Sentença de Julgado de Paz
Processo: 43/2017-JPBBR
Relator: CARLA ALVES TEIXEIRA
Descritores: FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉCTRICA
RESPONSABILIDADE CIVIL POR FACTO ILÍCITO / RISCO
Data da sentença: 04/20/2018
Julgado de Paz de : BOMBARRAL-OESTE
Decisão Texto Integral: SENTENÇA
Relatório:

A intentou a presente acção declarativa contra B, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de € 1.000,00, sendo € 445,00 correspondente ao valor de reparação de uma placa de indução e € 555,00 correspondente a uma indemnização pela privação do uso da referida placa, no valor de € 5,00 diários, desde a data do dano até à sua reparação.
Alega, para tanto, que a referida placa ficou danificada em virtude de sucessivas interrupções de fornecimento de energia e consequente instabilidade de tensão corrente ao longo do dia 26.03.2017, sendo a Demandada responsável uma vez que não cumpriu a sua obrigação de fornecimento de energia com estabilidade, o que originou o dano.
Juntou 14 documentos.
A Demandada foi regular e pessoalmente citada e apresentou Contestação, onde alega que, na data dos factos, ocorreram cinco incidentes na linha de média tensão, que consistiram numa simples interrupção, e imediata reposição, de fornecimento de energia eléctrica, causados por chuva forte, o que é insusceptível de causar os danos alegados pela Demandante; que, quer a linha de média tensão, quer a de baixa tensão, se encontravam em normais condições de exploração, sendo que a linha de média tensão possui protecções contra sobretensões e abastece um universo de 4.600 clientes, não tendo nenhum outro cliente reclamado qualquer dano. Mais alega que todos os equipamentos devem estar concebidos de forma a suportar interrupções de energia e ser dotados de equipamentos de protecção contra variações de tensão que, de todo o modo, não se verificaram no caso.
Juntou 11 documentos.
Uma vez que a Demandada prescindiu da fase da mediação, procedeu-se à marcação da audiência de discussão e julgamento, que se realizou com observância do formalismo legal.
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Estão reunidos os pressupostos de regularidade da instância e não há excepções, nulidades ou questões prévias de que cumpra conhecer.

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Fixa-se à causa o valor de € 1.000,00 (mil euros) - cfr. artigos 306º n.º 1, 299º n.º 1, 297º n.º 1 e 2 do CPC, ex vi do artigo 63.º da Lei 78/2001, de 13 de Julho, na redacção que lhe foi dada pela Lei 54/2013, de 31 de Julho (de ora em diante abreviadamente designada LJP).

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FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:

A) FACTOS PROVADOS:
A) Com relevo para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1 – A B exerce, em regime de concessão de serviço público, a atividade de distribuição de energia elétrica em alta e média tensão, sendo ainda concessionária da rede de distribuição de energia elétrica em baixa tensão no concelho de Óbidos.
2 - Para o exercício da sua atividade, a Demandada explora diversas infra-estruturas, entre as quais, linhas elétricas aéreas, cabos subterrâneos, postos de transformação, entre outras.
3 – Por força de um contrato celebrado com um terceiro comercializador, a Demandada abastece de energia elétrica a instalação da Demandante correspondente ao local de consumo número 000000, sito na Rua do XXXX, n.º 12, Amoreira, concelho de Óbidos, em regime de baixa tensão normal.
4 - O abastecimento de energia elétrica é feito através do circuito 1 de baixa tensão (BT) a partir do Posto de Transformação de Distribuição (PTD) OBD33 Amoreira II, que é alimentado pela linha de média tensão (MT) proveniente da estação da Sancheira.
5 - Nos últimos dois anos a Demandada realizou 38 acções de manutenção preventiva na rede de distribuição de MT e 2 acções de manutenção preventiva na rede de BT e no PTD em causa.
6 - A linha de MT encontra-se dotada de proteções de máximo de intensidade e de proteções contra sobretensões de origem atmosférica.
7 - A rede de MT em apreço, abastece cerca de 4.600 clientes.
8 - No dia 26 de março de 2017, entre as 19h08 e as 21h59 ocorreram cinco incidentes na linha de MT decorrentes de chuva forte.
9 - Todos os incidentes ocorridos em Linhas de MT e de BT são automaticamente registados no sistema da Demandada.
10 - Os incidentes referidos ficaram registados sob os números 0, 0, 0, 0 e 0 e tiveram a duração total de 2 minutos.
11 - Os incidentes consistiram num disparo da linha, com religação automática, sem necessidade de intervenção técnica humana.
12 – No dia 26.03.2017 a placa de indução X, modelo 00000, instalada na casa da Demandante, avariou.
13 – A Demandante apresentou reclamação à B relativa aos danos sofridos na placa de indução no dia 28.03.2017.
14 – A Demandante obteve um orçamento para reparação da placa pelo valor de € 445,00.
15 - A interrupção e reposição do fornecimento de energia elétrica ao nível da MT não provoca sobretensões na rede BT e é insuscetível de provocar danos em equipamentos.
16 - A interrupção e a religação automática, são operações inerentes à normal exploração de uma rede elétrica.
17 - Os incidentes afectaram um universo de cerca de 4.600 clientes, sendo que a reclamação da Demandante foi a única recebida pela Demandada em virtude dos mesmos.
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B) Facto não provado:
1 – Os danos sofridos pela placa de indução foram provocados pelas sucessivas interrupções de fornecimento de energia e consequente instabilidade de tensão ocorrida no dia 26.03.2017.
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C) MOTIVAÇÃO:
A convicção do Tribunal relativamente à factualidade supra descrita, resulta da análise crítica e ponderada, à luz das regras da lógica e das máximas da experiência de vida, dos factos admitidos por acordo, dos documentos juntos, das declarações da Demandante e dos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento.
Concretizando:
- factos provados n.º 1 a 11 e 15 a 17: resultam da conjugação dos seguintes meios de prova: (i) do documento de fls. 74 contendo os detalhes da instalação e do ramal; (ii) dos
documentos de fls. 75 e 76 contendo a listagem com as acções de manutenção preventiva levadas a cabo nas redes de distribuição de média tensão e baixa tensão; (iii) dos documentos de fls. 77 a 88 contendo os registos e detalhes dos incidentes ocorridos naquela data na linha de média tensão e comprovando a inexistência de incidentes na linha de baixa tensão; (iii) dos depoimentos das 3 testemunhas apresentadas pela Demandada que, de uma forma clara, coerente e credível, demonstrando conhecimentos técnicos especializados na área do fornecimento de energia eléctrica, confirmaram todos os factos 1 a 11 e 15 a 17, explicando os incidentes ocorridos com pormenor, que mais não foram do que uma interrupção de fornecimento de curta duração (no total de 2 minutos) com a subsequente reposição do mesmo, ao nível da média tensão (equivalente a ligar e desligar um interruptor), sem necessidade de intervenção humana, e foram peremptórios ao afirmar que os incidentes ocorridos são insusceptíveis de causar danos em equipamentos, sendo uma ocorrência normal e impossível de evitar na rede de distribuição, que está preparada para lidar com estes incidentes, através de várias protecções, cuja forma de actuação explicaram. Mais confirmaram que 4600 clientes foram afectados, de igual forma, com tais incidentes, sendo que a Demandada não recebeu qualquer outra reclamação, para além da Demandante. Mais declararam que todos os aparelhos devem estar concebidos de modo a suportar as interrupções de fornecimento de energia eléctrica, sendo que o uso poderá deixar os equipamentos mais vulneráveis a tais ocorrências; (iii) das declarações da Demandante que afirmou que, na tarde em que ocorreram os incidentes, estavam ligados à rede eléctrica também o frigorífico e o televisor, que não sofreram qualquer avaria.
- factos provados n.º 12 e 14: resultam da conjugação dos seguintes elementos probatórios (i) do documento de fls. 11 contendo o relatório da avaria e o orçamento de reparação; (ii) das declarações da Demandante que relatou a avaria sofrida no aparelho.
- facto provado n.º 13: resulta do acordo das partes nos articulados, sendo que também resultaria dos documentos de fls. 6 a 10, 12 a 20 e 89 a 92.

- facto não provado n.º 1: resulta da ausência de prova suficiente nesse sentido. Com efeito, a Demandante juntou como único elemento probatório o documento de fls. 11 que consiste num relatório sobre a avaria, que nem sequer se encontra assinado, que foi impugnado pela Demandada e não foi confirmado por qualquer outro meio de prova. De qualquer modo, o relatório limita-se a referir que a avaria “foi provocada pelas sucessivas variações de corrente eléctrica”, o que foi contrariado por todas as testemunhas apresentadas pela Demandada, cuja credibilidade e conhecimentos técnicos especializados já foram referidos supra, e que foram peremptórias ao afirmar que, na data dos factos, não se verificou qualquer sobretensão na rede, sendo que os incidentes ocorridos ao nível da MT não são susceptíveis de causar danos em equipamentos, o que permitiu dar como provado o facto 15, contrário a este.
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FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE DIREITO:

Está em causa nos presentes autos apurar a responsabilidade civil da Demandada e, em consequência, a sua obrigação de indemnizar a Demandante pelos danos sofridos com a avaria na placa de indução.
Conforme resultou provado, a Demandada exerce, em regime de concessão de serviço público, a atividade de distribuição de energia elétrica em alta e média tensão, sendo ainda concessionária da rede de distribuição de energia elétrica em baixa tensão no concelho de Óbidos. No âmbito dessa sua actividade, a Demandada abastece de energia eléctrica a instalação da Demandante, por força de um contrato celebrado com um terceiro comercializador.
Uma vez que não se verifica uma relação contratual directa entre as Partes, entendemos que estamos no domínio da responsabilidade civil extra-contratual.
Neste âmbito, a obrigação de indemnizar da Demandada poderá decorrer da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, ou da responsabilidade civil pelo risco.
Comecemos por analisar os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito:
a) um facto, que tanto se pode traduzir numa acção como numa omissão.
b) a ilicitude desse facto, isto é, a violação de uma norma legal destinada a proteger interesses alheios, que pode revestir duas modalidades: a violação de um direito subjectivo, ou a violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios;
c) a culpa, definida como a censurabilidade da conduta do agente pela ordem jurídica, que, neste caso em concreto, se presume, ao abrigo do disposto no artigo 493º, n.º 2 do CC onde se pode ler que: “quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”.
O que qualifica uma actividade como perigosa será a sua especial aptidão para causar danos, seja pela sua própria natureza, seja pela natureza dos meios utilizados, sendo pacífico, na jurisprudência, que a actividade de exploração de redes de energia eléctrica se integra nesta previsão.
Resulta, assim, desta disposição legal, que a Demandante não necessita de provar a culpa da Demandada, que se presume, incumbindo a esta provar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias, com vista a prevenir os danos.
d) a ocorrência de um dano, que consiste em “toda a ofensa de bens ou interesses protegidos pela ordem jurídica” (Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 5ª Edição, 1991, p. 477);
e) o nexo de causalidade entre o facto e o prejuízo, apelando-se à teoria da causalidade adequada, segundo a qual o facto há-de ser em concreto causa necessária do evento danoso (conditio sine qua non) e, ao mesmo tempo, terá de ser, em abstracto, adequado a causar tais danos. Isto é, o evento danoso deve ser constituído, simultaneamente, por uma causa necessária e uma causa potencialmente idónea da produção daqueles danos – cfr. artigo 563º do CC.
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Analisando, agora, o caso concreto, dos factos provados, resulta que os factos ilícitos praticados pela Demandada consistiram na interrupção do fornecimento de energia eléctrica no dia e hora em causa, por 5 vezes, com a duração total de 2 minutos, o que violou o direito da Demandante de ter acesso à energia eléctrica, conforme contratado com terceiros, naqueles períodos em concreto.
Como se disse, a culpa da Demandada presume-se, incumbindo a esta ilidir essa presunção. Ora, a Demandada provou que quer a rede de baixa tensão (BT), quer a rede de média tensão (MT), à data dos factos, se encontravam em normais condições de exploração, estando dotadas das respetivas proteções. Com efeito, provou que só nos últimos dois anos, realizou 38 acções de manutenção preventiva na rede de distribuição de MT, e que esta se encontra dotada de proteções de máximo de intensidade e de proteções contra sobretensões. Provou-se, ainda, que as referidas protecções actuaram no caso em apreço, tendo eliminado o incidente sem necessidade de intervenção humana. Provou-se, ainda, que as interrupções momentâneas e religações automáticas, são operações inerentes à normal exploração de uma rede elétrica, não sendo possível à Demandada evitá-las, tanto mais que no caso das linhas eléctricas aéreas, a rede se encontra exposta a factores externos, como o vento e a chuva.
Concluímos, assim, que dos factos provados resultou a ilisão da presunção de culpa que impendia sobre a Demandada, tendo resultado suficientemente demonstrado que a Demandada empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para impedir a ocorrência das interrupções momentâneas no fornecimento de energia eléctrica.
Por conseguinte, não se verificando a culpa da Demandada, e sendo os pressupostos da responsabilidade civil cumulativos, há que concluir que não se verifica a responsabilidade civil desta por facto ilícito – sendo que, também não se verificaria a responsabilidade contratual (para quem entendesse subsumir os factos numa relação contratual entre as Partes), uma vez que na mesma também a culpa presumida estaria ilidida, de igual forma. Está, assim, prejudicada a análise do nexo de causalidade nesta sede, sendo certo que, como se verificará infra, o mesmo também não resultou provado.
Resta, assim, apurar a responsabilidade civil da Demandada pelo risco, isto é, independentemente de culpa, baseada na teoria de que quem retira proveito de uma actividade deve suportar os respectivos riscos.
Com efeito, dúvidas não restam de que a actividade da Demandada se mostra abrangida pela previsão constante do artigo 509º do CC, onde se pode ler que:
1. Aquele que tiver a direcção efectiva da instalação destinada à condução ou entrega da energia eléctrica ou do gás, e utilizar essa instalação no seu interesse, responde tanto pelo prejuízo que derive da condução ou entrega da electricidade ou do gás, como do dano resultante da própria instalação, excepto se ao tempo do acidente esta estiver de acordo com as regras técnicas em vigor e em perfeito estado de conservação.
2. Não obrigam a reparação os danos devidos a causa de força maior; considera-se força maior toda a causa exterior independente do funcionamento e utilização da coisa.
3. Os danos causados por utensílios de uso de energia não são reparáveis nos termos desta disposição”.
Ora, no caso, está provado que a Demandada tem a direcção efectiva da instalação destinada à condução e entrega da energia eléctrica e que utiliza essa instalação no seu interesse.
Está, também, provado o dano sofrido pela Demandante.
Resta, assim, apurar se o dano deriva “da condução ou entrega da electricidade” ou “da própria instalação” destinada à condução e entrega de electricidade.
Trata-se de apurar o nexo de causalidade existente entre o dano sofrido pela Demandante e o risco associado à própria exploração, feita pela Demandada, da rede de distribuição de energia eléctrica.
Como já se explanou supra, há que apelar à teoria da causalidade adequada, segundo a qual, num primeiro momento é necessária a prova de um nexo naturalístico entre o facto e o dano e, num segundo momento, um nexo de adequação entre ambos.
Ora, no caso, não resultaram provadas alterações ocorridas na corrente eléctrica. Na verdade, provou-se que os incidentes ocorridos consistiram numa simples interrupção e religação automática da corrente na rede de MT, o que não é susceptível de provocar qualquer sobretensão nas fases referente à rede de BT.
Para que este nexo de causalidade se verificasse, necessário seria ter-se provado que existiu uma sobretensão, anómala e não permitida, que tivesse atingido a instalação da Demandante, e que tivesse originado danos no seu equipamento por se encontrar ligado à corrente eléctrica. Para tal prova, contribuiria, também, o caso de serem vários os equipamentos danificados, o que não ocorreu, não obstante se encontrarem ligados à corrente eléctrica também o frigorífico e o televisor, como a Demandante declarou em audiência, e o incidente ter atingido a rede de MT, e não a de BT, que abastece 4.600 clientes, sendo que o dano sofrido pela placa de indução foi o único reclamado à Demandada naquela data, por conta de tais incidentes.
Por outro lado, também se provou que a interrupção do fornecimento de energia eléctrica, ao nível da MT, é insusceptível de causar sobretensões nas fases referentes à rede de BT, não constituindo, por isso, causa idónea a provocar danos nos equipamentos eléctricos, pelo que não se mostra verificado, também, o nexo de adequação.
Conclui-se, assim, que não se verifica o nexo de causalidade entre o incidente ocorrido e o dano sofrido pela Demandante, pelo que também não se mostra verificada a responsabilidade civil da Demandada, pelo risco.
Face ao exposto, há que concluir pela improcedência da presente acção.

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Responsabilidade tributária:

Atento o disposto no artigo 527º n.º 1 e 2 do CPC aplicável ex vi do artigo 63º da LJP, e porque a Demandante se declara parte vencida, serão as custas suportadas pela mesma.
Assim, nos termos conjugados dos artigos 1º, 2º, 8º, 9º e 10º da Portaria n.º 1456/2001 de 28 de Dezembro, alterada pela Portaria n.º 209/2005 de 24.02, deverá a Demandante efectuar o pagamento da quantia de € 35,00, no prazo de 3 dias úteis a contar do conhecimento da presente decisão, sob pena de a tal quantia acrescer uma sobretaxa de € 10,00 por cada dia de atraso, com o limite de € 140,00, devendo ser devolvido igual montante (€ 35,00) à Demandada.
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Dispositivo:
Julgo a presente acção totalmente improcedente, por não provada e, em consequência disso, absolvo a Demandada do pedido.

Custas pela Demandante.

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Registe e notifique.
Bombarral, 20.04.2018

A Juíza de Paz

Carla Alves Teixeira
(que redigiu e reviu em computador – artigo 131º n.º 5 do CPC)