Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:022/21
Data do Acordão:12/15/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO.
PROVIDÊNCIA CAUTELAR.
Sumário:Incumbe aos tribunais judiciais o julgamento de uma providência cautelar em que se discute a titularidade do direito de propriedade sobre um terreno.
Nº Convencional:JSTA000P28704
Nº do Documento:SAC20211215022
Data de Entrada:06/14/2021
Recorrente:A…………. E OUTROS NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE AVEIRO — JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE ALBERGARIA-A-VELHA — JUIZ 2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE AVEIRO
RECORRIDO: B………… — EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA
Recorrido 1:*
Votação:
UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 22/21

Acordam no Tribunal dos Conflitos


1. Relatório
A…………, C………… e D………… requereram no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha, providência cautelar de Embargo de Obra contra B…………, Lda [P. nº 285/21.9T8ALB].
Alegaram, em síntese que, são donos e legítimos proprietários de prédio urbano confinante com obra em construção sita na Rua do ………, em Albergaria-a-Velha, a qual está a ser realizada pela Requerida, em terreno que confina com a sua propriedade. E que a Requerida, com tal construção violou “(…) grosseiramente TODAS as regras de construção, de licenciamento”, e que tal construção “(…) viola pois de forma flagrante, direta e irreversivelmente o legítimo direito de propriedade, Art. 62.º C.R.P, e Artº 1302.º e ss do Código Civil, de que nomeadamente os aqui REQUERENTES são titulares”.
Pedem que a Requerida seja condenada a reconhecer os Requerentes como donos e legítimos proprietários do prédio em causa e “(…) a proceder DE IMEDIATO à paragem de todas as obras de construção e edificação naquele citado local de obra…”.

Por sentença de 21.04.2021, o Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha, Juiz 2, considerou que “(…) no caso em apreço está em causa a tutela de direitos fundamentais bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo e decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo das disposições do direito administrativo…”, e, julgou “(…) verificada a excepção de incompetência absoluta, em razão da matéria, deste tribunal, pelo que declaro a sua incompetência material (art. 96.º e 97.º do CPC)…”, absolvendo a requerida da instância.

Em processo cautelar de “embargo de obra” posteriormente intentado, nos termos e com os fundamentos já apresentados ao tribunal judicial, os Autores requereram ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro (TAF de Aveiro), contra a mesma Requerida B…………, a paragem das obras por ofensa do seu direito de propriedade [P. nº 364/21.2BEAVR].

O TAF de Aveiro, por sentença de 11.05.2021, perante acção com as mesmas partes [Requerentes e Requerida], idêntica no seu objecto, causa de pedir e pedido, decidiu rejeitar “(…) liminarmente o requerimento de providência cautelar…”, por entender que “(…) as relações emergentes do presente litígio não constituem relações jurídicas administrativas, cujo litígio em concreto não deve ser dirimido pelos Tribunais Administrativos mas sim pelos Tribunais integrados na Jurisdição Comum, verificando-se a incompetência absoluta em razão da matéria”, impondo-se “(…) não a absolvição da instância, mas sim a rejeição liminar do requerimento inicial, nos termos do disposto no art. 116º nº 2 alínea f) do CPTA …”.

Na sequência desta decisão os Requerentes vieram requerer ao TAF de Aveiro, nos termos do disposto nos arts. 9º e 10º da Lei nº 9/2019, de 4/9, a remessa dos autos ao Supremo Tribunal Administrativo, para resolução do conflito negativo de competência por entenderem ter existido duas decisões sobre a mesma matéria, de tribunais e jurisdições distintos. No entanto, por despacho de 26.05.2021, o TAF de Aveiro julgou improcedente tal pedido, considerando terem sido instaurados dois processos distintos, “Inexistindo no âmbito do presente processo duas sentenças proferidas e transitadas em julgado que declinam a competência para o conhecimento do presente litígio, inexiste uma situação de conflito negativo de jurisdição, pelo que não se afiguram reunidos os requisitos de que depende o pedido de resolução oficiosa de conflito nos termos dos artigos 9.º e 10.º da Lei n.º 91/2019, de 04 de Setembro.”.

Face a este despacho, em 11.06.2021, por requerimento dirigido ao Supremo Tribunal Administrativo, os Requerentes pediram a resolução do conflito negativo de competência, entre os tribunais da jurisdição comum e da jurisdição administrativa que, perante a mesma matéria de facto e de direito, declinaram a respectiva competência em razão da matéria.

Ambas as decisões supra indicadas transitaram em julgado.

O processo foi remetido ao Tribunal dos Conflitos.

Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 11º da Lei n.º 91/2019.

A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da existência de um verdadeiro conflito de jurisdição, devendo ser atribuída a competência material para apreciar a presente providência cautelar aos tribunais judiciais, já que os Requerentes visam acautelar o seu direito de propriedade e salvaguardar, designadamente, a servidão de vistas e a desocupação do seu terreno, não se destinando a providência a impugnar um alegado acto administrativo que tenha sido deliberado por uma entidade administrativa ou levado a efeito a obra em causa, sendo uma acção instrumental de uma acção de defesa da propriedade, contra uma entidade privada.

2. Os Factos
Os factos com interesse para a decisão são os constantes do relatório.

3. O Direito
A primeira questão que se coloca é a de saber se perante a decisão do TAF de Aveiro de julgar improcedente o pedido de remessa dos autos ao Tribunal dos Conflitos para resolução do conflito negativo de competência se formou caso julgado formal, impedindo desse modo o conhecimento do conflito por este Tribunal dos Conflitos.


Entendemos que a resposta é negativa.
Com efeito, e tal como bem salienta a EMMP, o despacho do TAF de Aveiro, de 26.05.2021, negou apenas a possibilidade conferida ao juiz de suscitar oficiosamente a resolução do conflito (cfr. art. 10º, nº 1 da Lei nº 91/2019.
No entanto, o nº 2 do referido art.10º permite igualmente que a resolução do conflito possa ser pedida por qualquer das partes, mediante requerimento dirigido ao presidente do Supremo Tribunal a quem caiba, nos termos do nº 2 do art. 2º da Lei nº 91/2019, a presidência do Tribunal dos Conflitos – no caso os Requerentes pediram tal resolução à Exma Senhora Presidente do Supremo Tribunal Administrativo.
Ora, não há dúvida de que existe um verdadeiro conflito de jurisdição, uma vez que se está perante duas decisões transitadas em julgado, em acções distintas, mas com igual natureza (natureza cautelar), com a mesma identidade de objecto, de sujeitos, de causa de pedir e de pedidos, intentadas em tribunais de ordens jurisdicionais distintas.
Como se escreveu no ac. deste Tribunal dos Conflitos de 13.12.2018, Proc. nº 036/18 (consultável in www.dgsi.pt): «(…) os conflitos de jurisdição não dependem da identidade da causa – tantas vezes impossível – mas da identidade da questão opostamente resolvida», ali se concluindo que: «A ocorrência de conflitos de jurisdição não pressupõe a identidade da acção onde foram proferidas as declarações díspares de incompetência «ratione materiae», mas somente a identidade da questão objecto das pronúncias opostas – questão que deve ser encarada «in nuce», olhando-se o que se peticionou e porquê.».
No caso presente, ambos os tribunais acima indicados declinaram a sua competência para conhecer do litígio – providência cautelar intentada pelos Requerentes – atribuindo-a um ao outro, donde resulta o presente conflito (cfr. art. 109º, nº 1 do CPC).
Assim, contrariamente ao entendimento perfilhado pelo TAF, existe um conflito porque, ainda que intentada em tribunais diferentes, estamos perante a mesma acção, por existir dois processos com identidade de sujeitos, causas de pedir e pedidos.

Cabe, portanto, a este Tribunal dos Conflitos apreciar o conflito que se verifica.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [arts. 211º, nº1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” [arts. 212º, nº 3, da CRP, 1º, nº 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.

Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. nº 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.

Ora, tal como os AA. a configuram, estamos perante uma causa no âmbito dos direitos reais já que os requerentes alegam factos que visam acautelar o seu direito de propriedade sobre o prédio em causa, e salvaguardar os direitos àquele inerentes, designadamente a servidão de vistas e a desocupação do seu terreno, considerando ter o seu direito sido violado pela requerida com as obras que está a levar a efeito. Tal resulta claramente do requerimento do embargo de obra nova dos autores, na qual o direito de propriedade sobre uma coisa é alegado, considerando-se o mesmo ameaçado pela acção da Requerida na construção do prédio confinante (cfr. artigos 40º a 42, 44º, 49º, 53º e 54º do r.i.)
Assim, a pretensão principal que a requerente enuncia visa assegurar o seu direito de propriedade privada.
A jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais e, ainda que nestas acções se formulem, cumulativamente ou de forma subsidiária, pedidos indemnizatórios, estes não relevam para determinação da competência material do tribunal por serem decorrência da alegada violação do direito de propriedade. (cfr. Acs. de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc. 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18, de 23.01.2020, Proc. 041/19, de 02.03.2021, Proc. 5/20, todos consultáveis in www.dgsi.pt/).
Como se decidiu no ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 09.12.2009, Proc. nº 602/09.0TBBJA.E1: «O embargo de obra nova, como providência cautelar que é, visa apenas acautelar o efeito útil da acção que tenha por fundamento o direito, ofendido ou ameaçado do embargante. No que concerne à titularidade do direito, em sede de providência cautelar não é necessário que a prova produzida fundamente um juízo de certeza, bastando que permita formular um juízo de verosimilhança ou de forte probabilidade acerca dessa titularidade.».
A presente providência será seguida certamente da propositura de uma acção real, de reivindicação de propriedade. E, como tem sido reafirmado pelo Tribunal dos Conflitos, as providências cautelares têm de ser propostas nos tribunais que forem competentes em razão da matéria para julgar a causa principal de que aquelas são dependência (cfr. Ac. de 07.07.2009, Proc. 011/09 e de 08.03.2017, Proc. 034/16).
No caso em apreço estamos perante uma questão entre privados, sendo certo que as “ilegalidades” apontadas, apenas visam justificar a necessidade que os Requerentes sentem de impedir a continuação da obra confinante com o seu prédio. E mesmo a existirem “ilegalidades” são matéria a ser tratada em sede própria que não o processo cautelar.


Assim, a competência material para conhecer da presente providência cautelar de embargo de obra nova cabe à jurisdição comum (art. 64º do CPC).

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente providência cautelar a jurisdição comum [Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha, Juiz 2].
Sem custas.


Lisboa, 15 de Dezembro de 2021. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.