Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:010/23
Data do Acordão:11/15/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:É da competência dos Tribunais Judiciais julgar um litígio no qual se discute a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em questão.
Nº Convencional:JSTA000P31570
Nº do Documento:SAC20231115010
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DO PORTO - JUÍZO CENTRAL CÍVEL DA PÓVOA DO VARZIM – JUIZ 2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DO PORTO, JUÍZO ADMINISTRATIVO COMUM
AUTOR: AA E MARIDO BB
RÉU: METRO DO PORTO, SA E OUTRO
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 10/23

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
AA e BB, identificadas nos autos, intentaram no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim, Juiz 2, acção declarativa de condenação contra a Metro do Porto; SA, pedindo a condenação da Ré:
“A) – a reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre a parcela de terreno identificada no art. 1º;
B) Que se declare que a 1ª Ré tomou posse dessa parcela sem qualquer título legítimo; e
C) Uma vez que não houve expropriação e está vedado aos AA. reivindicar o seu prédio, que a Ré seja condenada a pagar-lhes, a título de indemnização, a quantia de € 100.000,00 acrescido do valor devido a título de juros de mora, contados a partir do momento em que teve início a ocupação, a relegar para incidente de liquidação;
D) A pagar aos AA., a título de indemnização pelos danos e prejuízos sofridos e que vierem a sofrer, emergentes dos atos lesivos, a quantia de € 50.000,00, sem prejuízo da que vier a liquidar-se em execução de sentença;
E) A pagar aos AA., a título de indemnização pela ocupação, a quantia de € 95.000,00, sem prejuízo do que vier a liquidar-se em execução de sentença;
(…) ”.
Em síntese, alegam ser donos e legítimos possuidores do prédio rústico, identificado no artigo 1º da petição inicial (p.i.), estando a propriedade do prédio rústico registada a favor da A. mulher pela inscrição sob apresentação seis de 26.07.2005, tendo tal titularidade sido adquirida por doação à A. dos seus pais.
Mais alegam que só após o falecimento dos pais da A. verificaram que o terreno tinha sido usurpado/ocupado pela Ré, na sua quase totalidade, sem qualquer tipo de autorização verbal ou escrita, uma vez que aquela veio a construir a linha do metro no seu terreno, em data que não conseguem concretizar, mas que será certamente após 2005. Nunca tendo sido os AA., como proprietários inscritos no registo predial, sido contactados para uma possível negociação para expropriação ou outro procedimento. Sendo que a conduta da Ré impede os AA. do normal exercício e fruição dos seus direitos, sendo tal conduta ilegítima e ilegal, uma vez que ofende gravemente o direito de propriedade dos AA. sobre o referido prédio.

Em 25.04.2022, no Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim – Juiz 2, foi proferida decisão a julgar o tribunal incompetente em razão da matéria para apreciação e julgamento da acção intentada, absolvendo a Ré da instância [cfr. fls. 202 a 206 dos autos].
Os AA., notificados daquela decisão, requereram, nos termos do art. 99º, nº 2 do CPC, a remessa dos autos ao TAF do Porto (cfr. fls. 212 e 213).

O TAF do Porto proferiu decisão em 28.02.2023 a declarar a incompetência em razão da matéria para conhecer do objecto dos autos, absolvendo a Ré da instância.
Suscitada a resolução do conflito negativo de jurisdição, por despacho judicial de 30.05.2023, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 11º da Lei nº 91/2019 e nada disseram ou requereram.
O Exma. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer em 06.09.2023, no sentido de que a competência material para julgar a acção deverá ser atribuída ao Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim, Juiz 2 e o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.
Entendeu o Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim estar perante um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa por a situação dos autos ser subsumível à previsão da norma de competência material prevista na alínea i) do nº 1 do art. 4º do ETAF – por se estar perante uma situação constituída em via de facto, sem título que a legitime -; e, por outro lado, não ser a presente acção uma acção de reivindicação, ao não terem os autores formulado um dos pedidos essenciais à reivindicação: o pedido à restituição da coisa pelo seu possuidor ou detentor.

Por sua vez o TAF do Porto também se considerou incompetente em razão da matéria, além do mais, citando para o efeito jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos, no acórdão de 23.05.2019, Proc. nº 048/18, que se debruçou sobre a norma ínsita na alínea i) do nº 1 do art. 4º do ETAF, onde se concluiu que se estiver em discussão a titularidade do direito de propriedade sobre imóvel em questão, a competência continua a caber à jurisdição comum.
Mais se refere na decisão do TAF que, “De todo o modo, como se disse, de acordo com os termos em que se mostra configurada a relação material controvertida pelos Autores na sua petição inicial, afigura-se evidente que, pese embora estes não hajam pedido a restituição do imóvel, a questão da titularidade do direito de propriedade do imóvel alegadamente ocupado, que se encontra controvertida, assume natureza principal e não meramente acessória ou incidental
Daí, no entender deste Tribunal, a insusceptibilidade de subsunção do caso dos autos à fattispecie prevista na alínea i) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.
Ainda que assim se não considerasse, mais importante é que não é pelo facto de os Autores não pedirem a restituição que tal obsta a que se conclua que nos encontramos perante uma acção de reivindicação para efeitos do artigo 1311º do Código Civil.
Na verdade o principal pedido indemnizatório que os Autores formulam reconduz-se à compensação pela ablação do seu direito de propriedade, ou seja, pela perda definitiva do bem imóvel em questão, no pressuposto de que aquela restituição (a tal que seria típica da reivindicação que os próprios nos artigos 59.º a 63.º da petição declaram almejar) não será possível por apelo ao princípio da intangibilidade da obra pública.
Isto é, como os Autores consideram que a restituição não é possível, não a pediram ao Tribunal. Mas, ao invés, pediram uma indemnização substitutiva do direito de restituição a que se reporta o n.º 1 do artigo 1311.º do CC no valor de EUR 100 000,00 susceptível de reparar a ablação do direito de propriedade cujo reconhecimento aqui almejam.”. Citando a esse propósito jurisprudência do STJ, entre outros, do acórdão de 19.01.2016, processo nº 6385/08.3BALM.L2.S1.
Como igualmente deste Tribunal dos Conflitos em diversos acórdãos que indica.
Assim, e seguindo esta jurisprudência decidiu o TAF que a competência para conhecer do litígio trazido a juízo cabe à jurisdição comum, ocorrendo a excepção de incompetência material, pelo que se absolveu a Ré da instância.

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [arts. 211º, nº 1, da CRP; 64º do CPC e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [artigos 212º, nº 3, da CRP, 1º, nº 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais está concretizada no art. 4º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção do DL nº 214-G/2015, de 2 de Outubro, que atendendo à data da propositura da acção, é a que aqui releva) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário pacífico, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a mesma é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Analisados os termos e o teor da petição inicial constata-se estarmos perante um litígio cuja causa de pedir se situa no âmbito dos direitos reais, invocando os Autores ser de sua propriedade o prédio em causa nos autos, visando, para além do reconhecimento da sua propriedade, alegando factos que visam demonstrar a titularidade do seu direito de propriedade sobre o prédio em causa, que consideram ter sido violado pela Ré e ser indemnizadas por todos os prejuízos sofridos devido à ocupação levada a efeito pela Ré. Não pedindo a restituição do prédio reivindicado, nos termos do art. 1311º, nº 1 do CC, atendendo ao preceituado no art. 335º, nº 2 do CC, em conjugação com o «princípio da intangibilidade da obra pública» (cfr. o acórdão do STJ de 19.01.2016, Proc. nº 6358/08.3TBALM.L2.S1).
Ora, a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais (cfr. Acs. de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc.º 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18 e de 23.01.2020, Proc. 041/19, todos consultáveis in www.dgsi.pt).
Em situação semelhante à presente, apreciada no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 03.11.2020, Proc. nº 07/20, referiu-se nomeadamente que,Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Ora, o que a autora pediu ao Tribunal na presente acção foi que seja reconhecida e declarada a sua propriedade sobre o terreno e que a ré reponha e restitua no estado em que se encontrava no momento imediatamente anterior ao início dos trabalhos de execução da conduta de água, pedindo-se igualmente, a condenação da ré em indemnização pelos prejuízos patrimoniais sofridos pela privação do uso da parcela de terreno e outros danos patrimoniais a liquidar em execução de sentença.
(…)
Com efeito, a matéria alegada pelo autor visa em primeira linha, alicerçar o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel e a condenação do R. na sua restituição. Por sua vez o R. alega que o terreno em causa integra o domínio público, para, por esta via, justificar a ocupação.
Estamos, assim, perante uma típica ação de reivindicação (cfr. art. 1311º do Cód. Civil), pelo que a competência para apreciar a pretensão do autor, cabe aos tribunais judiciais, e não à jurisdição administrativa (art. 64º do CPC)”.

E, situações equiparáveis à presente haviam já sido apreciadas neste Tribunal dos Conflitos, como é o caso do acórdão de 23.05.2019, Proc. nº 048/19, no qual se expendeu o seguinte: «(…) Com a alteração promovida em 2015, o artigo 4.º n.º 1 do ETAF encontra-se agora estruturado como se de uma enumeração taxativa se tratasse, ainda que esta natureza de elenco fechado seja meramente aparente, por força da “cláusula aberta” constante da alínea o), determinando a extensão da jurisdição às “relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”.
(…)
Com a reforma de 2015, a al. i), do nº 1 do art. 4º do ETAF passou a atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar litígios que tenham por objeto questões relativas a “condenação à remoção de situações constituídas em via de facto sem título que as legitime”. (…)
Com a referida previsão normativa procurou-se dar resposta às dúvidas que então se suscitavam quanto a saber se o julgamento das situações de «via de facto» competia aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais, ficando com a revisão de 2015, assegurado que “o pedido de restabelecimento de direitos ou interesses violados a que se refere a al. i) do nº 1, do art. 37º, do ETAF pode ser deduzido, não apenas para obter a remoção de efeitos produzidos por atos administrativos ilegais, mas também para reconstituir a situação jurídica que deveria existir, na sequência de operações materiais praticadas pela Administração sem título que o legitime (v. Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, pág. 259).
(…) Poderá também colocar-se a questão de saber se os litígios relativos à apreciação de uma “apropriação irregular”, cuja diferença face à “via de facto” é apenas de grau de gravidade que se reconhece à ilegalidade subjacente à intervenção da entidade pública, ficaram, com a revisão de 2015, no domínio dos tribunais administrativos.
Neste conflito, que somos chamados a dirimir, discute-se precisamente se a nova alínea i) do art. 4º, nº 1 do ETAF abrange, ou não as ações reais como a dos autos, em que a controvérsia se centra primacialmente no reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, face à atuação de uma entidade administrativa alegadamente ofensiva do direito de propriedade invocado pelo autor.
Importa, consequentemente, trazer à colação o disposto no art. 9º do CC, onde se prescreve que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº 1), não podendo, no entanto, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2).
Ora, nesta tarefa interpretativa, partindo da letra da lei e convocando quer o elemento histórico, quer o elemento racional ou teleológico, nos termos já supra aludidos, afigura-se-nos que a norma em causa deve ser interpretada no sentido de atribuir a competência aos tribunais administrativos para as ações em que a competência apenas está em causa a remoção de atuações ilegais da Administração.
Se, porém, se discutir a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em questão, a competência continua a caber à jurisdição comum.»
Ora, é precisamente esta a situação dos autos, pelo que a competência para conhecer do objecto do litígio cabe aos Tribunais Judiciais (cfr. art. 64º do CPC).

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Instância Central Cível do Funchal, Juiz 2.
Sem custas.

Lisboa, 15 de Novembro de 2023. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.
RETIFICAÇÃO

"Por acórdão de 15.11.2023 este Tribunal dos Conflitos, no Conflito Negativo de Jurisdição suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim, Juiz 2 e o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, julgou competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim, Juiz 2.
No entanto, por lapso manifesto, no dispositivo consta a "Instância Central Cível do Funchal".
Assim, e nos termos do disposto no nº 1 do art. 614º do CPC, procede-se à correcção desse lapso manifesto, sendo que o tribunal competente é o Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim, Juiz 2.
Proceda à rectificação no acórdão proferido em 15.11.2023."

Lisboa, 23 de Novembro de 2023.
Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa