Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:07/22
Data do Acordão:06/01/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
TRIBUNAIS JUDICIAIS
DIREITO DE PROPRIEDADE
Sumário:A competência para conhecer de acções em que se discute a titularidade do direito de propriedade sobre imóvel cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais.
Nº Convencional:JSTA000P29499
Nº do Documento:SAC2022060107
Data de Entrada:02/21/2022
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA MADEIRA, JUÍZO CENTRAL CÍVEL DO FUNCHAL JUIZ 1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DO FUNCHAL
AUTOR: A……… E OUTRA
RÉU: REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 7/22

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A………. e mulher B………., identificados nos autos, intentaram no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Central Cível do Funchal, acção comum contra a Região Autónoma da Madeira, formulando os seguintes pedidos:
a) ser declarado que os Autores são os donos e os legítimos proprietários dos prédios referidos e identificados nas alíneas A), B) e C) do artigo 1º da petição inicial;
b) Ser a Ré condenada no reconhecimento dessa declaração;
c) Ser declarado que há vários anos, para efeitos da construção da Escola Básica dos 2º e 3º Ciclos de ………, a Ré ocupou os três identificados imóveis, situação que se mantém até ao dia de hoje;
d) Ser declarado que dos três identificados prédios, os autores foram indemnizados pela ré, apenas com o montante de €24.784,79 (…), correspondente ao valor de uma área de terreno com duzentos e oitenta e sete metros, que foi retirada da verba identificada pela letra C, do artigo primeiro, desta petição;
e) Ser a Ré condenada a restituir aos autores, os três identificados imóveis, com a actual descrição, totalmente livres de pessoas e bens;
f) Ser a Ré condenada a indemnizar os autores por todos os prejuízos que estes sofreram por causa da ocupação levada a efeito por aquela, contabilizados pelo menos desde o ano de dois mil e treze, até hoje, devendo a liquidação dos mesmos ser feita em execução de sentença, pois nesta data, não é possível saber por quanto tempo vai continuar o comportamento abusivo da demandada;
se assim não for entendido por este tribunal, pelo facto dos prédios em causa já terem entrado no domínio público, então,
g) deve a Ré ser condenada a indemnizar aos Autores, pela ocupação e apropriação dos três prédios referidos e identificados nas alíneas A), B) e C) do artigo 1º desta petição… ”.
Em síntese, alegam ser proprietários e legítimos possuidores dos prédios rústicos identificados no art. 1º da petição inicial (p.i.). Mais alegam que a Ré ocupou, sem título que o justifique esses prédios, com excepção de uma parcela de um dos prédios (o identificado com a letra C), com a área de 287m, que os AA. cederam à Ré.

Em 17.05.2021, no Juízo Central Cível do Funchal – Juiz 1, foi proferida decisão a julgar o tribunal incompetente em razão da matéria para apreciação e julgamento da acção intentada, absolvendo a Ré da instância [cfr. fls. 119 a 125 dos autos].
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal (TAF de Funchal), a requerimentos dos Autores, foi aí proferida decisão em 17.12.2021 a declarar a incompetência em razão da matéria para conhecer do objecto dos autos, absolvendo a Entidade Demandada da instância [cfr. fls. 130 a 134 dos autos].
Suscitada a resolução do conflito negativo de jurisdição foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 11º da Lei n.º 91/2019 e nada disseram [sendo que os Autores já haviam requerido a remessa a este Tribunal por requerimento de 18.01.2022 – fls. 136].
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a competência material para julgar a acção deverá ser atribuída ao Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Central Cível do Funchal.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Central Cível do Funchal e o Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal.
Entendeu o Juízo Central Cível do Funchal estar perante um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa por “ Face ao alegado pelos autores e ao regime exposto conclui-se, pois, que competente para as questões suscitadas é o tribunal administrativo, enquadrando-se a presente situação no artigo 4º nº 1, alínea. j) do ETAF e do artigo 2º, n.º 2, al. i) do CPTA, na redação dada pelo DL 214-G/2015 de 2/10.”.
Por sua vez o TAF do Funchal também se considerou incompetente em razão da matéria, além do mais, citando para o efeito jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos, referindo que,(…), perante o pedido e a causa de pedir formulados pelos Autores e independentemente de a Entidade Demandada ser uma pessoa coletiva de direito público, conclui-se que a presente ação versa sobre direito reais, não possuindo natureza administrativa, mas privatística.
Com efeito, inexiste no ETAF uma norma que atribua a competência aos Tribunais Administrativos e Fiscais para apreciar este tipo de causa, em que se discute se o direito real invocado pelo dominus existe e se é oponível à Entidade Demandada.
Esta conclusão não é posta em causa pelo facto de ser cumulado um pedido de indemnização pelos prejuízos que os Autores sofreram com a ocupação dos prédios ou, ressalvando a hipótese de se entender que os mesmos já entraram no domínio público, uma indemnização pela sua ocupação ou apropriação.
Nem se diga enquadrável nas als. i) e j) do artigo 4.º, n.º 1 do ETAF.
De facto, não se trata de uma ação que vise a remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime (ou a remoção de uma atuação ilegal da Administração).” (fundando-se o ac. deste Tribunal dos Conflitos de 23.05.2019, Proc. nº 048/18).

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [arts. 211º, nº 1, da CRP; 64º do CPC e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [artigos 212º, nº 3, da CRP, 1º, nº 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais está concretizada no art. 4º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção do DL nº 214-G/2015, de 2 de Outubro, que atendendo à data da propositura da acção, é a que aqui releva) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário pacífico, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a mesma é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Analisados os termos e o teor da petição inicial constata-se estarmos perante um litígio cuja causa de pedir se situa no âmbito dos direitos reais, invocando os Autores serem de sua propriedade os prédios em causa nos autos, visando os AA., para além do reconhecimento da sua propriedade, alegando factos que visam demonstrar a titularidade do seu direito de propriedade sobre os prédios em causa, que consideram ter sido violado pela Ré, ser indemnizados por todos os prejuízos sofridos devido à ocupação levada a efeito pela Ré. Esta, por sua vez, contrapõe, a tal pretensão do reconhecimento do direito de propriedade que adquiriu esses terrenos aos Autores ainda antes de os mesmos terem registado a propriedade a seu favor com fundamento na existência de usucapião.
Ora, a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais (cfr. Acs. de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc.º 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18 e de 23.01.2020, Proc. 041/19, todos consultáveis in www.dgsi.pt).
No acórdão de 23.05.2019, Proc. nº 048/19, em situação equiparável à presente, expendeu-se o seguinte: «(…) Com a alteração promovida em 2015, o artigo 4.º n.º 1 do ETAF encontra-se agora estruturado como se de uma enumeração taxativa se tratasse, ainda que esta natureza de elenco fechado seja meramente aparente, por força da “cláusula aberta” constante da alínea o), determinando a extensão da jurisdição às “relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”.
(…)
Com a reforma de 2015, a al. i), do nº 1 do art. 4º do ETAF passou a atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar litígios que tenham por objeto questões relativas a “condenação à remoção de situações constituídas em via de facto sem título que as legitime”. (…)
Com a referida previsão normativa procurou-se dar resposta às dúvidas que então se suscitavam quanto a saber se o julgamento das situações de «via de facto» competia aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais, ficando com a revisão de 2015, assegurado que “o pedido de restabelecimento de direitos ou interesses violados a que se refere a al. i) do nº 1, do art. 37º, do ETAF pode ser deduzido, não apenas para obter a remoção de efeitos produzidos por atos administrativos ilegais, mas também para reconstituir a situação jurídica que deveria existir, na sequência de operações materiais praticadas pela Administração sem título que o legitime (v. Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, pág. 259).
(…) Poderá também colocar-se a questão de saber se os litígios relativos à apreciação de uma “apropriação irregular”, cuja diferença face à “via de facto” é apenas de grau de gravidade que se reconhece à ilegalidade subjacente à intervenção da entidade pública, ficaram, com a revisão de 2015, no domínio dos tribunais administrativos.
Neste conflito, que somos chamados a dirimir, discute-se precisamente se a nova alínea i) do art. 4º, nº 1 do ETAF abrange, ou não as ações reais como a dos autos, em que a controvérsia se centra primacialmente no reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, face à atuação de uma entidade administrativa alegadamente ofensiva do direito de propriedade invocado pelo autor.
Importa, consequentemente, trazer à colação o disposto no art. 9º do CC, onde se prescreve que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº 1), não podendo, no entanto, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2).
Ora, nesta tarefa interpretativa, partindo da letra da lei e convocando quer o elemento histórico, quer o elemento racional ou teleológico, nos termos já supra aludidos, afigura-se-nos que a norma em causa deve ser interpretada no sentido de atribuir a competência aos tribunais administrativos para as ações em que a competência apenas está em causa a remoção de atuações ilegais da Administração.
Se, porém, se discutir a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em questão, a competência continua a caber à jurisdição comum.»
Ora, é precisamente esta a situação dos autos, pelo que a competência para conhecer do objecto do litígio cabe aos Tribunais Judiciais (cfr. art. 64º do CPC).

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca da Madeira - Juízo Central Cível do Funchal, Juiz 1.
Sem custas.

Lisboa, 1 de junho de 2022. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.