Sentença de Julgado de Paz
Processo: 1042/2010-JP
Relator: MARIA JUDITE MATIAS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
Data da sentença: 05/19/2011
Julgado de Paz de : LISBOA
Decisão Texto Integral: Sentença
(n.º 1, do art. 26º, da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho)

Matéria: Acções que respeitem a à responsabilidade civil.
(alínea h), do n.º 1, do art. 9º, da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho)
Objecto: Violação do direito ao descanso devido ao barulho provocado por animais dentro de fração autónoma.
Valor da Acção: €500,00 (Quinhentos euros)
Demandante: A
Mandatária: B
Demandada: C
Mandatário: D
Do requerimento inicial: de fls.1 a fls.5.
Alega o demandante que a demandada mantém na sua fração dois canídeos de porte pequeno, um caniche e um podengo, deixados sozinhos em casa todo o dia, que ganem e ladram ao som da campainha ou quando sentem a presença de alguém no 4.º andar, permanecendo assim durante horas sem ninguém que os acalme; a fração da demandada situa-se imediatamente por cima da sua, sendo o ruído produzido pelos cães incomodativo e, quase sempre, insuportável, provocando – lhe ansiedade e stress, alteração do sono, impossibilidade de concentração nas suas actividades intelectuais,que desenvolve em casa, como professor universitário, estando a sua qualidade de vida bastante afetada, como melhor explicita no requerimento inicial de fls. 1 a 5, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
Pedido: a fls.5.
Pede que a demandada seja condenada:
a) A levar a cabo as diligências necessárias destinadas a evitar a produção de ruído por parte dos canídeos, ou, caso tal não seja possível, a proceder à definitiva remoção dos referidos animais da fração;
b) No pagamento de uma indemnização ao demandante por danos não patrimoniais num valor não inferior a €500,00;
c) A suportar as custas da presente ação.
Junta: 4 documentos
Contestação: de fls. 18 a fls.24 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
Tramitação:
As partes aderiram à mediação, tendo esta sido realizada em 29 de Dezembro de 2010, durante a qual não lograram obtenção de acordo suscetivel de pôr fim ao litigio, pelo que foi marcada audiência de julgamento para o dia 24 de Março, de 2011, pelas 17h, sendo as partes devidamente notificadas para o efeito.
Audiência de Julgamento.
A audiência decorreu conforme acta de fls. 54 a 67.
Fundamentação fáctica.
Com relevância para a decisão da causa dão-se por provados os seguintes factos:
1 – O demandante e a demandada residem no mesmo prédio, situando-se a fração da demandada no 4.º andar e a do demandante no terceiro andar, imediatamente abaixo da fração da demandada;
2 – A demandada possui e mantém na sua fração dois cães de porte pequeno;
3 - A demandada sempre teve um cão na sua fração ;
4 - Até dado momento o cão fazia ruído, reagindo aos barulhos de forma suportável;
5 - A partir de certa altura o barulho passou a ser insuportável e o demandante queixou-se à demandada;
6 - A demandada confinou o cão a uma divisão da fração situada no lado oposto à divisão da casa do demandante onde este estuda;
7 - Os esforços da demandada não sortiram o efeito desejado e o barulho continuou a ser insuportável;
8 - O demandante era obrigado a sair de casa por não suportar o barulho;
9 - A demandada levou outro cão para a sua fração passando a ter dois animais;
10 – Quando deixados sozinhos em casa, os cães ganem e ladram durante horas;
11 – Os cães são deixados sozinhos em casa frequentemente;
12 – O barulho dos cães provoca dentro da fração do demandante um ruído quase sempre insuportável;
13 – O demandante é professor universitário e desenvolve parte do seu trabalho no escritório em casa;
14 – Esse trabalho traduz-se na preparação das aulas, escreve livros e artigos;
15 - Por diversas vezes se viu impedido de trabalhar em casa devido ao barulho provocado pelos cães da demandada;
16 – O demandante abordou a demandada no sentido de solucionar o problema sem sucesso;
17 – O demandante recorreu à polícia apresentando queixa da qual deu conhecimento à demandada;
18 – A demandada nada fez para evitar os barulhos dos animais e o demandante voltou a apresentar queixa.
19 – O demandante teve necessidade de usar a casa de um amigo para preparar as suas aulas e escrever os artigos que publica dado não conseguir concentrar-se devido ao barulho provocado pelos cães.
Para tanto concorreram as declarações das partes proferidas em audiência, o depoimento das testemunhas e os documentos junto aos autos.
O Direito.
Dos factos supra dados por provados resulta que demandante e demandada vivem no mesmo prédio, sendo que a fração do demandante se situa no andar imediatamente abaixo do da demandada; que a demandada sempre teve um cão que só a partir de dada altura começou a ganir e a uivar quando está sozinho, reagindo a barulhos na escada ou ao toque da campainha; que o demandante se queixou à demandada e esta ficou de confinar o animal a uma divisão da casa situada no lado oposto àquele em que se situa o escritório do demandante, local onde estuda, sem que tivessem obtido os resultados desejados e que depois destas queixas a demandada adquiriu outro cão, agravando o ruído.
Não há quaisquer dúvidas, que dos factos provados resulta uma situação violadora de direitos fundamentais consagrados na Constituição da República Portuguesa e bem assim no Código Civil, em sede de Direitos de Personalidade. O direito ao repouso, tranquilidade e sossego, que cada pessoa necessita de desfrutar no seio da sua habitação, para restabelecer o equilíbrio físico, anímico e mental, que a vida do dia a dia provoca, é essencial à vida e realização plena do ser humano, variando as necessidades, no plano quantitativo e qualitativo, de pessoa para pessoa, em função da sua própria personalidade e situação pessoal. Por tal motivo, o descanso, a tranquilidade e o sono se inserem no direito à integridade física, consagrado no artigo 25.º, n.º 1, da CRP, bem como no artigo 66.º, direito ao ambiente e qualidade de vida, do mesmo diploma fundamental. No plano da lei ordinária, o direito ao repouso, enquanto direito de personalidade, encontra tutela no âmbito do artigo 70.º do Código Civil (A proteção da personalidade e dignidade humana decorre da Constituição da República Portuguesa, em vários planos da vida humana, conforme princípios constantes dos artigos 24.º, n.º 1, 25.º, 26.º, 64.º e 66.º, estando também consagrada a “tutela geral da personalidade”, no artigo 70.º, do Código Civil).
É consabido que no âmbito dos direitos fundamentais se incluem dois grupos, enquadrados uns nos direitos de natureza patrimonial e outros de natureza não patrimonial, sendo frequente o surgimento de conflitos entre direitos fundamentais, quer seja da mesma espécie quer não.
Ora, dado que a Constituição da República Portuguesa reconhece e assegura igualmente os direitos de natureza económica e a propriedade privada (artigos 61.º e 62.º, n.º 1, respectivamente, igualmente direito absoluto, previsto e regulado no Código
Civil nos artigos 1302.º e seguintes), sendo conflituantes entre si, há que dirimir o conflito daí decorrente. É o caso: o demandante invoca o direito ao sossego e à tranquilidade dentro da sua fração, condições necessárias para investigar, ler e escrever, atividades intelectuais necessárias à docência universitária e ao desenvolvimento da vida académica que constituem o seu modo de vida; a demandada reivindica o direito de ter na fração que lhe pertence, dois animais de raça canina, que ladram de uma forma que perturba o sossego e a tranquilidade do demandante, obrigando-o a sair de casa, não só para evitar o barulho como para desempenhar aquelas funções, na casa de amigos, estando privado de o fazer na sua própria casa.
Ora, não há dúvida que estamos perante o conflito de direitos que a lei reconhece a cada uma das partes. Ou seja, são conflituantes os direitos que aqui se reconhecem à demandada no âmbito do exercício do seu direito de propriedade, na perspectiva dos poderes que compõem o seu conteúdo, conforme o disposto no artigo 1305.º do Código Civil; e também há violação de direitos patrimoniais do demandante, no plano em não pode usufruir do seu direito de propriedade do modo que este preceito o perspectiva, dado que o gozo não está a ser pleno: o barulho dos animais obriga-o a sair da sua casa.
Na avaliação da colisão de direitos da mesma espécie, dispõe o artigo 335.º n.º 1, do Código Civil, que devem os direitos conflituantes ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.
Porém, no caso, o desconforto do demandante ultrapassa este plano, ou seja, vai além da colisão de direitos no plano em que conflituam enquanto direitos patrimoniais. O que verdadeiramente está em causa é a violação de direitos de personalidade, ou seja direitos de natureza não patrimonial.
Neste plano, há que ponderar os direitos que assistem ao demandante a ter, dentro da sua casa, sossego e tranquilidade, fruindo o direito ao silêncio que é razoável esperar num prédio em propriedade horizontal. Prescreve o n.º 2, do artigo 335.º, do CC. ”Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deve considerar-se superior”. É consabido que, na hierarquização dos direitos, fruto da hierarquia decorrente, nomeadamente, das normas constitucionais, aqueles que são iminentemente pessoais, como são os que afectam a personalidade, prevalecem em detrimento do direito de propriedade.
Estes condicionalismos não impedem a demandada de ter os cães na sua fração, o que não pode é deixá-los sós, sem ninguém que possa acalmá-los pondo cobro à violação do direito ao sossego e à qualidade de vida do demandante que resulta da situação descrita.
É que, um cão, dois ou três, a ladrar na rua, não é a mesma coisa que dois cães a ladrar dentro de um apartamento.
Assim se a demandada entender continuar a ter os cães, terá de levá-los consigo, sempre que sair, ou colocá-los à guarda de alguém, na sua ou noutra casa. Dir-se-á que é para a demandada um grande transtorno. Será. Mas a escolha é sua. Cabe-lhe a si escolher entre o prazer de ter os animais consigo sofrendo os transtornos pela eventual perda de liberdade. O que não pode é fazer recair sobre o demandante as consequências negativas da sua opção.
Em função da matéria fáctica dada por provada e do supra explanado em matéria de direito, encontram-se preenchidos os requisitos do artigo 483.º, do Código Civil, que consagra o princípio geral da Responsabilidade Civil por factos ilícitos, de acordo com o qual se determinam os pressupostos fundamentais deste instituto, a saber: 1) o facto; 2) a ilicitude; 3) o nexo de imputação do facto ao agente; 4) o dano; 5) o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Deste modo, ocorrerá uma situação de Responsabilidade Civil por facto ilícito, ou extracontratual, com a consequente obrigação de indemnizar, sempre que estejamos em presença de uma acção ou omissão dominável ou controlável pela vontade, violadora de um direito de outrem, ou de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, acção ou omissão contrária ao dever ser jurídico - social, ou seja, acto ou omissão contrária à conduta esperável por cada individuo, de modo a merecer censura do direito, resultando daí um prejuízo sofrido pelo lesado nos seus bens ou interesses jurídicos, quer sejam de natureza material quer espiritual, objectiva e concretamente causa do referido facto. O preenchimento destes requisitos dependem da prova que dos mesmos se faça, cabendo esta ao demandante, conforme o n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil, o que, conforme decorre do exposto foi plenamente conseguida. Assim como não temos quaisquer dúvidas quanto à razoabilidade do montante pedido a título indemnizatório. Deste modo, conforme e nos termos prescritos no n.º 3, do artigo 566.º, do CC, afigura-se justa a indemnização de €500,00.
Decisão.
O Julgado de Paz é competente, não foram suscitadas quaisquer excepções ou nulidades de que cumpra conhecer.
Em face do exposto, considero esta ação procedente por provada e em consequência, condeno a demandada a:
a) Não deixar os cães em casa desacompanhados;
b) Se a demandada deixar os cães desacompanhados e estes ladrarem, serão os mesmos removidos para o canil;
c) Pagar ao demandante a quantia de €500,00, a título de danos não patrimoniais.
Custas.
Nos termos da Portaria n.º 1456/2001, de 28 de Dezembro, alterada nos seus n.ºs 6.º e 10.º pela Portaria n. 209/2005, de 24 de Fevereiro, considero a demandada parte vencida, devendo pagar a este julgado de paz a quantia de €35,00, correspondentes à segunda parcela, de custas, no prazo de três dias úteis, sob pena do pagamento de uma sobretaxa de €10,00, por cada dia de atraso.
Cumpra-se o disposto no n.º 9, da referida portaria, em relação ao demandante.
A sentença foi proferida na presença do demandante e dos ilustres mandatários de ambas as partes, nos termos do artigo 60.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, ficando o mesmo ciente de tudo quanto antecede.
Julgado de Paz de Lisboa, em 19 de Maio de 2011
A Juíza de Paz
Maria Judite Matias