Sentença de Julgado de Paz
Processo: 42/2011-JP
Relator: DIONÍSIO CAMPOS
Descritores: DIREITOS E DEVERES DE CONDÓMINOS
Data da sentença: 08/29/2011
Julgado de Paz de : COIMBRA
Decisão Texto Integral:
SENTENÇA

1. - Identificação das partes
Demandante: A); Demandado: B)
2. - OBJECTO DO lITIGIO
A presente acção foi intentada com base em ‘direitos e deveres de condóminos’, tendo o Demandante pedido que o Demandado seja condenado a retirar do 2° andar direito os dois cães.
Para tanto e em breve síntese, o Demandante alega que o regulamento do condomínio proíbe a detenção de animais tanto nas partes comuns do prédio como dentro das fracções privativas, e que no 2.º andar direito existem dois cães de grande porte que ladram imenso, perturbando com o ruído o sono e a tranquilidade dos vizinhos, que emanam odor desagradável e que com alguma frequência urinam e defecam nas partes comuns do prédio, atentando contra a saúde e direito à qualidade de vida de quem lá reside.
O Demandado contestou, impugnando que não reside nem é detentor de animais no prédio, tendo arrendado a sua fracção em meados de 2009, e que não informou a inquilina da proibição do regulamento de detenção de animais no prédio porquanto considerava que tal proibição já não estava em vigor uma vez que outros condóminos detêm animais de estimação e em relação a estes o condomínio nada diz, os referidos cães não sujam as partes comuns nem quaisquer outras, e não fazem qualquer barulho, nem as autoridades nunca foram chamadas para averiguar a existência de barulho e concluindo pela improcedência da acção.
Valor: €2.501,00 (dois mil quinhentos e um euros)
2. – FUNDAMENTAÇÃO
2.1 – Os Factos
2.1.1 – Os Factos Provados
Consideram-se provados e relevantes para o exame e decisão da causa os seguintes factos:
1) O Demandante é o Condomínio do prédio constituído no regime de propriedade horizontal sito em Coimbra, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de S, sob o artigo x, e descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra com o n.° x.
2) A administradora do condomínio é a C, com sede no concelho de Coimbra,
3) O Demandado é proprietário das fracções “D” e “L”, correspondentes respectivamente ao 2.° andar direito e garagem do referido prédio.
4) O Demandado não habita na sua referida fracção do prédio nem em Coimbra, e passa largos períodos sem vir a esta cidade.
5) Por contrato de arrendamento celebrado por escrito, o Demandado como senhorio deu de arrendamento para habitação a sua referida fracção “D” e garagem a M.
6) A referida fracção “D” passou a ser habitada pela inquilina M e família.
7) A inquilina do Demandado tem cumprido os seus deveres para com este.
8) A cláusula nona do referido contrato de arrendamento consigna, designadamente, que a inquilina se obriga a cumprir e a fazer cumprir os regulamentos do condomínio.
9) Por deliberação da assembleia de condóminos realizada em 16-04-2005 da qual foi lavrada a acta n.° 01, foi aprovado o regulamento do condomínio, por unanimidade dos votos dos condóminos presentes/representados, excepto quanto ao art. 10.º, n.º 1, al. b) que foi aprovado com uma abstenção.
10) O artigo 10.° do regulamento aprovado consigna que: “1- É vedado aos condóminos: (…) b) Ter animais nas partes comuns do prédio e nas fracções autónomas, excepto os já existentes à data da aprovação deste regulamento, desde que estes não perturbem os demais condóminos.”
11) O senhorio Demandado não deu conhecimento à sua inquilina, nem no dia da celebração do arrendamento nem posteriormente, do texto do regulamento do condomínio e, em concreto, não a informou da proibição do art. 10.º de detenção de animais no prédio.
12) Na altura da celebração do arrendamento, o Demandado considerou que já não se mantinha a limitação relativa aos animais, na medida em que outros inquilinos, nomeadamente do 3.º andar, possuíam também animais de estimação, e não tinha conhecimento que, quanto a esse condómino, o condomínio tivesse levantado alguma objecção.
13) A inquilina do Demandado é dona de dois cães de pequeno porte, um “tipo caniche” e outro sem raça determinada (pudengo?) mais velho com sete anos, cada um não com mais de 30 a 40 cm de altura.
14) Estes cães encontram-se habitualmente na marquise envidraçada do locado, ladrando por vezes perante movimentações exteriores mais próximas, designadamente de outros cães, e quando vão à rua e avistam outros cães.
15) Estes cães são levados à rua normalmente de manhã pelas 8,00 horas, de tarde até às 20,00 horas, e depois à noite mas antes das 23,00 horas, latindo quando descem as escadas.
16) Estes cães não fazem habitualmente dejectos nas partes comuns.
17) Estes cães são lavados regularmente e não emanam odor forte.
18) Por alguns residentes deixarem o portão aberto, por vezes alguns cães vadios deixam dejectos e mau cheiro no tapete de fora.
19) As autoridades competentes nunca foram chamadas para averiguar da existência de barulhos proveniente da fracção propriedade do Demandado.
2.1.2 Factos Não Provados
Não se consideraram provados os factos não consignados.
20) Estes cães fazem muito ruído, frequentemente depois das 23,00 horas, perturbando o repouso e a tranquilidade dos demais residentes.
21) Estes cães urinam e defecam, com alguma frequência, nas partes comuns do prédio.
22) O odor que emana destes cães é muito desagradável, e obriga a manter a porta de acesso ao prédio aberta durante largos períodos de tempo para “arejar”, com prejuízo da segurança do mesmo.
23) A existência destes cães no prédio atenta contra a saúde e à qualidade de vida de quem lá reside.
2.1.3 – Motivação
A convicção do tribunal formou-se com base nos autos, complementados pelas explicações das partes que se tiveram em consideração ao abrigo do princípio da aquisição processual, na prova documental de fls. 5 a 16, 43 a 53, 64 a 69 e 74, e no depoimento das testemunhas apresentadas. Interrogadas preliminarmente aos costumes, as testemunhas responderam: a 1.ª e 8.ª são filhas da dona dos cães, a 2.ª é genro do condómino do r/c, as 3.ª, 4.ª e 6.ª são condóminos, a 5.ª e 9.ª são vizinhos; e a 7.ª é arrendatária do Demandado e dona dos cães. Atentos os vínculos familiares da 1.ª e 8.ª com a 7.ª dona dos cães, a qualidade de condóminos com interesse na acção das 3.ª, 4.ª e 6.ª, o escasso conhecimento directo do factos da 2.ª, familiar de condómino, apenas as 5.ª e 9.ª não revelaram vínculos com as partes, mantendo apenas relações de vizinhança e amizade com a dona dos cães e filhas. Não obstante os referidos vínculos e ligações, os vários depoimentos foram prestados com objectividade relativamente aos factos do conhecimento directo dos depoentes, pelo que mereceram credibilidade na medida do adequado.
Os condóminos ouvidos entendem que as garagens estão também abrangidas pela referida restrição de deter animais e, por isso, a dona dos cães não os deve colocar na sua garagem, não obstante, como foi referido por mais de uma vez em audiência de julgamento, um dos condóminos deter na sua garagem animais (aves), que foram para lá já depois de aprovado o regulamento, e os colocar na zona do aparcamento do logradouro comum quando faz sol.
2.2 – O Direito
Na presente acção vem o Condomínio Demandante pedir que o Demandado seja condenado a retirar do 2.° andar direito os dois cães que lá se encontram.
A situação que se discute nos autos resulta e reflecte o especial clima que se costuma criar no âmbito de um condomínio quando, por vezes, o relacionamento interpessoal atinge um ponto de quase-ruptura, apesar de no caso, ao que parece e felizmente, não ser generalizado à maioria dos residentes. De qualquer forma tal ambiente costuma constituir o pano de fundo para litígios como o dos autos.
No caso, o condomínio funda a sua pretensão nos factos que alega e na disposição do art. 10.º, n.º 1, al. b) do Regulamento do Condomínio, que estipula a proibição de detenção de animais nas partes comuns do prédio e nas fracções autónomas, excepto os já existentes à data da aprovação deste regulamento, desde que estes não perturbem os demais condóminos.
Cabe também ainda dizer que “a intervenção dos órgãos judiciários, cingida à violação da lei ou dos regulamentos em vigor, limita-se a uma simples fiscalização da legalidade da deliberação. Não cabe ao tribunal apreciar do mérito da deliberação, para saber se ela foi ou não a mais conveniente para os interesses dos condóminos.” (P.Lima-A.Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª ed., 1987, 449).
Ora, a administração das partes comuns do edifício compete à assembleia dos condóminos e ao administrador (art. 1430.º, n.º 1 do CC). A assembleia é constituída por todos os condóminos e tem carácter deliberativo. Uma vez aprovadas e exaradas em acta, as deliberações representam a vontade colegial e são, em princípio, vinculativas para todos os condóminos (inter pares). Por seu turno, o administrador é o órgão executivo, com funções legalmente fixadas no art. 1436.º do CC, devendo, designadamente, executar as decisões da assembleia e assegurar a execução do regulamento do condomínio, sendo fiscalizado e prestando contas da sua actividade à assembleia, mas não em concreto a este ou àquele condómino individualmente, que tem a possibilidade de se expressar e de votar democraticamente em assembleia juntamente com os restantes condóminos. Assim, um condómino não pode querer ver anulada em tribunal uma deliberação aprovada pela maioria dos condóminos, só porque dela discorda. Apenas pode legitimamente aspirar à sua anulação quando alegar e provar que tal deliberação é contrária à lei ou ao regulamento do condomínio (nos termos do art. 1433.º do CC), para além dos casos de nulidade (nos termos do art. 286.º do CC).
Os órgãos do condomínio existem para a administração apenas das partes comuns (art. 1430.º, n.º 1 do CC), e não já das fracções autónomas, o que impõe uma demarcação rigorosa entre o que os órgãos do condomínio podem deliberar e executar e o que, não estando na sua competência, cai fora do seu âmbito de actuação. Assim, se um condómino, dentro da sua fracção privativa, produz ou permite barulhos (por exemplo, de cães) superiores ao permitido pela lei administrativa e a horas interditas a tais ruídos, perturbando os seus vizinhos, viola o dever de não produção de ruídos de vizinhança consagrado no art. 1346.º do CC e no Regulamento Geral do Ruído.
A consequência é que ninguém se encontra vinculado a uma deliberação que, extravasando o âmbito de competência do condomínio, respeite ao exercício do direito de propriedade sobre a fracção, que pertence ao respectivo titular. Esta delimitação da competência dos órgãos do condomínio pode repercutir-se igualmente em normas aprovadas no regulamento do condomínio. Assim, se a assembleia de condóminos aprovar uma cláusula do regulamento que proíba os condóminos de deterem animais domésticos nas suas fracções, estaremos perante uma norma que, em princípio, não vincula os condóminos, dado que atinge o domínio privativo da propriedade sobre as fracções autónomas, cujo aproveitamento pertence exclusivamente aos respectivos proprietários. Isto não significa, obviamente, que os condóminos não estejam sujeitos às restrições de vizinhança nas relações entre si, uma vez que a delimitação negativa da propriedade opera igualmente no campo da propriedade horizontal. Porém, em caso de violação de um dever de vizinhança pelo proprietário de uma fracção, cabe ao condómino ou condóminos afectados reagir nos termos gerais de Direito, incluindo o pedido judicial de condenação na cessação da actividade ilícita e a indemnização pelos danos sofridos (cfr. José Alberto Vieira, Direitos Reais, 2008, pp. 733-734).
Mas uma coisa é uma deliberação restritiva imposta a outrem, outra são os comportamentos voluntariamente contratualizados e assumidos. Assim, nada obsta a que os condóminos se vinculem voluntariamente a certos comportamentos, dentro dos limites da sua autonomia contratual (cfr. Sandra Passinhas, Os animais e o regime português da propriedade horizontal, 2006, pp. 833-873). Porém, tais acordos condominiais vinculam apenas quem a eles se obrigou, e não já terceiros, como é o caso do arrendatário que a tal não se tenha concretamente obrigado. No caso, apesar de a inquilina ter subscrito também a disposição do contrato de arrendamento que consigna o cumprimento (genérico) do regulamento do condomínio, provou-se que, aquando da contratação, o senhorio não lhe assegurou o conhecimento concreto desse regulamento, em especial dessa cláusula restritiva do direito de gozo do locado, que poderia ter influenciado a sua vontade de contratar, pelo que se considera que a inquilina contratou sem tal restrição, que não lhe é oponível nem a terceiros erga omnes, como seria se constasse do título constitutivo da propriedade horizontal e tivesse sido registado.
Relativamente à disposição da al. b) do n.º 1 do art. 10.º do Regulamento do Condomínio em causa que interdita aos condóminos a detenção de animais também dentro das suas fracções (partes privativas), podemos estar aparentemente perante um eventual não cumprimento do Regulamento por parte do condómino Demandado, por intermédio de terceiro a quem arrendou a fracção. Mas, em todo o caso, tratando-se de uma disposição que extravasa o âmbito de competência da assembleia de condóminos é ineficaz. Com efeito, as deliberações que têm por objecto assuntos que exorbitam da esfera de competência da assembleia de condóminos, seja porque dizem respeito à propriedade exclusiva de cada condómino, seja porque representam uma ingerência no domínio ou administração exclusiva que qualquer proprietário tem sobre a sua própria fracção, são ineficazes (cfr. Abílio Neto, Manual da Propriedade Horizontal, 2006, p. 344; L. M. Moutinho de Almeida, Propriedade Horizontal, 3.ª ed., 2007, p. 110; Ac. Relação de Lisboa de 15-12-1994, CJ, 1984, T.5, p. 174).
Ora, se a deliberação é ineficaz por atingir, por exemplo, direitos de um condómino enquanto proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence, ela é inoponível ao condómino atingido ou visado, não produzindo, em relação a ele, qualquer eficácia, e daí que ele se lhe possa opor a todo o tempo, se houver actos de execução de tal deliberação (Abílio Neto, ob. cit., p. 348). Ou seja, o condómino visado pode ignorar a proibição da deliberação, sem embargo de a todo o momento poder arguir – por acção de simples apreciação ou por via de excepção – o vício de que ela enferma (M. Henrique Mesquita, Separata da RDES, Ano XXIII, p. 65).
Mas ainda assim, e para além disso, tratando-se de uma restrição que agride o exercício do direito de propriedade (sobre a parte privativa), é nula (art. 296.º do CC), por violar este direito que é um princípio de ordem pública.
Ora, enquanto a ineficácia opera por si, a nulidade deve ser declarada, e pode/deve sê-lo oficiosamente pelo tribunal (art. 286.º CC), com os efeitos legais desse vício (art. 289.º do CC).
Por outro lado, o objecto da obrigação é a prestação debitória, o comportamento (positivo ou negativo) que é exigido do devedor. E um dos requisitos da prestação para que possa constituir objecto da obrigação válida é que seja “legalmente possível” e lícita, não seja contra a lei e os princípios de ordem pública (arts. 280.º e 401.º do CC), sob pena de nulidade por impossibilidade jurídica (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª ed. 2000, 801-804).
Quanto à pretensão do condomínio Demandante para que este tribunal condene o Demandado “a retirar do 2.º andar direito os dois cães que lá se encontram”, cabe desde já considerar que, de acordo com a factualidade provada, não obstante o Demandado ser proprietário da fracção autónoma correspondente a esse andar, ele não a habita com a família, tendo dado a mesma de arrendamento a M, que nele habita e é a dona dos cães. Em consequência, não tendo o Demandado na sua disponibilidade, física ou jurídica, o domínio a “coisa” visada, nunca poderia um tribunal condená-lo a retirar os cães, propriedade de terceiro, de dentro da habitação deste (pelo menos sem o consentimento do dono), sob pena de condenar em prestação ilegal/ilícita.
Em resultado, estamos aqui perante factos (nulidade da restrição e prestação juridicamente impossível do pedido) que impedem ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo Demandante, constituindo excepções peremptórias que, por não estarem dependentes da vontade do interessado, são conhecidas oficiosamente pelo tribunal e importam a absolvição do pedido (arts. 493.º, n.º 3 e 496.º do CPC).
3. – Decisão
Face ao que antecede e às disposições legais aplicáveis, declaro a nulidade do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º do Regulamento do Condomínio, julgo a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolvo o Demandado do pedido.
Custas: pelo Demandante que declaro parte vencida nos termos e para os efeitos do n.º 8 da Portaria n.º 1456/2001, de 28-12.
As custas devem ser pagas no Julgado de Paz, no prazo de 3 (três) dias úteis a contar da notificação desta sentença, sob pena do pagamento de uma sobretaxa diária de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso no efectivo cumprimento dessa obrigação (n.os 8 e 10 da Portaria n.º 1456/2001, de 28-12, alterada pela Port. n.º 209/2005, de 24-02).
Notifique o Demandante para pagamento das custas, e em relação ao Demandado, cumpra o n.º 9 da referida Portaria 1456/2001.
A presente sentença foi proferida e circunstanciadamente explicada presencialmente às partes em audiência de julgamento, e de que elas ficaram bem cientes.
Registe e notifique.
Coimbra, 29 de Agosto de 2011.
O Juiz de Paz,
(Dionísio Campos)