Sentença de Julgado de Paz
Processo: 932/2017.JPLSB
Relator: SOFIA CAMPOS COELHO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL - INDEMNIZAÇÃO POR DANOS DECORRENTES DE ACIDENTE DE VIAÇÃO
Data da sentença: 06/12/2018
Julgado de Paz de : LISBOA
Decisão Texto Integral: SENTENÇA

Processo n.º 932/2017

Objeto: Responsabilidade civil - indemnização por danos decorrentes de acidente de viação.

Demandante: A.
Mandatário: Sr. Dr. B.

Demandada: C, S.A.
Mandatário: Sr. Dr. D.


RELATÓRIO:
O demandante, devidamente identificado nos autos, intentou contra a demandada, também devidamente identificada nos autos, a presente ação declarativa de condenação, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 11.100 (onze mil e cem euros), acrescia de juros de mora, bem como da quantia que se liquidar, a título de privação de uso do veículo, a partir de 10 de agosto de 2017. Para tanto, alegou os factos constantes do requerimento inicial, de folhas 1 a 11 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido, alegando, em síntese, que no dia 12 de dezembro de 2016, pelas 19:15 horas, na Alameda D. Afonso Henriques, concelho de Lisboa, em frente à Igreja Universal do Reino de Deus, ocorreu um acidente de viação no qual foram intervenientes o veículo automóvel matrícula UL, propriedade e conduzido pelo demandante e o veículo automóvel matrícula RT ; alega que no dia, hora e local acima referidos, o UL circulava na referida via, na faixa da esquerda, e o RT circulava na mesma via e sentido, atrás do RT e, antes de chegar aos semáforos do entroncamento com a Av. Almirante Reis o UL é embatido, na sua traseira, pelo RT, que se pôs em fuga. Alega que, surpreendido com o embate, não teve tempo de travar e o UL foi projectado para cima do passeio, indo embater nuns semáforos, provocando a queda de um semáforo sobre um peão. Alega que a culpa do acidente se deve integralmente ao condutor do RT, não aceitando a posição da demandada de declinar a responsabilidade do seu segurado. Consequentemente, peticiona a condenação da demandada no pagamento de indemnização correspondente ao valor do UL (€ 4.700) subtraído do valor do salvado (€ 800) e privação de uso do UL (€ 7.200, 240 dias à razão diária de € 30). Juntou procuração forense e 15 documentos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
***
Regularmente citada, a demandada contestou (de fls. 75 a 77 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas), alegando que lhe foi apresentada uma reclamação referente ao acidente referenciado nos autos, contudo não lhe foi apresentada prova da intervenção do veículo nela segurado, nem o tomador do seguro lhe participou o acidente ou confirmou a intervenção em qualquer sinistro relacionado com o demandante. Impugna os demais factos alegados, designadamente o valor atribuído ao UL e os documentos juntos aos autos. Juntou procuração e 1 documento, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
***
A demandada prescindiu da mediação, tendo sido marcada data para realização audiência de julgamento, tendo as partes, e mandatários, sido devidamente notificados.
***
Foram realizadas três sessões da audiência de julgamento, na presença do demandante e dos mandatários, tendo a Juíza de Paz procurado conciliar as partes, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do art.º 26.º, da LJP, diligência que não foi bem sucedida.
Foi ouvida a parte demandante, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 57.º da LJP, e realizada a audiência de julgamento, com observância do formalismo legal, como resulta das respetivas atas, tendo sido ouvidas as testemunhas apresentadas pelo demandante.
***
Nos termos do n.º 1 do art.º 306.º do Código de Processo Civil, fixa-se à causa o valor de € 11.100 (onze mil e cem euros).
O Julgado de Paz é competente em razão do valor, da matéria e do território
As partes são dotadas de personalidade e capacidade jurídica e são legítimas.
Não existem nulidades ou exceções de que cumpra conhecer ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
***
FUNDAMENTAÇÃO – MATÉRIA DE FACTO
Com interesse para a decisão da causa, ficou provado que:
1 - No dia 12 de dezembro de 2016, pelas 19:15 horas, no cruzamento da Alameda Dom Afonso Henriques com a Av. Almirante Reis, concelho de Sintra, ocorreu um acidente de viação que consistiu num atropelamento de peões, tendo a Polícia de Segurança Pública sido chamada ao local e lavrado a participação de acidente de fls. 17 a 21 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzida.
2 - Dessa participação resulta:
a) que o veículo automóvel ligeiro de passageiros matrícula UL,, propriedade e conduzido pelo demandante, atropelou um peão, E;
b) do acidente resultaram danos na frente, lateral posterior direita e parte posterior-vértice direito do UL, bem como danos em dois semáforos;
c) quando a Polícia de Segurança Pública chegou ao local, pelas 20:00 horas, encontrava-se apenas o condutor do UL, já que o peão tinha sido, após assistido no local em ambulância de Bombeiros, transportado para o Hospital de São José;
d) e transcrevemos: "O condutor identificado, elaborou versão manuscrita do ocorrido. Ali refere que o despiste ocorreu porque o seu veículo foi embatido na parte posterior direita , por outro, da marca mercedes e de cor preta, que se pôs em fuga. Indicou seis testemunhas, tendo estas lhe fornecido a matrícula RT, correspondente às características da viatura que lhe embateu (mercedes, de cor preta). Este veículo pertence a Maria Madalena dos Santos Gama, residente na Rua Francisco de Holanda, n.º 51, r/c A, Lisboa. Encontra-se segurado, segundo o sítio https://www.segurnet.pt, na Companhia de seguros Liberty, com a apólice 10022106330, com último período de validade de 2016-09-12 a 2017-06-16. O veículo atropelante, 76-96-UL, na data e hora do acidente, segundo o sítio https://www.segurnet.pt, não tinha seguro de responsabilidade civil válido (….);
e) o UL foi apreendido por não ter seguro de responsabilidade civil;
f) "Vestígios no local: vidros, plásticos e óleos provenientes do veículo identificado e dos semáforos derrubados. Junto ao local do acidente, também se encontrava a protecção em plástico do espelho retrovisor, pertencente a um mercedes de cor preta";
g) a posição do UL quando a Polícia de Segurança pública chegou ao local (croqui a fls. 20).
3 - Faz parte dessa participação a declaração manuscrita de acidente a fls. 22 e 23 dos autos, manuscrita e assinada pelo demandante, na qual o mesmo descreve o acidente, identifica testemunhas e elabora esboço do acidente.
4 - A artéria onde ocorreu o acidente é composta por três vias com sentido único.
5 - O UL embateu nos semáforos visíveis no croqui a fls. 20 e provocou a queda de um semáforo que caiu sobre o peão.
6 - O demandante preencheu a declaração amigável de acidente automóvel a fls. 24 e 25 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzida, e remeteu-a à demandada, participando o acidente.
7 - Por carta de 1 de fevereiro de 2017, a fls. 26 e 27 dos autos, a demandada declinou a sua responsabilidade invocando falta de prova; nela comunica ao demandante que a reparação do UL foi orçada (em peritagem por si ordenada) em € 5.553,81 (cinco mil quinhentos e cinquenta e três euros e oitenta e um cêntimos), que o valor de substituição do UL ascende a € 3.800 (três mil e oitocentos euros) e que o salvado foi avaliado em € 800 (oitocentos euros).
8 - O demandante requereu a F a elaboração de um relatório de acidente automóvel, tendo este elaborado o relatório de fls. 28 a 67 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido, que conclui pela responsabilidade do veículo terceiro ( entenda-se o RT ) no acidente.
9 - À data do sinistro, a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo matrícula RT, encontrava-se transferida para a Companhia de Seguros demandada, ao abrigo do contrato de seguro automóvel, titulado pela apólice n.º -------------------.
10 - O UL estava em bom estado geral de funcionamento.
11 - O demandante utilizava o UL nas suas deslocações diárias, designadamente para o liceu que então frequentava e passeios.
12 - Após o acidente o demandante passou a fazer esses trajectos recorrendo a outros meios de transporte, designadamente autocarro e boleias.
13 - A demandada não cedeu veículo de substituição ao demandante, desconhecendo-se se este o solicitou.

Não ficou provado:
Não se provaram mais factos com interesse para a decisão da causa, designadamente:
1 - No acidente foi interveniente o veículo automóvel RT.
2 - O UL circulava na via da esquerda, o RT na mesma artéria, sentido e via, atrás do UL.
3 - O RT embate na traseira do UL e colocou-se em fuga.
4 - O embate do RT causou a projecção do UL para cima do passeio e consequente embate nos semáforos.
5 - O RT colocou-se em fuga, tendo sido identificado (marca, modelo e matrícula) por várias testemunhas, designadamente G, H, I e J.
6 – O peão iniciou procedimento criminal contra o demandante.
7 – A existência de danos no UL além dos referidos na alínea b) do n.º 2 de factos provados.
8 – O Ul ficou logo impossibilidade de circular e foi rebocado para a oficina K.
9 – O valor de mercado do UL ascende a € 4.700 (quatro mil e setecentos euros).
10 – O aluguer diário de veículo idêntico ao UL ascende a € 30 (trinta euros).

Motivação da matéria de facto:
Para fixação da matéria fáctica dada como provada concorreram os factos admitidos, os documentos juntos aos autos (de especial relevância participação de acidente automóvel a fls. 17 e seguintes dos autos) e o depoimento das testemunhas apresentadas pelo demandante.
Em primeiro lugar esclareça-se que a participação de acidente a fls. 17 e seguintes dos autos é um documento autêntico que, nos termos do prescrito nos artigos 369.º e 370.º do Código Civil, faz prova plena dos factos que nele são atestados com base nas percepções da entidade documentadora (artigo 371.º do Código Civil), cuja força probatória só pode ser ilidida com base na sua falsidade (artigo 372.º do Código Civil), ou esta ser oficiosamente declarada se a falsidade for evidente em face dos sinais exteriores do documento, o que não se verifica no caso. Assim, temos para nós como assentes os factos atestados nessa participação com base nas percepções da própria entidade documentadora, sendo de esclarecer que, relativamente à intervenção de um terceiro veículo no acidente, essa entidade não atesta a sua verificação, referindo, sim, que o demandante lhe referiu tal ter ocorrido: "O condutor identificado, elaborou versão manuscrita do ocorrido. Ali refere que…”". É também relevante referir que a Polícia de Segurança Pública não identificou qualquer testemunha; foi o demandante que, nas suas declarações, o fez, não tendo as mesmas prestado declarações a essa Polícia.
Quanto ao depoimento das duas testemunhas apresentadas, cumpre esclarecer que nenhuma presenciou o acidente, consequentemente nenhuma nos esclareceu quanto à dinâmica do mesmo.
A testemunha F, que elaborou o relatório a fls. 28 e seguintes dos autos, esclareceu que foi contratado pelo demandante para elaborar esse relatório, tendo conseguido chegar à fala com várias das testemunhas que o demandante lhe indicou, mas que só uma, de nome G (cuja notificação este julgado de Paz ainda ordenou ( cfr. ata a fls. 92 e seguintes e notificação a fls. 95), lhe indicou a matrícula do outro veículo que, segundo a versão do demandante, foi também interveniente no acidente: o RT. Disse que das restantes testemunhas, nenhuma lhe disse a matrícula desse outro veículo. Daqui resulta que, quanto à intervenção do RT no acidente discutido nos autos, temos somente uma testemunha que não assistiu ao acidente a referir-nos que um terceiro lhe disse ter sido esse carro a intervir no acidente. Ora, as testemunhas são chamadas a referir as suas percepções de factos que vira, ouviram, sentiram, o que observaram. O que releva como prova por si trazida para o processo é a parte objetiva dessa perceção, não a subjetiva, assim se excluindo a interpretação que a própria testemunha atribui aos factos. Não revela o testemunho indirecto, obtido através de outrem, que não assistiu aos factos e que já contém em si uma versão e interpretação dos factos. Neste caso, o que a testemunha pode narrar é apenas o que lhe foi revelado, já não o que terá acontecido, pois esse conhecimento não tem. E, nestes autos, o que efetivamente revela do testemunho de F é que foi contratado para averiguar o acidente e das seis testemunhas que o demandante lhe indicou, só uma lhe identificou a matrícula do veículo terceiro, como refere no seu relatório. Temos para nós como insuficiente um depoimento indirecto, por sua vez com base do que se ouviu dizer de uma pessoa, entre várias, quanto à identificação de uma matrícula de um veículo automóvel. Percebemos a dificuldade do demandante, mas da prova produzida não ficámos convictos que efectivamente o RT tenha intervindo no acidente.
Acresce que, o demandante juntou aos autos uma declaração, em original (fls.15 e 16 dos autos) escrita do referido G, a qual a demandada impugnou, não tendo o demandante carreado para os autos qualquer prova adicional relativa a esse documento particular.
O depoimento da segunda testemunha apresentada pelo demandante foi essencial para se dar como provados os factos acima enumerados de 9 a 11, os quais a testemunha, de modo seguro, isento, convincente e demonstrando ter conhecimento direto dos mesmos, confirmou a este tribunal.
Não foram provados quaisquer outros factos alegados pelas partes, dada a ausência de mobilização probatória credível, que permitisse ao tribunal aferir da veracidade desses factos, após a análise dos documentos juntos aos autos e da audição da parte demandante e testemunhas.
Nenhuma testemunha depôs sobre os factos dados como não provados sob os números 8, 9 e 10. Por outro lado, não foi junto aos autos qualquer documento comprovativo do facto dado como não provado sob o número 6.
Quanto ao valor do UL (facto número 9 dado como não provado) esclareça-se que os documentos junto aos autos pelo demandante a fls. 68, 69 e 70, traduzem-se em prints retirados de ofertas de venda feitas na internet, das quais resulta que há pessoas que têm aqueles veículos, e que estão dispostos a vendê-los pelo preço aí anunciado. Não é o valor de venda do UL. Ou seja, em rigor não sabemos qual o valor de mercado deste veículo. Na verdade, quanto ao valor do UL, seja qual o seu estado, nenhum testemunha depôs sobre o mesmo.
Por último, esclareça-se que este Julgado de Paz, ao abrigo do prescrito no n.º 3, do art.º 466.º, do Código de Processo Civil, não considerou suficiente as declarações do demandante para, por si só, dar por provados os factos acima discriminados como não provados.
***
FUNDAMENTAÇÃO – MATÉRIA DE DIREITO
Com a presente ação pretende o demandante ser indemnizado dos danos para si advenientes do acidente de viação identificado nos números 1 e 2 de factos provados, cuja culpa imputa exclusivamente ao condutor do veículo RT, fundamentando, assim, a sua pretensão indemnizatória no instituto da responsabilidade civil extracontratual.
A questão a resolver resume-se, basicamente, à verificação da existência dos pressupostos da responsabilidade civil, geradores da obrigação de indemnizar. Prescreve o artigo 483.º, do Código Civil, que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”, ou seja, são elementos constitutivos da responsabilidade civil extracontratual: (1) a existência de um facto voluntário, (2) a ilicitude da conduta, (3) a imputação subjetiva do facto ao agente e (4) a existência de um dano, (5) o nexo de causalidade entre o facto e o dano, só surgindo o dever de indemnizar quando, cumulativamente, se verifiquem tais requisitos.
O primeiro elemento pressupõe um facto voluntário violador de um dever geral de abstenção ou uma omissão que viola um dever jurídico de agir, isto é, um facto objectivamente controlável pela vontade (excluindo-se assim os casos de força maior ou por circunstâncias fortuitas). O segundo elemento (ilicitude) consiste na violação de direitos subjectivos (reais, de personalidade, familiares), de leis que protegem interesses alheios, particulares ou colectivos exprimindo a ilicitude fundamentalmente um juízo de reprovação e prevenção. O dano é a perda sofrida por alguém em consequência do facto, seja o dano real ou patrimonial. Finalmente, é necessário que o facto seja em abstracto ou em geral causa do dano (ou uma das causas), isto é, que este dano seja uma consequência normal ou típica daquele, tendo em conta as circunstâncias reconhecíveis por uma pessoa normal ou as efectivamente conhecidas do lesante. ----Prescreve o n.º 1 do artigo 342.º, do Código Civil, que "Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado", ou seja, regra geral compete à parte demandante a prova da verificação dos requisitos dos pressupostos da responsabilidade civil. Ora, produzida a prova o demandante não logrou provar a dinâmica por si alegada do modo como ocorreu o acidente. Não provou que o veículo RT tenha intervindo no acidente, designadamente colidido na traseira do UL e provocado a sua projeção para o passeio existente à sua esquerda, embatendo em dois semáforos e provocado a queda de um deles.
E, não o tendo provado, a sorte da presente ação terá de ser a sua improcedência.
***
DECISÃO
Em face do exposto, julgo a presente ação improcedente, por não provada e, consequentemente, absolvo a demandada do pedido.
***
CUSTAS
Custas pelo demandante, que deverá proceder ao pagamento de € 35 (trinta e cinco euros), no prazo de três dias úteis, a contar da data da notificação desta sentença, sob pena do pagamento de uma sobretaxa diária de € 10 (dez euros) por cada dia de atraso.
Cumpra-se o disposto no número 9 da mesma portaria, em relação à demandada.
***
A presente sentença (processada em computador, revista e impressa pela signatária – art.º 18.º da citada Lei n.º 78/2001) foi proferida e notificada ao demandante e seu mandatário, nos termos do n.º 2 do artigo 60.º, da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, com a redação que lhe foi atribuída pela Lei n.º 54/2013, de 31 de Julho, que ficou ciente de tudo quanto antecede.
Notifique demandada e sua mandatária.
Registe.
***
Julgado de Paz de Lisboa, 12 de junho de 2018
A Juíza de Paz,

______________________________
(Sofia Campos Coelho)