Sentença de Julgado de Paz
Processo: 423/2016-JP
Relator: FERNANDA CARRETAS
Descritores: TRESPASSE – INCUMPRIMENTO – EXISTÊNCIAS
Data da sentença: 06/28/2017
Julgado de Paz de : SEIXAL
Decisão Texto Integral: SENTENÇA

RELATÓRIO:
A, identificada a fls. 1 e 3, intentou, em 12 de dezembro de 2016, contra B, melhor identificada, também, a fls. 1 e 3, a presente ação declarativa de condenação, pedindo que esta fosse condenada a pagar-lhe a quantia de 1.195,70 € (Mil, cento e noventa e cinco euros e setenta cêntimos), relativa às existências de material com que ficou, acrescida de juros de mora vencidos, no montante de 128,15 € e dos vincendos, ambos calculados à taxa legal de 4%, até efetivo e integral pagamento, assim como nas custas judiciais e nas custas de parte.
Para tanto, alegou os factos constantes do Requerimento Inicial de fls. 1 a 6, que aqui se dá por reproduzido, dizendo, em síntese, que celebrou com a Demandada contrato-promessa de Trespasse de um estabelecimento de que era dona e legitima possuidora no dia 8 de outubro de 2013, o qual foi formalizado pelo contrato definitivo celebrado em 1 de março de 2014, sendo o valor do trespasse de 11.500,00 € (Onze mil e quinhentos euros); que o valor total das existências à data da outorga do contrato de Trespasse correspondia ao montante global de 5.978,58 €, valor que foi convencionado e aceite por ambas as partes; uma vez que a Demandada necessitava ficar com material em loja, foi convencionado entre as partes que a trespassária ficaria com existências no montante de 2.500,00 € podendo escolher o que mais lhe interessasse e devolvendo o restante, em dinheiro ou em material; teria assim de pagar ou devolver à Demandante existências no montante de 3.478,58 €, mas apenas devolveu artigos no valor total de 2.282,81 €, ficando em dívida o montante de 1.195,70 € (Mil, cento e noventa e cinco euros e setenta cêntimos), valor que nunca pagou à Demandante, apesar de instada ao seu pagamento.
Juntou 10 documentos (fls. 7 a 30) que, igualmente, se dão por reproduzidos.
A Demandada foi, pessoal e regularmente, citada para contestar, no prazo, querendo, tendo apresentado a douta contestação de fls. 54 a 61, que se dá por reproduzida, dizendo, em síntese, que o valor das existências não foi convencionado pelas partes, uma vez que, à data da assinatura do contrato definitivo, a Demandada não tinha conhecimento do valor das existências; o contrato foi celebrado “ingenuamente” com base no princípio da confiança e da boa-fé, razão pela qual apenas foi elaborado previamente o Anexo I, sendo que o Anexo II, previsto no contrato nunca foi elaborado; em 9 de março de 2014, a Demandada solicitou à filha da Demandante a lista de existências, a qual lhe foi enviada no dia 10 do mesmo mês; em 19 de março de 2014, a Demandada comunicou à filha da Demandante que não concordava com valores apresentados e solicitou diversos documentos e o balancete do ano de 2014, pois deveria ser com base em tais documentos que os valores seriam atribuídos; a Demandada aceitou, em sede de negociação do contrato-promessa, que o valor global do trespasse de 11.500,00 €, fosse dividido, sendo 9.000,00 € de imobilizado e 2.500,00 € para as existências; mas aceitou, partindo do pressuposto de que lhe seriam disponibilizadas as faturas e os documentos que demonstrassem tais valores de custo dos bens; o que, até à data, não aconteceu, apesar das solicitações; o que aconteceu foi que a Demandante atribuiu tanto ao equipamento constante do anexo I, como às existências os valores que entendeu, sem ter sequer em consideração a desvalorização dos mesmos; questão que foi debatida entre as contabilistas de ambas as partes; a Demandada escolheu o que, efetivamente, lhe interessava das existências, mas nunca aceitou os valores apresentados pela Demandante; o equipamento informático de faturação que fazia parte do imobilizado, não se encontrava de acordo com as regras vigentes, à data da celebração do contrato; o software de faturação e o respetivo equipamento informático não obedecia à legislação vigente no ano de 2014, estava obsoleto e não suportava uma atualização, o que originou que a Demandada tivesse de adquirir um outro equipamento de faturação, pois não poderia iniciar a atividade sem tal; teve, por isso, de suportar um custo aproximado de 1.500,00 € no novo equipamento de faturação, devolvendo o equipamento que estava no estabelecimento à Demandante; tal informação nunca lhe foi transmitida pela Demandante; também a fotocopiadora avariou, porque, segundo a empresa com a qual deveria celebrar contrato de manutenção, se recusou a fazer novo contrato por, alegadamente, existirem dívidas; após a avaria da máquina a Demandada teve de adquirir uma nova; foi a Demandante quem incumpriu o contrato desde o seu início; a Demandada pagou o preço acordado, na assinatura do contrato, sendo certo que o imóvel lhe foi entregue muito depois e, ainda assim, ocupado por equipamento profissional do marido da Demandante; a Demandada teve de insistir para que tal equipamento e material fossem retirados do estabelecimento; a Demandada nada deve à Demandante e respondeu à carta que esta lhe enviou, através da sua mandatária. Termina pedindo que a a ação seja considerada improcedente, por não provada, e em consequência seja a Demandada absolvida do pedido e, caso o Tribunal assim não entenda, em alternativa, deverá a Demandada ser ressarcida do valor do equipamento informático e de faturação que foi obrigada a adquirir, em virtude daquele que lhe foi deixado na loja não se encontrar dentro das normas legais em vigor à data do contrato definitivo.
Juntou 5 documentos (fls. 62 a 69 e 146 e 147) que, igualmente se dão por reproduzidos.
A Demandante pronunciou-se sobre o pedido formulado em alternativa pela Demandada, nos termos consignados a fls. 89 a 95, que constitui, em grande parte, resposta à contestação, pelo que apenas serão considerados os artigos de resposta ao referido pedido, tendo-se por não escritos os restantes.
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A questão a decidir por este tribunal circunscreve-se à obrigação da Demandada de pagar à Demandante o preço das existências com que, além das que escolheu, ficou, após a escolha efetuada por si. Caso a ação proceda, cabe-nos decidir se a Demandada tem direito a ser ressarcida pelas alegadas despesas que teve de efetuar para adquirir equipamento informático adequado à faturação.
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Tendo a Demandante optado pelo recurso à Mediação para resolução do litígio, foi agendado o dia 27 de dezembro de 2016, para a realização da sessão de Pré-Mediação (fls. 36), a qual não se realizou, por justo impedimento da Demandada. Tendo em consideração que a Demandada continuava de baixa médica, podendo ausentar-se do seu domicílio, com autorização médica, foi ordenada a marcação da sessão de Pré-Mediação (fls. 98), tendo sido agendado o dia 18 de abril de 2017 para o efeito. A referida sessão foi dada sem efeito a requerimento da Demandada que, posteriormente, afastou este meio de resolução alternativa de litígios (fls. 118).
Não obstante a Demandada ter juntado aos autos novo Certificado de Incapacidade Temporária e tendo em consideração que tal incapacidade não a impedia de se ausentar do seu domicílio, foi designado o dia 18 de maio de 2017 para a realização da Audiência de Julgamento e não antes, devido à ausência da signatária, em acumulação com o Julgado de Paz de Óbidos (Agrupamento) - (Fls. 131).
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Aberta a Audiência e estando presente a Demandante – Sra. D. A -, acompanhada da sua Ilustre mandatária – Sra. Dra. C - e a Demandada – Sra. D. B – também acompanhada da sua Ilustre mandatária – Sra. Dra. D -, foram todos ouvidos, nos termos do disposto no art.º 57 da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, com a redação que lhe foi dada pela Lei n,º 54/2013, de 31 de julho (LJP), tendo-se explorado todas as possibilidades de acordo, nos termos do disposto no art.º 26.º do referido diploma legal, o qual não se revelou possível, pelo que se procedeu à realização da Audiência de Julgamento, com observância do formalismo legal, conforme da respetiva ata melhor se alcança.
Devido à necessidade de ponderação da prova produzida e ao adiantado da hora, por referência ao horário de encerramento do tribunal, foi a audiência suspensa e designada a presente data para a sua continuação, com prolação de sentença.
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Estando reunidos os pressupostos da estabilidade da instância, cumpre apreciar e decidir:
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FUNDAMENTAÇÃO - MATÉRIA DE FACTO
A convicção probatória do tribunal, ficou a dever-se ao conjunto de prova produzida nos presentes autos, tendo sido tomadas em consideração as declarações das partes na audiência de julgamento e os documentos juntos por ambas as partes.
Foram, ainda, tomados em consideração os depoimentos das seguintes testemunhas, as quais, conquanto pouco trouxessem aos autos sobre a matéria controvertida, revelaram credibilidade e conhecimento direto dos factos sobre os quais recaiu o seu depoimento. Assim:
1.ª E, que, aos costumes, declarou ser filha da Demandante e conhecer a Demandada por ter sido quem acompanhou o negócio; fez o apuramento das existências e atribuiu os respetivos valores aos produtos.
2.ª F, que, aos costumes, declarou ser marido da Demandante e que também acompanhou o negócio, sobretudo na fase da sua concretização.
3.ª G, que, aos costumes, declarou ser pai da Demandada.
4.ª H, que, aos costumes, declarou ser o proprietário do imóvel onde o estabelecimento está instalado.
Com interesse para a decisão, ficaram provados os seguintes factos:
1. A Demandante era dona e legítima possuidora de um estabelecimento comercial de Papelaria, com a designação comercial de “Papelaria I”, instalado na Loja x, x, do prédio urbano sito na Rua x, n.ºs x a x, em x, na Arrentela, concelho do Seixal;
2. A Demandante e a Demandada celebraram contrato promessa de trespasse do referido estabelecimento, datado de 8 de outubro de 2013, tendo as negociações sido dirigidas pela filha e pelo marido da Demandante (Doc. n.º 1);
3. De acordo com o referido contrato, a Demandada pagaria ao senhorio a renda de 350,00 € (Trezentos e cinquenta euros) – idem;
4. O trespasse abrangia a entrega da chave; cedência de todas as licenças e todas as demais coisas existentes no estabelecimento á data da celebração do contrato definitivo, cuja lista foi junta ao contrato como Anexo I, fazendo parte integrante do contrato (idem – cláusula 2.ª);
5. O preço do trespasse era de 11.500,00 € (Onze mil e quinhentos euros) e seria pago em duas parcelas de 500,00 €, com a assinatura do contrato promessa e 11,000,00 €, com a assinatura do contrato definitivo (idem/Cláusulas 4.ª e 5.ª);
6. Declarava a Demandante que tinha conhecimento que a Demandada se candidatava ao programa de criação do próprio emprego, junto dos serviços da Segurança Social, pelo que acordaram as partes que o contrato e o definitivo só produziria efeitos e seria celebrado, caso a referida candidatura seja aceite e aprovada (idem – cláusula 6.ª);
7. Do anexo I do contrato promessa constam os vários equipamentos, incluindo software winmax pro Gestão e winmax pro shop (idem);
8. A nenhum dos equipamentos foi atribuído valor (idem);
9. No dia 7 de outubro de 2013, a Demandada em comunicação eletrónica enviada à filha da Demandante, mostrava-se perplexa em virtude o marido da Demandante lhe ter dito que, com 500,00 € de existências, ficaria com a loja vazia, uma vez que o que tinha dito era que aumentava aquela quantia ao valor do trespasse de 11.000,00 € e que chegariam a acordo quanto às existências de material para venda, separando aquelas com que ficava e as que poderiam ser rentabilizadas pela Demandante (fls. 23);
10. Mais dizia que esperava que ficasse claro, como foi sempre sua intenção, que o valor do trespasse engloba equipamentos e existências, sendo que uma pequena parte das existências poderiam não ficar na loja, mas que seria algo a combinar entre as partes no próprio local, conforme estabelecido telefonicamente quando da aceitação da proposta (idem);
11. Em 8 de outubro de 2013, às 22horas41m, a filha da Demandante respondeu à Demandada, referindo que teria havido algum mal-entendido na conversa telefónica, uma vez que a Demandada lhe tinha dito que pagava 11.000,00 € pelo imobilizado e que, uma vez que necessitava de existências, daria mais 500,00 € para compra das mesmas, as quais escolheria na altura (fls. 25;
12. Reconhecendo que poderia haver deficiência de comunicação e atento o seu interesse no trespasse, propunha que, uma vez que o valor do imobilizado era de 9.000,00 €, a Demandada ficasse com existências no montante de 2.500,00 € (preço de custo), das quais teria toda a liberdade de escolher as que mais lhe interessasse (idem);
13. Na mesma data, às 22h48m, a Demandada respondeu nos termos consignados a fls. 24, reiterando o que já havia dito; dizendo que também tinha todo o interesse e expetativa na celebração do contrato; manifestava as suas preocupações sobre o contrato de arrendamento; declarava aceitar a sugestão quanto aos valores atribuídos ao imobilizado e às existências e pedia indicação sobre quando poderiam assinar o contrato, uma vez que pretendia apresentar a sua candidatura na semana seguinte e que o contrato faria parte da mesma (Doc. fls. 24);
14. No dia 9 de outubro de 2013, a filha da Demandante, respondeu dizendo que o mal-entendido estava, então, resolvido e que, para não atrasar mais o processo, tinha falado com o pai (marido da Demandante); que não era necessário a situação ficar por escrito, uma vez que confiavam na palavra da Demandada e que a sua mãe (a demandante) assinaria o contrato na referida data, podendo a Demandada ir buscá-lo (Doc. fls. 26);
15. A Demandada respondeu, na mesma data, dizendo que no dia 9 ou no dia 10 de outubro passaria pela loja para assinar o contrato e entregar o cheque do sinal (idem);
16. Em 9 de março de 2014, a Demandada enviou à filha da Demandante pedindo que lhe indicasse se tinha alguma previsão de quando poderia enviar a lista das existências, pois a sua contabilista também precisava dessa informação (Doc. fls. 27);
17. Em 10 de março de 2014, a filha da Demandada a comunicação eletrónica de fls. 28 e 29, na qual referia que “segundo percebi da conversa telefónica que teve com o meu pai existem algumas dúvidas da sua parte em relação às existências do trespasse. Pelo que ficou combinado, a B ficaria de escolher 2.500,00 € em existências uma vez que não iria ficar com as existências todas”; reenvia o mail de 8 de outubro de 2013 e, achando que a situação tinha ficado muito bem esclarecida, enviava a lista das existências, das quais a Demandada deveria escolher as que entendesse, no valor de 2.500,00 €;
18. A Demandada respondeu, na mesma data, dizendo que não estava indignada, mas que a loja tinha-lhe sido entregue com tudo e que chegou a perguntar ao marido da Demandante quando iam fazer a escolha, mas que a questão era que não fazia ideia do custo dos produtos e que tinha sido abordada telefonicamente pelo marido da Demandante em termos que não compreendeu; que, logo que possível faria a escolha, uma vez que, no momento, estavam a pintar a loja (idem);
19. No dia 19 de março de 2014, a Demandada enviou à filha da Demandante a comunicação eletrónica de fls. 30, na qual lhe enviava a lista das devoluções; levantava a questão de o imobilizado ter sido elaborado com os valores de junho de 2013, sendo que os valores a atribuir teriam de ser os do balanço atual; levantava dúvidas sobre a existência do equipamento e lhe comunicava que o computador estava obsoleto, uma vez que o sistema operativo já não será suportado pela Microsoft a partir de abril, pelo que tinha de adquirir um outro, pelo que lhe comunicava que juntaria o computador aos artigos devolvidos;
20. O contrato definitivo foi celebrado em de 1 de março de 2014, sendo certo que, em 10 de março de 2014, ainda a Demandada não estava de posse da Lista de Existências e respetivos preços, devendo tal lista constituir o Anexo II, que deveria fazer parte integrante do contrato promessa e do contrato definitivo;
21. O Anexo I, anexo ao contrato definitivo e que dele faz parte integrante, atribuiu ao imobilizado os valores dele constantes (Doc. n.º 1, junto à contestação);
22. Não obstante declarar-se no contrato que o Anexo I e o Anexo II fazem parte integrante do contrato, o certo é que o Anexo I só foi elaborado e assinado no dia 19 de março de 2014 e o valor do equipamento cifra-se no total de 8.460,60 € (Oito mil, quatrocentos e sessenta euros e sessenta cêntimos), quando o valor acordado era de 9.000,00 € (Nove mil euros) – idem;
23. Regista-se, assim, uma diferença de 539,40 € (Quinhentos e trinta e nove euros e quarenta cêntimos), por referência ao preço acordado;
24. Do referido Anexo não constam já os expositores de cartolinas; a máquina de etiquetar e os softwares de gestão e de loja, desconhecendo-se o seu valor;
25. Como em nenhum dos anexos (o do contrato promessa e o do contrato definitivo), consta o computador (idem);
26. A Demandante atribuiu às existências de produtos da loja o montante total de 5.978,58 € (Cinco mil, novecentos e setenta e oito euros e cinquenta e oito euros) - Doc. n.º 2;
27. A Demandada devolveu existências, no montante de 2.282,91 e (Dois mil, duzentos e oitenta e dois euros e oitenta e um cêntimos), por referência ao valor fixado pela Demandante e bem assim o computador, de valor não determinado – Doc. n.º 3;
28. Verifica-se uma diferença de 1.195,77 € (Mil, cento e noventa e cinco euros e setenta e sete cêntimos) entre o valor de existências que a Demandada devia devolver e o que devolveu, sempre tendo por referência os valores atribuídos pela Demandante e que a Demandada nunca aceitou;
29. A Demandada nunca pagou o referido valor à Demandante, apesar de instada para o fazer (Doc. n.º 4);
30. À data da assinatura do contrato, a Demandada não tinha conhecimento do valor que a Demandante atribuía às existências, não tendo o mesmo sido negociado entre as partes;
31. Nem tendo sido exibidos os comprovativos dos valores da mercadoria;
32. Ao aceitar que ficaria existências no montante de 2.500,00 €, a Demandada desconhecia o valor das mesmas e a forma do seu apuramento, uma vez que nenhum documento lhe foi exibido que confirmasse o valor que a Demandante lhes atribuiu;
33. Por isso solicitou tais documentos relativos ao equipamento e às existências, sendo certo que, quanto ao imobilizado, não foi tida em conta a desvalorização do mesmo;
34. Em 10 de abril de 2014, a contabilista da Demandada, enviou-lhe comunicação eletrónica em que lhe dava conta das várias anomalias relativas ao valor atribuído ao equipamento e à forma como havia sido apurado (Doc. n.º 2);
35. A Demandada adquiriu um computador, pelo qual pagou a quantia de 362,85 € (Trezentos e sessenta e dois euros e oitenta e cinco cêntimos) – Doc. fls. 146;
36. A Demandada só recebeu as chaves da loja cerca de dez dias, após a celebração do contrato;
37. Ainda assim, encontrava-se na loja equipamento da atividade profissional do marido da Demandante;
38. A Demandada respondeu à interpelação para pagamento da quantia alegadamente em dívida, através de carta enviada à Demandante pela sua mandatária, no dia 2 de maio de 2014, dizendo que, atenta a natureza do contrato de trespasse, a Demandada havia cumprido o contrato e nada lhe devia (Doc. n.º 3);
39. A Demandada pagou o total do preço acordado;
Não resultaram provados quaisquer outros factos, alegados pelas partes ou instrumentais, com interesse para a decisão da causa.
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FUNDAMENTAÇÃO - MATÉRIA DE DIREITO
Ancorando a sua pretensão num alegado incumprimento do contrato de trespasse de um estabelecimento comercial de que era proprietária que, com a Demandada celebrou, vem a Demandante pedir a condenação daquela no pagamento da quantia de 1.195,70 € (Mil, cento e noventa e cinco euros e setenta cêntimos), acrescida de juros vencidos (não diz desde quando são contados) e vincendos, até integral e efetivo pagamento.
Alega que as partes acordaram no valor das existências de mercadorias; que a Demandada escolheria mercadorias no valor de 2.500,00 € (Dois mil e quinhentos euros) e que devolveria as restantes, sendo que lhe devolveu mercadorias em quantia inferior à que devia devolver.
A Demandada, por seu turno, vem dizer que nada lhe deve, ancorando-se na definição do contrato de trespasse e bem assim, na forma anómala como as negociações e o próprio contrato se desenrolaram.
Computando os prejuízos que alegadamente teve, vem a Demandada requerer, em alternativa que, caso a ação proceda, o tribunal condene a Demandante a pagar-lhe a quantia relativa ao valor do equipamento informático e de faturação que foi obrigada a adquirir, em virtude de aquele que lhe foi deixado na loja não se encontrar dentro das normas legais em vigor, à data do contrato definitivo.
Vejamos, então:
A doutrina define estabelecimento comercial como uma “empresa que abarca o conjunto de todas as relações jurídico-comerciais que se ligam à actividade do comerciante.” (Prof. Pinto Coelho, em “Lições de Direito Comercial” I, 3.ª edição, 82; Prof. Vaz Serra – RLJ 102-103 e A. Varela – RLJ 102-75 e Orlando Carvalho, RLJ 110-102).
A lei não define trespasse, caracterizando-o como a transmissão de estabelecimento comercial ou industrial por ato entre vivos da posição de arrendatário, sem dependência de autorização do senhorio, a pessoa que no prédio arrendado continue a exercer a mesma profissão liberal, ou a sociedade profissional de objeto equivalente (art.º 1112.º, n.º 1, als. a) e b), do Código Civil).
Assim, o contrato de trespasse carateriza-se pela transmissão definitiva e, em princípio onerosa, para outrem, juntamente com o gozo do prédio, da exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado: implica a transferência comercial em conjunto com as instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o estabelecimento e que, transmitido o gozo do prédio, nele se continue a exercer o mesmo ramo de comércio ou indústria (por todos, douto Acórdão do STJ; Aragão Seia, Coletânea de Jurisprudência, Supremo Tribunal de Justiça, Ano IV, Tomo II, pág. 42).
Significa isto que o trespasse tem de envolver um estabelecimento que esteja pronto para o exercício da atividade a que se destina, o que inclui também mercadorias para o giro comercial.
Neste caso, as partes convencionaram o preço do trespasse atribuindo, no âmbito da autonomia privada e da liberdade contratual, um valor ao imobilizado e outro às existências em stock.
Acontece que, aqui, como em tantas outras coisas na vida se cumpriu a lei de Murphy (se alguma coisa pode correr mal, ela vai correr mal). De facto, resulta provado que a forma como se desenvolveram as negociações e a própria formação da vontade contratual, violaram frontalmente o princípio da boa-fé contratual, como ele é vertida no art.º 227.º, do CC que dispõe que “Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte.”.
De facto, face à matéria de facto dada como provada, não pode a Demandante alegar que cumpriu o contrato e que a Demandada o incumpriu.
Em primeiro lugar, o contrato promessa celebrado previa a existência de dois anexos, sendo certo que desses dois apenas o Anexo I, foi entregue e, ainda assim, incompleto e diferente daquilo que viria a ser o Anexo I anexo ao contrato definitivo e dezanove dias após a assinatura do contrato.
Quanto às existências, nunca a respetiva lista foi elaborado por acordo entre as partes, sendo certo que, em ambos os ambos os contratos celebrados apenas se refere “Material diverso de papelaria”.
Resulta, ainda, claro que a lista de existências não só foi elaborada pela Demandante (pela sua filha que a representou no negócio), sem qualquer suporte documental, conforme lhe foi pedido pela Demandada, como apenas foi entregue após a formalização e assinatura do contrato definitivo, o mesmo ocorrendo com o anexo I.
Ao que acresce que, tendo as partes acordado um valor global para o equipamento, no Anexo I, também elaborado pela Demandante, o valor é inferior ao valor acordado, registando-se uma diferença de mais de quinhentos euros, para menos.
E que, o equipamento constante do Anexo I ao contrato promessa, não corresponde ao equipamento constante do Anexo I do contrato definitivo, havendo vários itens que estão em falta, conforme resulta provado.
Ora, para que a Demandada pudesse ter livremente formado a sua vontade negocial era determinante que os contratos (promessa e definitivo) tivessem sido elaborados com os Anexos que deles faziam parte integrante e que – embora apenas para consulta – não fosse vedada à Demandada a possibilidade de conferir os valores atribuídos, pela Demandante, aos vários itens do Anexo II que, repete-se, nunca foi elaborado e a famigerada lista apenas foi entregue à Demandada cerca de 10 dias após a assinatura do contrato.
Isto para não falarmos já do facto – que a Demandada não logrou provar – de o equipamento de faturação e de loja ser obsoleto, atentas as exigências fiscais a este propósito.
Aliás, é sabido que as exigências fiscais quanto à faturação e ao equipamento necessário, sobretudo desde o ano de 2012, foram determinantes para o encerramento de algum comércio de rua, pelas despesas que a atualização e a adequação às novas regras implicavam.
Como esse facto não resultou provado, não podemos afirmar que a Demandante se quis livrar do negócio por essas razões por deixar de ser rentável, mas a verdade é que não podemos fugir a um certo desconforto e sentimento de reprovação pela forma como o negócio, tanto nos preliminares, como na sua formação foi conduzido.
Tanto mais que a Demandante declarou ter perfeito conhecimento de que a Demandada estava a celebrar o negócio no âmbito da candidatura à criação do próprio emprego, situação que gera sempre enorme ansiedade pelas exigências de que se reveste e que era extremamente importante para si a celebração do negócio.
Resulta, ainda claro que a Demandada nunca se conformou com o valor atribuído ao equipamento e às existências e que sempre pediu que lhe fosse apresentado o suporte documental para o seu apuramento.
E nem se diga, como o diz a Demandante, que aceitou o valor das existências na sua comunicação eletrónica de 8 de outubro de 2013.
Em primeiro lugar porque não conhecia a lista de existências nem o valor dos materiais que a compunham.
Em segundo lugar, porque decorre de todas as comunicações trocadas, que a Demandada nunca aceitou o valor atribuído pela Demandante às existências (e também ao imobilizado), sendo certo que, ao contrário, sempre solicitou suporte documental para o seu apuramento. Suporte documental ou outro, que nunca lhe foi fornecido pela Demandante.
Tal reação apenas se verificou após a assinatura do contrato definitivo, porque só após esse momento (bastante após) ficou de posse dos elementos que lhe permitiam fazer uma discussão mais séria dos valores acordados.
Por conseguinte, sem necessidade de maiores indagações, verifica-se que a Demandante não cumpriu o contrato a que se vinculara, incumprimento que teria consequências, como as que se vieram a verificar e poderia ter tido consequências mais nefastas para si, uma vez que a Demandada poderia ter pedido a anulação do contrato e poderia ter pedido indemnização pelos danos causados, o que não fez.
No que à presente decisão importa, conclui-se que a Demandante não provou, como lhe competia, que as existências tinham o valor que lhe atribuiu, tendo ademais, incumprido o contrato nesse particular, e, por consequência, não provou quer os valores do material devolvido; quer do material que a Demandada escolheu, pelo que não pode deixar de improceder o pedido que formulou.
De facto, na normalidade das coisas, o trespasse teria um valor global, que incluiria, obviamente, tudo o que se encontrasse no estabelecimento, mas neste caso a Demandante optou por celebrar o contrato da forma que o formalizou, autonomizando imobilizado e existências e, fazendo-o, teria de se conformar com as mais elementares regras da boa-fé contratual, o que não ocorreu.
Um contrato é o encontro de duas ou mais vontades e todo o seu conteúdo tem de ser objeto de acordo entre os contraentes, pelo que não podia a Demandante, como o fez, recusar-se a fornecer à Demandada os elementos que lhe permitissem, antes da assinatura do contrato, verificar os valores com que se estava a comprometer.
O tribunal sabe que a Demandada estava economicamente limitada pela aprovação da candidatura à criação do próprio emprego, o que terá forçado o aguçar da criatividade da Demandante para concretizar o negócio, mas essa não pode ser a desculpa para a forma como o contrato – repete-se, quer na sua formação quer na sua execução – foi celebrado.
E, o tribunal também sabe que não houve, neste caso, dolo e que tudo terá resultado de um conjunto de circunstâncias adversas, mas isso não impede que se surpreenda com a leviandade com que as pessoas celebram contratos, sem qualquer apoio jurídico ou de outro técnico.
Improcedendo a ação, como improcede, fica prejudicada a análise do pedido de condenação no pagamento de juros de mora (aliá, não contestados) e do pedido alternativo formulado pela Demandada, para o caso de a ação proceder.
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DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos invocados, julgando a presente ação totalmente improcedente, porque não provada, decido absolver a Demandada do pedido contra si formulado pela Demandante.
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As custas serão suportadas pela Demandante (art.º 8.º da Portaria n.º 1456/2001, de 28 de Dezembro).
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Registe.
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Seixal, 28 de junho de 2017
(Juíza de Paz que redigiu e reviu em computador – Art.º 131.º/5 do C.P.C.)
(Fernanda Carretas)