «o exercício da advocacia é incompatível com qualquer actividade ou função que diminua a independência e a dignidade da profissão». Na óptica do recorrente, a enumeração das incompatibilidades, realizada no art. 69º do EOA, seria meramente exemplificativa; e o art. 68º constituiria a solução aberta que o legislador encontrou para se detectarem todos os demais casos de incompatibilidade por natureza que, derivando do dinâmico fluir da sociedade, não pudessem ser antecipadamente previstos.
Desta maneira, o recorrente tentou trazer para a discussão a «vexata quaestio» da natureza exemplificativa ou taxativa da enumeração constante do art. 69º, n.º 1, do EOA. Ora, e por antecipação, diremos já que não abordaremos esse problema, por a sua resolução ser inútil à decisão a tomar.
Expliquemo-nos melhor. Se aquela enumeração fosse taxativa, o presente recurso soçobraria, pois já atrás vimos que a incompatibilidade declarada pelo acórdão contenciosamente recorrido não se mostra prevista, ou na alínea f), ou em qualquer outra das alíneas do mesmo número e artigo. Assim, não haveria qualquer outro fundamento, distinto do invocado pelo acto, que impusesse ao órgão decidente, em termos rigorosamente vinculados, a declaração da incompatibilidade.
Admitamos agora que a referida enumeração era exemplificativa, como o recorrente sustenta. A ser assim, continuaria possível que a incompatibilidade entre as actividades em causa existisse, agora à luz do disposto no art. 68º do EOA. Contudo, se fosse exacto que este art. 68º tem o sentido que o recorrente lhe atribui, teríamos de nele vislumbrar uma cláusula geral que abarcasse todas as incompatibilidades possíveis e não expressamente previstas no artigo seguinte. Não se duvida que a actividade de interpretação e aplicação «in concreto» de cláusulas gerais corresponde a uma actuação vinculada, já que tal conduta se inclina a um único resultado possível; mas, sempre que aquela actividade interpretativa seja da competência de um órgão da Administração e tenha sido omitida por ele, os tribunais não podem substituir-se-lhe, enunciando, na vez do órgão, o juízo que fora silenciado. Aliás, o próprio recorrente, indo inconscientemente ao encontro do que acabámos de dizer, afirmou, na conclusão 4.ª da presente alegação de recurso, que «cabe à Ordem dos Advogados apreciar a situação concreta de incompatibilidade, por força da norma do art. 68º do EOA».
Portanto, e mesmo que o art. 68º pudesse ter sido convocado pelo aqui recorrente para decidir o recurso hierárquico no sentido que o órgão perfilhou, o certo é que tal não sucedeu. E, não tendo o recorrente ponderado o caso à luz daquele preceito, sempre estaria vedado ao tribunal contornar agora aquele omitido momento de avaliação e proceder, «motu proprio», à interpretação da cláusula geral inserta no art. 68º e à aplicação dela ao problema cuja resolução só ao órgão recorrente incumbia.
Nesta conformidade, seja a enumeração constante do art. 69º, n.º 1, do EOA, taxativa ou exemplificativa, recaímos sempre na conclusão de que, tendo em conta a fisionomia do acto recorrido e a latitude dos poderes de cognição do tribunal, era impossível que, no recurso contencioso dos autos, se viesse a decidir que o acto vinculado era legal por razões que extravasavam da sua fundamentação. E, assim sendo, o presente recurso jurisdicional está votado ao insucesso, por improcedência ou irrelevância de todas as conclusões da alegação respectiva, merecendo a sentença anulatória subsistir na ordem jurídica.
Nestes termos, acordam em negar provimento ao presente recurso e em confirmar a sentença recorrida.
Sem custas.
Lisboa, 10 de Abril de 2002
Madeira dos Santos - Relator
Isabel Jovita
Lopes de Sousa (vencido nos termos da declaração junta)
Voto de vencido
As incompatibilidades profissionais justificam-se pelo conteúdo de funções e não pelo título de quem as exerce.
Os Vereadores em regime de permanência, a tempo inteiro, só exercem funções próprias dos Presidentes da Câmara (por substituição ou por delegação de competências - artigo 44° n° 3, 52°, n° 2, 59° da LAL 84 e 57°, n° 3, 65°, n° 2, 69° nºs 1 e 2 da LAL 99) e, por isso, sendo como os Presidentes, pagos para o exercício de funções a tempo inteiro, valem em relação a eles as razões que justificam o impedimento dos presidentes.
Por isso, os vereadores a tempo inteiro, caberão por interpretação extensiva no conceito de "presidentes" que consta a al. f) do artigo 69° do EOA, o que me parece particularmente claro nas situações em que há impedimento prolongado do presidente em exercício (como sucede nos casos de suspensão).
Pelo exposto, damos provimento ao recurso.
Jorge de Sousa