Sentença de Julgado de Paz
Processo: 399/2013-JP
Relator: FERNANDA CARRETAS
Descritores: INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
Data da sentença: 08/13/2013
Julgado de Paz de : SEIXAL
Decisão Texto Integral:
SENTENÇA

RELATÓRIO:
A, identificado a fls. 1 e 3, intentou, em 18 de junho de 2013, contra B, melhor identificada, também, a fls. 1 e 3, a presente acção declarativa de condenação, pedindo que esta fosse condenada a: a) Pagar ao Demandante a quantia de 2.500,00 € (Dois mil e quinhentos euros), relativa à dívida que é credor; b) Pagar ao Demandante, pelos prejuízos sofridos e pelos benefícios que deixou de obter em resultado do incumprimento do contrato e da cláusula convencional de bom funcionamento, uma indemnização no valor de 1.000,00 € (Mil euros); c) Pagar os juros de mora vencidos, relativos à dívida acima referida, desde a data da celebração do acordo de revogação até à data da entrega da presente ação calculados à taxa legal de 4% no valor de 44,66 € (Quarenta e quatro euros e sessenta e seis cêntimos); d) – Pagar os juros vincendos calculados à mesma taxa, até ao pagamento integral e efetivo da dívida supra referida; e) Pagar as custas do processo e f) Mais se requer a anulação do contrato e a devolução da viatura à Demandada após o pagamento integral de dívida.
Para tanto, alegou, os factos constantes do Requerimento Inicial de fls. 1 a 15, que se dá por reproduzido, dizendo, em síntese, que esteve vinculado à Demandada, por contrato de trabalho, por oito anos, tendo, em 30 de novembro de 2012, comunicado o seu despedimento, alegando justa causa, tendo ambos celebrado acordo de revogação do contrato em 6 de janeiro de 2013. No âmbito desse acordo, na cláusula segunda a Demandada comprometeu-se a entregar-lhe, no início do mês de fevereiro de 2013, a viatura comercial, marca x, modelo x, com a matrícula DV, “livre de quaisquer ónus e/ou encargos e em perfeito estado de funcionamento, atribuindo à viatura o valor de 2.500,00 € (Dois mil e quinhentos euros). A viatura só veio a ser entregue ao Demandante em 9 de maio de 2013, data em que veio a ser subscrito o acordo de revogação do contrato de trabalho. A viatura revelou um problema na caixa de velocidades, no carreto da terceira velocidade, cuja reparação está orçamentada em 2.503,79 €, o que a desvaloriza na totalidade; a Demandada conhecia o defeito há pelo menos quatro anos e ocultou-o ao Demandante na negociação.
Juntou 7 documentos (fls. 16 a 26) que, igualmente, se dão por reproduzidos.
A Demandada foi regularmente citada para contestar, no prazo, querendo, tendo apresentado a douta contestação de fls. 40 a 48, que se dá por reproduzida e na vem arguir a exceção da incompetência, em razão da matéria e do território, deste tribunal e, no mais, impugna a versão dos fatos trazida aos autos pelo Demandante, nomeadamente quanto à data de entrega da viatura; quanto ao facto de o Demandante ter pedido tempo para que alguém da sua confiança analisasse a viatura; sobre a reparação e a inspeção a que a viatura foi sujeita, por imposição do Demandante, antes da entrega, tendo sido verificado o seu bom funcionamento. Termina pedindo que se declarem procedentes as exceções da incompetência, em razão da matéria e do território, do Julgado de Paz do Seixal e que a ação seja julgada improcedente, por não provada, absolvendo-se a Demandada do pedido. Não juntou documentos.
O Demandante respondeu às exceções, nos termos constantes de fls. 64 a 67, que se dão por reproduzidas.
Cabe a este tribunal resolver, em primeiro lugar, a questão da alegada exceção da incompetência, em razão da matéria e do território, e, na negativa, decidir se o Demandante tem o direito de exigir o pagamento da quantia que foi atribuída à viatura; à indemnização por danos e por lucros cessantes; juros, vencidos e vincendos, e bem assim à anulação do contrato e à devolução da viatura à Demandada.
Tendo o Demandante afastado o recurso à Mediação para resolução do litígio (fls. 15), não obstante estar a decorrer o prazo para a apresentação da contestação, sem prejuízo do mesmo, foi designado o dia 10 de julho de 2013 para a realização da Audiência de Julgamento e não antes, atento o decurso daquele prazo (fls. 37).
A referida data foi dada sem efeito, por indisponibilidade da Ilustre Mandatária da Demandada, designando-se, em sua substituição, o dia 12 de julho de 2013, de acordo com a disponibilidade manifestada (fls. 57).
Aberta a Audiência, e estando todos presentes, foram ouvidas as partes, nos termos do disposto no Art.º 57.º da LJP, tendo-se explorado todas as possibilidades de acordo, nos termos do disposto no n.º 1 do Art.º 26.º do mesmo diploma legal, o que não logrou conseguir-se, pelo que se procedeu à realização da Audiência de Julgamento, com observância do formalismo legal, como da respetiva ata se alcança.
Devido à necessidade de ponderação da prova produzida, foi a audiência suspensa e designada para a sua continuação, com prolação de sentença, a presente data e não antes devido a ausência da signatária, em gozo de férias anuais.
Cumpre, antes de mais, apreciar e decidir sobre a exceção da incompetência deste tribunal, em razão da matéria e do território, invocada pela Demandada.
A Demandada, quanto à primeira exceção – incompetência, em razão da matéria – ancora a sua pretensão no facto de a relação material controvertida ser do foro laboral, o qual está excluído da competência do Julgado de Paz.
Por seu turno o Demandante fundamenta a sua pretensão no incumprimento do contrato de Dação em Cumprimento para o qual o Julgado de Paz tem competência, nos termos do disposto na al. i), do art.º 9.º, da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho. Sem grandes indagações, porque, a nosso ver, desnecessárias, entendemos que não assiste razão à Demandada, uma vez que, efetivamente o que aqui somos chamados a decidir é o alegado incumprimento contratual, subsequente à relação laboral.
Melhor dizendo: a questão que aqui apreciamos não se prende com a relação laboral que já não existe, por força do acordo de revogação do contrato de trabalho celebrado entre as partes, mas sim com um alegado incumprimento contratual por parte da Demandada e, por isso, são os tribunais comuns – nos quais se inclui o Julgado de Paz – os competentes para apreciar e decidir tal relação material controvertida
No que à exceção da incompetência, em razão do território concerne, a Demandada louva-se no disposto no art.º 14.º, da supra referida lei, no que, a nosso ver, não tem razão.
Efetivamente, a Demandada tem a sua sede em Loulé e, assim, o tribunal seria territorialmente incompetente, à luz daquele dispositivo. Todavia, tratando-se de ação na qual é pedida a apreciação do incumprimento contratual, rege o art.º 12.º do referido dispositivo.
É assim competente o julgado de paz do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida ou o julgado de paz do domicilio da Demandada, que neste caso coincidem uma vez que a Demandada tem o seu estabelecimento (onde o Demandante prestava o seu trabalho) no concelho do Seixal e a obrigação deveria ser cumprida também no concelho do Seixal, no estabelecimento da Demandada. –
Face ao que antecede, resulta claro que ambas as exceções terão de improceder, improcedência que agora se declara, por não existir fase do saneador na tramitação processual deste tribunal.
Estando reunidos os pressupostos da estabilidade da instância, cumpre apreciar e decidir:
FUNDAMENTAÇÃO - MATÉRIA DE FACTO
A convicção probatória do tribunal, de acordo com a qual selecciona a matéria dada como provada ou não provada, ficou a dever-se ao conjunto da prova produzida nos presentes autos, tendo sido tomados em consideração os documentos juntos pelo Demandante; as declarações das partes nos seus articulados e em Audiência de Julgamento no que lhes era desfavorável e os depoimentos das testemunhas apresentadas pelo Demandante e pela Demandada.
Ponderaram-se os depoimentos das testemunhas, as quais prestaram depoimento com isenção, revelando conhecimento directo dos factos sobre os quais testemunharam. Assim:
1.ª- C, que aos costumes, declarou ter sido funcionário de uma associada da Demandada e conhecer o Demandante, por ter sido seu colega de trabalho, por cerca de quatro anos. A testemunha chegou a conduzir a viatura, objeto dos presentes autos.
2.ª- D, que aos costumes, declarou ter estado interessado na compra da viatura, pelo que se avistou com o Demandante, tendo-a conduzido. A testemunha explicou ao tribunal em que consistia a avaria e esclareceu qual a desvalorização da mesma, bem como o valor que despenderia na sua reparação.
3.ª- E, que aos costumes, declarou ser filha do Demandante e conhecer o representante da Demandada por ser patrão daquele. A testemunha declarou ter acompanhado o Demandante no dia da assinatura do acordo de revogação do contrato de trabalho.
4.ª- F, que aos costumes, declarou ser mulher do representante legal da Demandada e funcionária da mesma, tendo sido quem acompanhou e concretizou a celebração do acordo de revogação do contrato de trabalho com o Demandante.
Com interesse para a decisão da causa ficaram provados os seguintes factos:
1. O Demandante esteve vinculado, por contrato de trabalho, à Demandada pelo período de oito anos, exercendo a sua função nas instalações desta, sitas na freguesia de Corroios, concelho do Seixal;
2. A Demandada tem a sua sede em Loulé (Doc. fls. 84 a 89);
3. O Demandante é advogado;
4. Em 9 de maio de 2013, as partes celebraram acordo de revogação do contrato de trabalho, com efeitos ao dia 30 de novembro de 2012 (Doc. n.º 1);
5. Nos termos da cláusula segunda do referido acordo, a Demandada comprometeu-se a entregar ao Demandante a viatura automóvel da marca x, modelo x; com a matrícula DV, à qual atribuíram o valor de 2.500,00 € (Dois mil e quinhentos euros), livre de quaisquer ónus ou encargos e em “perfeito estado de funcionamento” (Doc. n.º 1);
6. Nos termos da cláusula terceira, a referida viatura seria entregue ao Demandante até ao dia 15 de maio de 2013 (Doc. n.º 1);
7. A viatura foi entregue ao Demandante no dia 9 de maio de 2013, às 16,15 horas, responsabilizando-se este, a partir daquele momento, totalmente pela viatura (Doc. n.º 2);
8. Na mesma data foram entregues ao Demandante os documentos da viatura; a segunda chave a declaração para alteração do registo de propriedade (Docs. n.ºs 3 e 4);
9. A referida viatura era uma viatura de serviço, utilizada pelos comerciais da Demandada, com matrícula do ano de 2007 e com cerca de 150.000 quilómetros;
10. Embora o acordo de revogação do contrato de trabalho tivesse sido subscrito por ambas as partes em 9 de maio de 2013, a data consignada no mesmo é o dia 30 de novembro de 2012, data a que as partes fazem reportar os efeitos da revogação (Doc. n.º 5);
11. Na fase de negociação do acordo de revogação do contrato de trabalho, o Demandante sempre disse à Demandada que aceitava a viatura se esta estivesse em perfeitas condições de funcionamento, tendo pedido que o seu estado fosse certificado pela marca, o que não se revelou possível;
12. A Demandada propôs submeter a viatura à inspeção periódica, antecipando-a, o que foi feito com os resultados constantes do documento n.º 6 (fls. 25);
13. Como a inspeção periódica não seria o meio próprio para detetar certas avarias, o Demandante exigiu que a viatura fosse observada por um profissional da sua confiança, o que veio a acontecer na oficina X que se encontra instalada ao lado das instalações da Demandada;
14. Naquela oficina, depois de observarem a viatura, foi comunicado ao Demandante pelo responsável da mesma que a viatura apenas precisaria de pastilhas de travão e de fazer a revisão dos 160.000 quilómetros;
15. O Demandante também se informou, junto dos seus colegas, que conduziam a viatura, sobre o seu estado, tendo estes declarado que a viatura se encontrava em boas condições de funcionamento;
16. O Demandante encontrou um comprador para a viatura e no dia 22 de maio de 2013, o G, comerciante de automóveis, foi buscar a viatura a Almada;
17. Após ter iniciado a marcha, tendo andado cerca de 100 metros, o comprador telefonou ao Demandante para o informar que a viatura tinha um problema na caixa de velocidades e que a iria levar ao seu mecânico para despistar o problema;
18. Verificou-se, então, que a viatura tem um problema no carreto da terceira velocidade;
19. Para levar a efeito a reparação o comprador gastaria 1.000,00 € (Mil euros), pelo que propôs a redução do preço para 1.500,00 € (Mil e quinhentos euros);
20. A viatura tanto pode circular muitos quilómetros com este problema, como, de repente, pode “partir” toda a caixa de velocidades;
21. O Demandante contatou a F, reclamando sobre o problema da viatura e, até à presente data, nada lhe foi comunicado;
22. A viatura foi levada pelo potencial comprador e pelo Demandante à oficina do concessionário da x, tendo esta apresentado o orçamento de reparação (substituição da caixa de velocidades), no montante de 2.503,79 € (Dois mil quinhentos e três euros e setenta e nove cêntimos) – Doc. n.º 7;
23. O Demandante continua sem receber o valor que foi atribuído à viatura;
24. O Demandante aceitou a viatura no dia 9 de maio de 2013, renunciando a quaisquer outros créditos sobre a Demandada;
25. A viatura havia sido reparada antes da entrega ao Demandante;
26. A viatura encontrava-se na disponibilidade do Demandante desde o dia 26 de abril de 2013, para que fosse vista pelo responsável da oficina que veio a atestar o seu bom funcionamento;
27. A partir daquela data a viatura não foi utilizada por nenhum funcionário da Demandada;
28. Só depois de indagar junto dos seus colegas, utilizadores da viatura sobre o seu estado e da observação da carrinha pela oficina supra referida o Demandante comunicou à Demandada que podiam celebrar o acordo de revogação do contrato de trabalho;
Não resultaram provados quais quer outros factos, alegados pelas partes ou instrumentais com interesse para a decisão.
FUNDAMENTAÇÃO - MATÉRIA DE DIREITO
O Demandante ancora a sua pretensão no facto de ter celebrado com a Demandada um acordo de revogação do contrato de trabalho, nos termos do qual a Demandada, além de uma quantia em numerário lhe entregaria a viatura supra identificada, garantindo o seu bom funcionamento.
Estamos, portanto, em presença de um contrato misto, em que a parte que nos interessa configura a Dação em Cumprimento, regulada pelo art.º 837.º e seguintes do Código Civil.
É essencial à dação que haja uma prestação diferente da que é devida (neste caso: a entrega da viatura, para pagamento da quantia de 2.500,00 €) e que essa prestação tenha por fim a extinção imediata da obrigação (neste caso, o Demandante deu quitação da referida quantia).
Nos termos do disposto no art.º 838.º, do Código Civil, quanto aos vícios da coisa, o credor goza dos direitos prescritos para a compra e venda; mas pode optar pela prestação primitiva e reparação dos danos sofridos.
O Demandante pretende exercer o direito à prestação primitiva e à reparação dos alegados danos sofridos, invocando um defeito de que a viatura que lhe foi entregue padece e que a desvaloriza, imputando à Demandada a responsabilidade pelos mesmos. Vejamos:
Resulta provado que, antes de assinar o acordo de revogação do contrato de trabalho, que contemplava a entrega da viatura pelo valor de 2.500,00 € (Dois mil e quinhentos euros), o Demandante exigiu que fossem levadas a efeito várias diligências com vista à confirmação do bom estado de funcionamento da viatura.
E, assim, a viatura foi inspecionada antes do tempo, não tendo revelado anomalia significativa.
Entendendo que a inspeção não era o meio próprio para a deteção de defeitos de funcionamento, o Demandante exigiu que a viatura fosse observada por pessoa da sua confiança para o efeito.
A tudo a Demandada acedeu, sendo certo que, da observação levada a efeito por pessoa escolhida pelo Demandante, apenas resultou a necessidade de substituir as pastilhas de travão e de efetuar a revisão dos 160.000 quilómetros.
Não pode, aliás, aqui ser menosprezado o facto de o Demandante apenas ter assinado o acordo de revogação do contrato de trabalho, após a realização de todas estas diligências e de se ter informado junto dos seus colegas – utilizadores da viatura – sobre o estado da mesma.
Como não pode ser minimizado o facto de a viatura ser uma viatura de serviço; de 2007 e com cerca de 150.000 quilómetros percorridos.
Isto para dizer que nem todo o vício é defeito para os efeitos do disposto no art.º 913.º do Código Civil que dispõe que “ 1- Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na seção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.”.
Daqui resulta que a lei concede ao comprador (já vimos que ao contrato de Dação em cumprimento se aplicam as regras da compra e venda) os seguintes direitos: 1 – a anulação do contrato, por erro ou dolo, verificados os respetivos requisitos exigidos pelo art.º 251.º (erro sobre o objeto do negócio) e pelo art.º 254.º (dolo); 2 – a redução do preço; 3 – a indemnização do interesse contratual negativo, traduzido no prejuízo que o comprador sofreu pelo facto de ter celebrado o contrato, que é cumulável com a anulação do contrato e com a redução do preço (art.ºs 908.º, 909.º e 911.º, aplicáveis por força do disposto no art.º 913.º); 4 – reparação do bem ou se for necessário e este tiver natureza fungível, a sua substituição (art.º 914.º, n.º 1) independentemente de culpa do devedor, se este estiver obrigado a garantir o bom funcionamento da coisa vendida (art.º 921.º), podendo ainda o comprador exercer autonomamente, o direito de indemnização pelo interesse contratual positivo, decorrente das regras gerais do direito de responsabilidade civil, com fundamento no cumprimento defeituoso ou inexato, presumivelmente imputável ao vendedor, nos termos do disposto nos art.ºs 798.º; 799.º e 801.º, n.º 1, do Código Civil.
Neste caso, a Demandada entregou ao Demandante uma viatura usada, com 150.000 quilómetros para pagamento da quantia de 2.500,00 €, garantindo o seu bom funcionamento.
Bom funcionamento que o Demandante também confirmou pelos meios que entendeu pertinentes e aos quais a Demandada não se opôs.
Acontece que, quando o Demandante tentou vender a viatura, foi detetada uma avaria no carreto da terceira velocidade, o qual, não impedindo a sua circulação, poderá vir a causar danos maiores na caixa de velocidades.
O comprador interessado para reparar a avaria, com a substituição da caixa de velocidades, descontaria o valor de 1.000,00 € no preço acordado (facto que, estranhamente, o Demandante nunca refere).
Assim vistas as coisas o Demandante perderia, além de outros alegados prejuízos, aquela quantia.
Por conseguinte, a questão principal a decidir reconduz-se a determinar se o Demandante alegou e provou todos os factos constitutivos do seu direito, para poder ser indemnizado pelo cumprimento defeituoso da Demandada.
O vício da coisa, como ele é configurado no citado art.º 913.º do Código Civil, tem por base a função normal da coisas da mesma categoria e na qualidade normal das coisas da mesma natureza, que respeita à maior ou menor aptidão para realizar a sua função.
No que concerne à qualidade normal do bem, é necessário distinguir entre coisas novas e usadas e, dentro destas, vários tipos segundo a duração e o uso.
Como diz pedro Romano Martinez (Cumprimento defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, pág. 235: “Era usual considerar-se que a responsabilidade por incumprimento defeituoso estaria tacitamente excluído com respeito a coisas usadas, porquanto era de prever que estas tivessem vícios. O devedor só seria responsável no caso de ter garantido determinadas qualidades. Estes problemas colocavam-se, em especial, a propósito da venda de veículos usados.
Em certos casos, as circunstâncias concretas podem levar a aceitar-se uma exclusão da responsabilidade, mas não é lícito alastrar essa ilação a todas as vendas de objectos usados.
Por outro lado, o defeito não se identifica com a deterioração motivada pelo uso ou pelo decurso do tempo. O bem usado pressupõe-se com desgaste normal, em função da utilização (p. ex., número de quilómetros percorridos) ou do tempo (p. ex., número de anos a contar da a data de fabrico), mas não tem de ser defeituoso. Para além do desgaste normal, a coisa usada pode ter um vício oculto. Assim, se o sistema de travagem do veículo que foi vendido em segunda mão não funciona convenientemente, há um defeito que excede o desgaste normal. A tendência actual vai no sentido de se admitir a aplicação do regime de cumprimento defeituoso, mesmo às compras e vendas de coisas usadas.”
Acrescentando aquele autor (pág.236): “No sistema jurídico português, a distinção entre coisas novas e usadas não tem consagração legal e não pode ser fundamento para efeitos de excluir a responsabilidade. Todavia, sendo vendida uma coisa usada, o acordo incide sobre o objecto com qualidade inferior e idêntico a um bem novo, razão pela qual o regime do cumprimento defeituoso só encontra aplicação na medida em que essa falta de qualidade exceder o desgaste normal.”.
Perante a referida doutrina – que acompanhamos – pode dizer-se que o desgaste normal das coisas usadas não consubstancia vício do bem, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 913.º, do Código Civil.
Neste caso, estamos em presença de um veículo de serviço em que, como é consabido, o cuidado na condução não é o maior, muito antes pelo contrário, circunstância que o Demandante conhecia.
Acresce que o veículo havia já percorrido 150.000 quilómetros nas sobreditas condições, pelo que seria expetável que tivesse ou viesse, em breve, a ter algum problema adveniente do desgaste normal.
Cabia, assim, ao Demandante alegar e provar que a anomalia de que padece a viatura, vai para além do desgaste normal em viaturas com esta idade; com esta utilização e com esta quilometragem, o que não fez.
Ora, esse ónus pertencia-lhe, nos termos do disposto no n.º 1, do art.º 342.º do Código Civil, quer dizer.
Tanto mais que o Demandante, antes de aceitar subscrever o acordo de rescisão do contrato de trabalho e a dação em cumprimento, exigiu verificar se a viatura se encontrava em boas condições de funcionamento, ao que a Demandada não se opôs.
E, assim sendo, como é, tendo a Demandada acedido a todas as exigências do Demandante quanto à verificação do bom estado de funcionamento da viatura e tendo este levado a efeito as diligências que entendeu fazer, antes de assinar o acordo, não se compreende como pode agora vir o Demandante dizer que a Demandada o enganou porque bem sabia do problema da viatura, o que, aliás, não logrou provar.
O adquirente de um veículo usado tem de ter em conta que a garantia de bom funcionamento, cobre o normal funcionamento mas não o do desgaste normalmente esperado em bens idênticos.
Ademais, é facto notório, não carecendo de alegação nem de prova, que a caixa de velocidades é um órgão de desgaste, o qual depende do tipo de utilização e dos quilómetros percorridos.
Por conseguinte, a ação improcede por o Demandante não ter, como era seu encargo, demonstrado que a avaria do carreto da terceira velocidade corresponde a um desgaste anormal do mesmo, o que configuraria defeito e constituiria a Demandada na obrigação de o indemnizar.
DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos invocados, julgando a ação totalmente improcedente, porque não provada decido absolver a Demandada dos pedidos contra si formulados pelo Demandante.
Custas a suportar pelo Demandante (art.º 8.º da Portaria n.º 1456/2001, de 28 de Dezembro).
Registe.
Seixal, 13 de agosto de 20013
(Juíza de Paz que redigiu e reviu em computador – Art.º 138.º/5 do C.P.C.)
(Fernanda Carretas)