Sentença de Julgado de Paz
Processo: 178/2017JPCBR
Relator: DANIELA SANTOS COSTA
Descritores: RESTITUIÇÃO DA POSSE. BENS. FILHA.
Data da sentença: 08/09/2018
Julgado de Paz de : COIMBRA
Decisão Texto Integral: SENTENÇA


Proc. n.º 178/2017 – JPCBR

IDENTIFICAÇÃO DAS PARTES
Demandante: A;
Demandados: B e C.

OBJETO DO LITÍGIO
O Demandante intentou contra os Demandados a presente ação declarativa, enquadrável na alínea e) do nº 1 do Art. 9º da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, alterada pela Lei n.º 54/2013, de 31 de Julho, pedindo que a presente ação fosse julgada como provada e procedente e, em consequência, serem os Demandados condenados a entregarem-lhe a fração acima indicada bem como as respetivas chaves, bem como a viatura e as respetivas chaves e todas e quaisquer quantias que detenham na sua posse pertencentes à menor, tudo com as legais consequências.

Regularmente citados, os Demandados apresentaram contestação, conforme vertido a fls. 22 a 36, tendo impugnado os factos vertidos no RI, além de terem requerido a suspensão da presente instância, com fundamento em alegadas causas prejudiciais, o que foi objeto de indeferimento, conforme despacho de fls. 72, com o seguinte fundamento:
Tendo em conta que o Processo de Promoção e Proteção n.º xxxxx tem por objeto do litígio a proteção da menor D contra o perigo que o Demandante alegadamente representa, e atendendo que o objeto dos presentes autos consiste no reconhecimento do Demandante como responsável parental do património da menor e consequente devolução dos bens que se encontram na posse dos Demandados, indefiro a requerida suspensão da instância porquanto não tem este Tribunal competência material para apreciar a eventual inidoneidade do Demandante na gestão do património da sua filha menor, em caso de retirada definitiva da mesma do regime de convívio com o ora Demandante.”.

O Julgado de Paz é competente em razão da matéria, do objeto, do território e do valor.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não se verificam quaisquer exceções ou nulidades, nem quaisquer questões prévias, que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

Procedeu-se à realização da audiência de julgamento com observância do legal formalismo consoante resulta da Ata.

Valor da ação: € 5.000,01

FACTOS PROVADOS:
A. O Demandante, foi casado com E, de quem se divorciou em 10/07/2013;
B. Deste casamento, nasceu uma filha D, de 8 anos de idade;
C. E faleceu em 11/01/2016, tendo deixado como única e universal herdeira a sua filha D, tendo deixado bens, designadamente uma fração autónoma designada pela letra “XXX”, do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Eiras, sob o artigo XXX e uma viatura de marca ---, matricula XXXX;
D. Está pendente no Juízo de Família e Menores de Coimbra - Juiz 2, o Processo de Promoção e Protecção n.º XXXX, instaurado pelo Ministério Público a favor da menor D, enquanto ainda era viva a sua mãe, com quem residia habitualmente, e pelo facto de esta ser doente oncológica, encontrando-se, à data, nos cuidados paliativos;
E. O referido processo de promoção e protecção foi instaurado com o propósito de proteger a D da situação de perigo em que a mesma incorreria pela proximidade do Demandante, por ter este sido condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime de abuso sexual de uma outra filha menor de idade;
F. Por despacho proferido a 11.01.2016, foi aplicada, a título provisório, à menor D, a medida de promoção e proteção de apoio junto de pessoa idónea, designadamente do casal constituído por B e C, aqui demandados;
G. No âmbito desse despacho, foram os Demandados incumbidos de zelar pela saúde, formação e segurança da menor;
H. Por despacho emanado, a 19.09.2016, no âmbito do processo em causa, foi o Demandante reconhecido como o representante legal da filha D para efeitos patrimoniais, cujo teor se dá por integralmente reproduzido e provado a fls. 187 a 188;
I. Está pendente, no Juízo de Instrução Criminal de Coimbra - Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, o processo de inquérito n.º XXXX contra o Demandante por suspeita de abuso sexual e violência doméstica contra a filha D;
J. Por acórdão emanado a 27.04.2018, no Processo de Promoção e Protecção n.º XXXX, foi aplicada à menor D a medida de confiança a pessoa idónea, no caso, os Demandados, pelo período de 6 meses, cabendo a estes cuidar da criança, podendo o Demandante estar com a D, quinzenalmente, na presença de um técnico da EMAT;
K. Os Demandados encontram-se na posse do imóvel e das respetivas chaves da viatura, não entregando tais bens ao Demandante, para este poder colocar no mercado de arrendamento a mencionada fração e vender a viatura;
L. Para a aquisição da mesma fração, a falecida E, havia contraído um empréstimo junto do Banco Santander Totta, o qual tem que continuar a pagar a prestação do empréstimo, no valor mensal de € 175,00;
M. A renda da fração pode vir a ser na quantia mensal de € 300,00, importância essa necessária para fazer face ao pagamento do aludido empréstimo;
N. Os demandados fazem ainda a gestão da pensão que a menor D recebe mensalmente da Caixa Geral de Aposentações pela morte da sua mãe, no montante de €153,07, que utilizam para pagar as refeições escolares da menor, bem como as despesas com a água, luz e gás do imóvel;
O. Em 5 de Agosto de 2016, os demandados procederam à transferência de € 375,00 para a conta titulada pela falecida E, e a partir dessa mesma data, assumiram o pagamento da prestação mensal do empréstimo, no valor de € l75,00/mês, fazendo uma transferência mensal do referido montante para a referida conta;
P. O apartamento mantém a mobília das salas de estar e de jantar, do quarto, electrodomésticos, esquentador, fogão, exaustor, frigorífico/ combinado, máquinas de lavar roupa e louca, bem como todos os bens pessoais da E e as suas memórias, e os brinquedos da D;
Q. A D pede aos Demandados que a levem a sua casa, e ali fica por longos períodos de tempo a brincar com os seus brinquedos no seu quarto;
R. O demandante não procede ao pagamento da quantia acordada a título de pensão de alimentos em favor da menor, no valor de €125,00;
S. O Demandante também paga a prestação mensal do empréstimo em causa;
T. Os Demandados e o Demandante pagam as quotas de condomínio devidas.

FACTOS NÃO PROVADOS:
Não se provaram quaisquer outros factos alegados pelas partes, com interesse para a decisão da causa.

Os factos provados resultaram da conjugação dos documentos de fls. 5 a 15, 66 a 70, 107 a 134, 148 a 154, 156 a 177, 187 a 191, das declarações de parte do Demandante e dos Demandados e dos depoimentos prestados pelas testemunhas em sede de audiência final.
Quanto às declarações de parte, foram produzidas num elevado estado emocional, face aos factos em discussão e outros de natureza colateral, sendo notório o claro interesse de ambas as partes em fazer valer a sua versão. Não obstante isso, foi relevante para efeitos de apurar o que as partes têm feito para zelarem pelo património da filha do Demandante, nomeadamente quanto ao pagamento da prestação bancária pela aquisição a crédito do apartamento e das suas quotas de condomínio, bem como pela manutenção do veículo automóvel.
Quanto à prova testemunhal, da parte do Demandante foram ouvidas F e G.
Quanto à primeira, foi objeto de relevo, em sede de prova, porquanto é vizinha no prédio onde se localiza a fração dos autos, tendo deposto com naturalidade e espontaneidade.
Quanto à segunda testemunha, trata-se da irmã do Demandante, cujo depoimento foi igualmente valorado na medida em que demonstrou, de forma sincera e objetiva, estar ao corrente do que o Demandante faz para gerir o património da sua filha D.
No que tange às testemunhas indicadas pelos Demandados, depuseram H e I, irmãs da falecida ex-mulher do Demandante, que responderam de forma convicta quanto ao modo como o património da menor D tem sido detido pelos Demandados, nomeadamente quanto ao destino que está a ser dado ao apartamento, visto também irem lá regularmente quando se deslocam a Coimbra, ali pernoitando.
No que toca ao depoimento de J, foi pouco relevante para a descoberta da verdade porque apenas foi uma vez ao apartamento após a morte da mãe da menor D, só demonstrando saber determinados factos por intermédio de terceiros.
Quanto aos factos não provados, eles resultaram da ausência de prova ou de prova convincente sobre os mesmos.

ENQUADRAMENTO JURÍDICO
Nos presentes autos está em causa a apreciação do pedido do Demandante no sentido de lhe serem devolvidos os bens que compõem o património da sua filha menor e que estão a ser detidos pelos Demandados, a quem foi confiada, a título provisório, a guarda da mesma.
No n.º 1 do Art. 27º da Convenção sobre os direitos da Criança, ratificada por Portugal, reconhece-se à criança o direito a um nível de vida suficiente, de forma a permitir o seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social. Segundo o seu n.º 2, cabe primacialmente aos pais e às pessoas que têm a criança a seu cargo a responsabilidade de assegurar, dentro das suas possibilidades e disponibilidades económicas, as condições de vida necessárias ao desenvolvimento da criança.
A Constituição da República Portuguesa prescreve no n.º 5, conjugado com o n.º 6, do Art. 37º que os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos, não podendo ser separados de si, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.
O conteúdo dos poderes/deveres parentais encontra-se basicamente definido nos Artigos 1874º, 1878º e 1885º do Código Civil (CC), fazendo impender sobre os progenitores diversas obrigações que têm fundamentalmente em vista o crescimento harmonioso dos seus filhos, perspetivando toda a sua atuação para a defesa dos interesses destes últimos. Destes poderes/deveres, ressalta o que vem previsto na parte final do n.º 1 do Art. 1878º, segundo o qual compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens (sublinhado nosso).
No caso em apreço, a filha do Demandante encontra-se, por decisão judicial, confiada à guarda dos Demandados.
A Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo define a medida de confiança a pessoa idónea como a colocação da criança ou do jovem sob a guarda de uma pessoa que, não pertencendo à sua família, com eles tenha estabelecido relação de afetividade recíproca.
Por seu turno o DL n.º 12/2008, de 17 de Janeiro, regulamenta o regime de execução das medidas de promoção dos direitos e de proteção das crianças e jovens em perigo, respeitantes, entre outros, à confiança a pessoa idónea.
Na al. c) do Art. 4º do DL em causa define-se «Pessoa idónea», como sendo a pessoa que, não tendo qualquer relação familiar com a criança ou o jovem, com ela tenha estabelecido relação de afetividade recíproca e possua capacidade educativa e correspondente disponibilidade para lhe assegurar as condições necessárias ao seu desenvolvimento integral.
O n.º 2 do Art. 5º refere que a execução das medidas decididas em processo judicial é dirigida e controlada pelo tribunal, cabendo os atos materiais da sua execução e respetivo acompanhamento às entidades que forem legalmente competentes e designadas na decisão.
Cabe às entidades competentes nomear uma equipa técnica que será responsável por avaliar, segundo o n.º 2 do Art. 9º, a satisfação das necessidades de alimentação, higiene, saúde, afecto e bem-estar da criança ou do jovem; a sua estabilidade emocional; o cumprimento do plano de escolaridade, orientação vocacional, formação profissional e ocupação dos tempos livres; o cumprimento do plano de cuidados de saúde e de orientação psicopedagógica; a opinião da criança ou do jovem, dos pais, do familiar acolhedor e da pessoa idónea e a integração social e comunitária da criança ou do jovem.
Por último, importa ter em consideração o disposto no Art. 1907º do CC. Dita o seu n.º 1 que, por acordo ou decisão judicial, ou quando se verifique alguma das circunstâncias previstas no Artigo 1918.º, o filho pode ser confiado à guarda de terceira pessoa.
Quando o filho seja confiado a terceira pessoa, cabem a esta os poderes e deveres dos pais que forem exigidos pelo adequado desempenho das suas funções (n.º2); sendo que compete ao tribunal decidir em que termos são exercidas as responsabilidades parentais na parte não prejudicada pelo disposto no número anterior (n.º 3).
Face ao ora elencado, é curial apurar de que modo o Tribunal decidiu conjugar as responsabilidades parentais do Demandante face à confiança da menor aos ora Demandados.
A esse pretexto, resulta da matéria provada, que o despacho, de 11.01.2016, que decretou a aplicação, a título provisório, de tal medida, impôs que os Demandados deveriam zelar pela sua saúde, formação e segurança, conforme consta a fls. 39.
Por outro lado, por despacho emanado, a 19.09.2016, foi o Demandante reconhecido como o representante legal da filha D para efeitos patrimoniais, o que resulta do teor de fls. 187 e 188.
Por fim, no acórdão de 27.04.2018 é decretada a medida em causa, pelo período de 6 meses, cabendo aos Demandados cuidar da criança, conforme consta de fls. 132, sem que nele se faça qualquer menção à responsabilidade por zelar, administrar, gerir ou até cuidar dos bens de que a criança é titular.
De qualquer modo, ainda que esteja a correr termos processo de inquérito n.º XXXX contra o Demandante por suspeita de abuso sexual e violência doméstica contra a sua filha, não há qualquer decisão final, sobre tal matéria, que possa servir de fundamento a uma eventual retirada definitiva da guarda da filha e da consequente inidoneidade e indignidade para exercer as suas responsabilidades parentais.
Ora, em matéria penal, vigora o princípio da presunção de inocência do arguido, conforme decorre do texto constitucional: “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação” – Art. 32º, n.º 2 da CRP.
Logo, face ao exposto, não vislumbramos qualquer vontade expressa do Tribunal Coletivo em alterar, até à presente data, a responsabilidade do Demandante quanto à administração dos bens da sua filha menor, que, como vimos, reconhece ser da sua égide, por conseguinte, a pretensão do Demandante merece total provimento.

DECISÃO:
Pelo exposto e nos termos dos fundamentos de Direito invocados, julgo a ação totalmente procedente e, em consequência, condeno os Demandados a entregarem ao Demandante a fração, bem como as respetivas chaves, e a viatura e as respetivas chaves, pertencentes à filha menor e melhores identificadas no item C dos Factos Provados, e, ainda, a entregarem-lhe a quantia mensal de €153,07, a título de pensão de sobrevivência da filha
D, para fazer face às despesas correntes desta com alimentação na escola, educação e conservação dos bens em causa.

Custas pela parte vencida – os ora Demandados, devendo proceder ao pagamento da 2ª parcela (€35,00), no prazo de 3 dias úteis, sob pena de ser aplicada uma sobretaxa de €10,00 por cada dia útil de atraso no seu pagamento, em conformidade com os Artigos 8º e 10º da Portaria n.º 1456/2001 de 28 de Dezembro, alterada pela Portaria nº 209/2005 de 24 de Fevereiro.
Quanto ao Demandante, proceda-se ao reembolso de €35,00, em conformidade com o Artigo 9º da Portaria atrás mencionada.

A presente sentença foi proferida e notificada nos termos do n.º 2 do Art. 60º da LJP.
Registe e notifique.
Coimbra, 9 de Agosto de 2018


A Juíza de Paz,

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Daniela Santos Costa
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